Acordo com Vaticano reacende polêmica sobre ensino religioso - Por Fernanda Vasconcelos e Renata Rossi
Nas últimas semanas, o Brasil tem vivido intensas discussões acerca de um acordo entre o Brasil e a Santa Sé (PDC n° 1.736/09), relativo ao estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil. Um dos pontos do debate é o ensino religioso nas escolas públicas. Embora o artigo 11 do acordo fale em liberdade religiosa e em diversidade cultural, além de lembrar que o ensino religioso é facultativo, o fato de ter sido assinado pelo governo brasileiro e pela Igreja Católica reacendeu as discussões sobre o Estado laico, que é independente de toda e qualquer confissão religiosa. O ato bilateral foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 26 de agosto e segue para votação no Senado.
Para Roseli Fischmann, professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), e coordenadora do grupo de trabalho “Estado Laico”, o acordo é inconstitucional. “O artigo 19 da Constituição Federal veda a União, Estados, Municípios e Distrito Federal estabelecer aliança com igrejas ou seus representantes, e o acordo, mesmo sendo de tipo bilateral, internacional, incide nessa proibição”, justifica. Roberto Romano, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), acredita que a liberdade religiosa e a paz pública são ameaçadas pelo acordo. No cenário nacional, ela seria um agravante à intolerância: “O Brasil, até hoje, apesar das lutas em surdina entre as denominações cristãs – e da intolerância de todas elas em relação aos cultos africanos, espíritas, budistas –, não tinha uma querela aberta, como a causada pelo acordo”, diz Romano.
Já o arcebispo Dom Walmor Oliveira de Azevedo, no artigo “ Acordo e laicidade ”, publicado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), afirma que o acordo consolida posições já estabelecidas e “nada tem a ver com entendimentos que apontam privilégios para uma determinada confissão religiosa em detrimento de outras”. Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo (“Um acordo comum”, 15/08/2009), Bonifácio de Andrada, professor de direito constitucional e deputado federal (PSDB-MG), defende a aprovação. “Acordos desse tipo são comuns mundialmente, sobretudo no Ocidente, para garantir ao povo o direito às suas crenças. O Estado democrático é laico, mas a nação é religiosa”, afirma. Andrada defende que o Estatuto constitui “porta aberta” para que aconteçam no Brasil outros acordos, com diversos credos.
Também no dia 26 agosto, a Câmara aprovou a chamada “ Lei Geral das Religiões” (PL nº 5.598/09), que estenderia às demais religiões as oportunidades dadas pelo acordo à Igreja Católica. O texto do projeto, que segue para votação no Senado, é semelhante ao do Estatuto e utiliza o termo “instituições religiosas” em lugar de “Igreja Católica”.
O acordo e o ensino religioso
O ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental é estabelecido pela Constituição (art. 210) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). O artigo 11 do Estatuto da Igreja Católica no Brasil reafirma o direito à liberdade religiosa, o respeito à diversidade cultural e o caráter facultativo da disciplina, mencionando “o ensino religioso católico e de outras confissões religiosas”. No entanto, o artigo 33 da LDB estabelece que cabe aos sistemas de ensino regulamentar os procedimentos para definição de conteúdos e que, para isso, os estabelecimentos “ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas”.
Para Fischmann, o artigo 11 do Estatuto é duplamente inconstitucional. “Tanto por ser parte de um acordo que, em si, fere a Constituição, quanto por contrariar a redação que é dada a essa matéria, tanto na Constituição Federal quanto na LDB”, explica. O advogado Salomão Ximenes, assessor da ONG Ação Educativa, interpreta o acordo como um retrocesso quanto à definição de ensino religioso presente na LDB, que ao delegar aos sistemas locais de ensino a tarefa de definir os conteúdos da disciplina, proibiria o proselitismo (esforço de conversão a uma doutrina).
No artigo “Estado laico e ensino religioso”, o cardeal Odilo Pedro Scherer, da CNBB, argumenta: “Fica muito claro que o ensino religioso previsto no acordo não é imposto aos estudantes, mas é de matrícula facultativa; não é só católico nem é discriminatório, mas plural e respeitoso da diversidade cultural e religiosa do Brasil; grupos religiosos não católicos poderão oferecer sua própria proposta de ensino religioso”. George Augusto Niaradi, professor de direito e presidente da Comissão de Comércio Exterior e Relações Internacionais da OAB-SP, também defende o acordo. Em entrevista ao Jornal da CBN (28/08/2009), Niaradi afirmou que o texto não privilegia o ensino da religião católica nas escolas públicas, na medida em que deixa claro que a disciplina é facultativa.
