Literatura feminina?- Por Tércia Montenegro




ARTE: Andréa Araújo


A presença feminina na literatura era ínfima até o século XX. Com a chegada de grandes mulheres nesta seara, se criou um nicho questionável, um rótulo com referência de gênero apenas. Será que existe ou não uma literatura feminina?

Basta folhear a História da Literatura Brasileira para perceber que existe uma ínfima presença de escritoras até o século XX. Não que as mulheres não escrevessem. Claro que, em meio às atividades maternais e domésticas de uma figura que ainda não tinha, em termos gerais, entrado no mercado de trabalho e na roda-viva do moderno estresse, havia tempo e disposição. O que não havia era instrução suficiente, muitas vezes. Dentre as "prendas" femininas não estava o aperfeiçoamento numa arte até o ponto do brilhantismo. Mesmo assim, nossas avós mais remotas guardaram seus versos em cadernos de receitas, ou em papéis de carta amarrados com fitilho - preciosidades que sumiram ao longo das gerações, junto com os antigos baús de noiva.

Lógico que muitos desses versos familiares eram despretensiosos, sem qualidade. Mas existia a chance de que, no meio de tantos exercícios poéticos, fosse desperdiçada a sensibilidade de uma Adélia Prado. Quantos talentos assim não deixamos escapar, não ignoramos durante décadas? O século XX permite que editorialmente isso comece a mudar. Editoras significam leitores, que significam incentivo - e cada vez mais as mulheres aparecem nas capas de livro. Tudo começa com uma surpreendente qualidade: Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles (para ficar só em algumas referências do cânone didático) aparecem, dos anos 20 em diante, para exasperar os desacostumados. Imediatamente, era necessário identificar o estranho fenômeno. Assim nasceu o rótulo "literatura feminina".

A necessidade de entender, conceituar, é uma obsessão tipicamente humana, e por causa dela toda a ciência pode ser justificada. Traz grandes benefícios, portanto. Mas o termo "literatura feminina" não se realiza como uma boa definição, na medida em que simplifica a incalculável diversidade de escritos reunidos neste forçado conjunto. É um rótulo, que nasce simplesmente por uma referência de gênero. À primeira vista, parece criar um território, valorizar um espaço - mas, na verdade, constrange e segrega. Induz à fatídica pergunta: por que não existe o termo "literatura masculina"? Porque essa parece óbvia, natural. Que homens escrevam, tudo bem, nada estranho. Mas mulher escrevendo é coisa exótica, diferente. Precisa de um rótulo.

O rótulo, assim como toda etiqueta, deve classificar, apresentar as características de um produto. Ora, socialmente, o adjetivo "feminino" sempre esteve associado à delicadeza, suavidade, muito mais que à conotação puramente sexual, de fêmea. Dessa maneira, pensar numa "literatura feminina" seria também levantar expectativas a respeito de um certo tipo de texto. Não que essa modalidade de uma literatura branda, terna, seja ruim. Apenas é falso sugerir que todas as mulheres escrevem desse jeito. Imagino, por esse ponto de vista, que se alguém adquirisse um de meus livros para adultos numa seção sob o letreiro "literatura feminina", estaria sendo bastante enganado. Induzida pelo rótulo, a pessoa esperava uma obra que lhe desse histórias agradáveis; acabou levando contos de violência. Nesse caso, o leitor foi trapaceado em seus direitos de consumidor. Sim, porque literatura também é produto de consumo, deve ter qualidade e direcionamento mercadológico, o que não invalida absolutamente o estético. O valor artístico não concorre com o alcance profissional de uma obra: já se provou isso há muito tempo (e debater tal questão agora seria perder o rumo).

Talvez para outras escritoras o suposto letreiro na seção da livraria não prejudicasse nem um pouco. Seria o caso de Marina Colasanti, por exemplo, que em seu belíssimo livro Fragatas para terras distantes comenta, no ensaio intitulado Por que nos perguntam se existimos?: "Se homens e mulheres utilizam o cérebro de maneira diferente ao falar e, ao que tudo indica, o utilizam de maneira diferente para ler, parece apenas lógico que o utilizem de maneira diferente também para escrever."

Ao contrário de Marina, porém, a escritora Susan Sontag, em artigo do livro Questão de ênfase, discute a utilidade de agrupar mulheres reunidas artisticamente pelo único elo de pertencerem ao mesmo sexo: "Parece fazer sentido, por muitas razões, existirem antologias de escritoras ou exposições de fotógrafas; pareceria muito estranho propor uma antologia de escritores ou uma exposição de fotógrafos que nada tivessem em comum senão o fato de serem homens."

Talvez essa discussão reflita o quanto a mulher ainda é vista como minoria, em termos artísticos. E talvez o mais importante não seja entrar numa guerra por espaços, mas perceber algo mais amplo: antes que se nasça homem ou mulher, nascemos humanos, e a literatura é reflexo disso, dessa experiência típica. O trato com as palavras foi criação exclusiva de nossa espécie, que articulou um sistema lingüístico e inventou essa arte. No final das contas, não importa o sexo, a época ou o lugar, qualquer escritor(a) age da mesma forma: tudo o que produz é uma tentativa de compreender, traduzir ou testemunhar a vivência humana - algo que pode ao mesmo tempo ser tão medíocre e tão misterioso.

Fonte: http://www.opovo.com.br

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