Barbárie e Civilização - Por Virgínia Schall




Da estimativa de três bilhões e meio do início da vida na Terra, o Homo sapiens neanderthalensis data apenas de cerca de 200.000 anos, o de Cro-Magnon (Homo sapiens sapiens) de 30.000 anos, as cidades de 10.000 anos, a filosofia de 2.500 anos e a ciência do homem ainda se encontra em seu ano zero, como constata Edgar Morin (1975). Nosso percurso de civilização é ainda muito curto, nosso ensaio de humanização ainda está engatinhando. Movidos por um encanto perplexo face aos nossos inventos e tecnologias ficamos embevecidos com a nossa capacidade criativa de transformar a matéria e distraímos o nosso olhar para longe dos nossos próprios umbigos.
Sabemos muito pouco sobre nós mesmos, ainda não temos respostas para as questões básicas como: de onde viemos, quem somos, para onde vamos, há vida após a morte? A despeito dessa ausência de certezas, movemos em nosso cenário através de ensaios e erros e em nossa busca incansável corremos inúmeros riscos, com conseqüências perigosas, como os desastres nucleares e os desequilíbrios ecológicos só recentemente diagnosticados e lentamente enfrentados. Também esboçamos teorias sobre nós mesmos, cabendo dentro delas uma enorme gama de interpretações e de crenças, as mais diversas e por vezes antagônicas, o que atesta o pouco conhecimento que temos sobre nós mesmos, já que apenas há muito pouco tempo começamos a nos pensar. Se avançamos no controle do mundo externo, o nosso desconhecido mundo interno ainda nos domina e exibe cotidianamente a barbárie de nossa civilização.
Chega a ser ingenuidade nossa, achar que mudanças de regimes políticos, religiões, a ciência e a arte, sejam suficientes para remodelar o homem, pois não haverá justiça social, respeito ao outro e responsabilidade pessoal e coletiva, enquanto a cada homem não for dada oportunidade de buscar se conhecer melhor, de desenvolver as suas aptidões, de experimentar o amor verdadeiro. E esta oportunidade nem a educação formal, nem a milenar estrutura familiar, assim como nenhum regime político tem sido capaz de oferecer com eqüidade. A educação atual é ainda voltada para o domínio de habilidades e conteúdos sobre a matéria e muito pouco sobre nós mesmos. A violência ao outro, quando não resulta de carências e da desigualdade social, como predomina em nossas sociedades, demonstrado pelas estatísticas e imagens freqüentes da mídia, é reflexo de emoções descontroladas. Uma violência contra si mesmo, contra o abismo interno dos impulsos desconhecidos que são postos a serviço de fantasias, de delírios, de desejos de poder e equívocos nacionalistas, como nas guerras. Em quaisquer desses casos, o sujeito que pratica o ato violento conhece pouco ou nada de si mesmo, mas é presa de instintos ou impulsos revestidos por símbolos, por ideais impostos de fora para dentro.
O que parece escolha é fruto de ignorância, modelagem, adestramento, controle ou mesmo doença. Há pouco se falava no fim da História, na desesperança trazida pela exaustão do comunismo e a falência do socialismo em garantir as propostas contidas em sua moldura ideológica. Constatamos o fortalecimento do ideário neoliberal seduzido pelo capitalismo devastador que busca, a curto prazo, equilibrar receitas econômicas, passando como um trator sobre milhares de vidas humanas, relegadas a uma existência abaixo da linha da dignidade. Tudo em prol de um futuro melhor para todos, uma luz que é vista no fim do túnel apenas pelos que fazem o planejamento desta trajetória incerta e têm garantidos os prazeres da boa mesa, o filé da tecnologia de ponta e o nome inscrito na história, ainda que a ser reinterpretado no futuro. Mas, algo escapa de nossas mãos ocupadas entre objetos e tarefas concretas, uma essência que não sabemos bem como conduzir, que não vemos, mas que construímos a cada dia: nós mesmos, absortos e controlados pela sedutora barbárie externa, travestida em discursos prontos, atitudes fáceis, comportamentos ferozes, embalados pela sofisticada tecnologia permanentemente atualizada pelos gananciosos cofres capitalistas. Contudo, um desvio de rota vem sendo construído.
O movimento de humanização vai se fazendo moderada e silenciosamente, aperfeiçoando estratégias de busca de autoconhecimento e inscrevendo metodologias criativas no cenário da morosa e tradicional educação formal. São lentos os caminhos da humanização, entretanto, não podemos nos curvar à barbárie, nem comprovar que a humanidade se rende à violência. Os fatos grotescos são bastante mais bem registrados e divulgados, embora não sejam nunca a regra, mas apenas uma parte menor da expressão instintiva que ainda escapa, tingindo de sangue e dor a nossa estrada ainda inicial. Se os casos de violência estão aí diariamente como prova da existência de selvagens instintos, exemplos opostos também são freqüentes, como a bondade presente em pessoas que se dedicam a causas sociais e aos seus semelhantes, indicando as possibilidades da transcendência humana para a solidariedade e a paz.Há um longo percurso por percorrer, o importante é que estejamos atentos para cultivar o diálogo, um diálogo franco e destemido, para que possamos ousar através de palavras e que estas sejam o substituto das armas, futuros objetos de museus, resquícios de sociedades bárbaras, de um tempo em que o homem ainda não exercitava plenamente o diálogo. O poder no mundo humanizado pode e deve vir das idéias, através da argumentação e da sabedoria que desvenda e desmascara a violência, tornando desnecessário reprimi-la. Homens instruídos não necessitam resolver conflitos através de punhos cerrados e instrumentos bélicos, já que dispõem de um nível simbólico para se fazer entender.
A violência pode muito bem ser substituída pelo prazer de compreender e assim estaremos começando a escrever uma nova História, uma História de encontros e respeito às diferenças, um ensaio para o que chamamos de PAZ. Mas até lá, há muito por fazer, há muito que sofrer. Só não podemos concluir que em nossa sociedade, a violência e a desigualdade sejam aceitas e naturalizadas, mas entendidas como expressões de um resquício de barbárie ainda presente em nosso curto percurso civilizatório e que haverá de ser superada, na luta diária pela justiça e eqüidade, dando lugar a um tempo de solidariedade, amor e paz, à altura dos cenários paradisíacos que o planeta Terra nos oferece a cada manhã.

Fonte: www.estadodeminas.com.br

* Virgínia Schall é pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz, chefe do Laboratório de Educação em Saúde do Centro de Pesquisa René Rachou (CPqRR/Fiocruz, MG) e membro do colegiado do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde do CPqRR.

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