Entre a civilização e a barbárie – Por José Miguel Arias Neto


Partindo do marco negacionista da Segunda Guerra Mundial, o pesquisador José Miguel Arias Neto expõe a seguir o trajeto do crescimento da preocupação dos historiadores com a ética.

No século XIX, os historiadores eram comprometidos com a criação da nação, dos nacionalismos e da cidadania pensados em termos mais ou menos homogêneos: um território, uma língua, uma etnia. Ora, esse programa conduziu à catástrofe da civilização europeia que alcançou seu apogeu durante a Segunda Guerra Mundial. Como observou Hannah Arendt: “Durante a última guerra, essa catástrofe manifestou-se sob a forma do mais violento furor de destruição jamais experimentado pelas nações europeias”. A partir daí é que vai surgir, por assim dizer, um novo paradigma no âmbito das ciências humanas. É importante mencionar dois elementos cruciais nesta transformação. De um lado, a própria concepção de direitos humanos que surge a partir da guerra e se fundamenta na ideia da unidade e da diversidade da humanidade. Ela é profundamente comprometida, portanto, com a ideia da democracia enquanto ordem social e não apenas uma forma política. No campo das ciências humanas, o embate acerca da memória do holocausto produz uma nova compreensão das relações entre historiografia e memória. Isto por que não somente o programa nazista pretendia aniquilar os judeus, mas também apagar a memória deste crime. O negacionismo é a repetição do extermínio judaico e da sua memória, repetidas vezes. Daí Pierre Vidal-Naquet qualificar os negacionistas como “assassinos da memória”, título de um de seus livros. Neste sentido, já no período do entreguerras, surgiam reflexões sobre o caráter múltiplo e ao mesmo tempo fragmentado da história e da memória, que questionavam as formulações nacionalistas que tiveram seu ápice nos regimes nazifascistas. O filósofo alemão Walter Benjamim já fazia notar que a história é uma tradução de aspectos do passado, isto é, de uma reconstrução presente e parcial a partir de fragmentos. Essa também é a tese do sociólogo francês Maurice Halbwachs, que apontava para o caráter individual e de grupos da memória em oposição à uma memória oficial fundada em valores universais como progresso, história linear, por exemplo, imposta pelo historicismo. Em outras palavras, apontava-se para a impossibilidade de uma tradução integral do passado. É este movimento que perpassa as discussões das relações entre memória e História, ou melhor dizendo, da Historiografia, em nossos dias. Neste sentido, História e memória são mais complementares do que opostos, pois é a memória o testemunho que fornece o fundamento que permite ao historiador reconstruir o passado de outra perspectiva e, ao mesmo tempo, desmobilizar as totalidades homogeneizadoras e as metanarrativas filosóficas. Em outras palavras, se coloca para nós, sempre, a questão de Kant: de onde falo, que tempo é este do qual enuncio meu discurso? Questão que Michel Foucault viu uma inflexão que funda a filosofia crítica contemporânea: não se trata mais de uma analítica da verdade, mas sim de uma ontologia do presente. Os historiadores passaram a explicitar, no desenvolvimento de suas atividades profissionais, seu compromisso com o presente. Neste sentido, podemos dizer que a ética contemporânea se funda em um dinâmico movimento cujos pólos são as idéias de igualdade e diversidade. Podemos também afirmar que o historiador deveria ser comprometido com sua sociedade e com o seu tempo. E isto ocorre em certa medida. Porque há uma porção considerável de profissionais entre nós, cada vez mais comprometido com a historiografia e com a democracia brasileira. São aqueles historiadores e professores que compreendem sua atividade - a produção do conhecimento - em sua dimensão ampla: a pesquisa, o ensino e a extensão como atividades interligadas e diretamente comprometidas com o desenvolvimento social. É preciso compreender que não teremos uma boa universidade e uma produção de conhecimento que resultem em progresso social, se não tivermos uma boa escola. E se, não tivermos uma boa escola, não somente que acolha a diversidade, mas que a reconheça, a ponto de se transformar em múltiplas escolas que busquem garantir a isonomia republicana. Isto é, o outro lado da equação da democracia como ordem social, o antigo regime persistirá, ou seja, aquele da manutenção dos privilégios (o direito privado) dos grupos sociais que sustentaram e ainda sustentam aqueles intelectuais encerrados na famosa “torre de marfim”, indiferentes à miséria que se espraia à sua volta e, neste sentido, promotores da barbárie.

José Miguel Arias Neto é professor de História Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual de Londrina e secretário geral da Anpuh/PR.

Fonte: http://www.opovo.com.br

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