Na interpretação de Afonso Soares, professor de ensino religioso da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o acordo propõe explicitamente um ensino confessional. Soares afirma que não há como oferecer, em todas as escolas, docentes para todas as religiões e que nem a Igreja Católica tem quadros suficientes para atender a todo o país. “ Mas algumas de suas principais rivais, entre as igrejas neopentecostais, estão muito bem preparadas para enviar um exército de missionários a todos os estabelecimentos de ensino. O resultado disso, no médio e longo prazo, será tudo, menos um maior espírito de diálogo entre as religiões”, completa. Por outro lado, o bispo Dom Fillipo Santoro, no artigo “ O ensino religioso no acordo entre Santa Sé e Estado brasileiro ” (CNBB), argumenta que “o ensino religioso não deve ser entendido como alusivo a uma religião genérica, a-confessional, indefinida, já que tal ‘religião' não existe. Seria pura abstração mental, sem correspondência na realidade da vida e da sociedade humana”.
Já a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), avalia que, no que se refere à questão do ensino religioso nas escolas públicas, há um risco claro de que o acordo reforce distorções em relação à liberdade religiosa. “É preciso garantir que a diversidade religiosa, cultural e social será representada no ensino religioso. Certamente, nesse marco ético, a religião católica será representada, uma vez que possui um importante papel na consolidação e formação da sociedade brasileira. Mas isso não deve ser garantido por um acordo internacional, e sim por princípios éticos, pedagógicos e de justiça sobre o conteúdo do ensino religioso em um Estado laico”, defende.
Laicidade
De acordo com a Constituição, o Estado laico é aquele que, respeitosamente, não interfere nos assuntos religiosos e não estabelece relações de dependência ou aliança com cultos religiosos, igrejas ou seus representantes, nem cria distinções entre brasileiros ou preferências entre si. Para Ximenes, da Ação Educativa, Estado laico e escola pública universal, inclusiva e democrática são, historicamente, conquistas associadas e interdependentes. Roberto Romano, da Unicamp, acredita que a laicidade do Estado está ameaçada. “Não é justo, correto, republicano ou democrático que cidadãos, cuja vida religiosa nada tem a ver com o catolicismo ou o protestantismo em suas várias denominações, paguem impostos enquanto suas doutrinas não são propagadas pelos mesmos instrumentos oficiais, agora fornecidos a alguns coletivos religiosos, tendo em vista a ordem prosélita”, argumenta o professor.
Na sala de aula
A questão do ensino religioso, além de acender polêmicas, ainda traz muitas dúvidas. Um ponto a ser esclarecido é a diferenciação entre ensino religioso e ensino catequético. O primeiro diz respeito à formação das crianças para o respeito aos valores, às culturas e à diversidade religiosa; o segundo, implica o ensino de determinada religião. A primeira modalidade é de responsabilidade do Ministério da Educação e dos governos, pois se trata de uma disciplina assegurada pela LDB. Já o ensino catequético é de responsabilidade dos representantes das diversas doutrinas. É compreensível que o ensino catequético faça parte do currículo de uma instituição particular assumidamente confessional. Se os pais optam por uma escola desse tipo, estão cientes da formação que o filho irá receber lá. Entretanto, na escola pública não é tão simples, pois, antes de tudo, é preciso respeitar a diversidade religiosa. “O ensino religioso confessional na escola pública implicaria em ter à disposição professores capacitados para quaisquer religiões que, porventura, os pais escolhessem para seus filhos. Parece óbvio que, na prática, isso redundaria em privilégios para a Igreja Católica e algumas igrejas evangélicas mais organizadas. É difícil supor que haveria, por exemplo, professores qualificados para lecionar umbanda, candomblé, santo Daime ou xintoísmo em todas as escolas”, explica Soares, da PUC-SP.
Atualmente, o Brasil conta com três modalidades de ensino religioso. A confessional, vinculada especificamente a uma religião; a interconfessional, que resulta de um acordo de determinadas matrizes religiosas (as cristãs, por exemplo); e por fim, a supraconfessional, voltada ao ensino de sociologia, história e antropologia das religiões, com o objetivo de abordar a disciplina sob o aspecto científico do fenômeno religioso e não das doutrinas em si. Ximenes, da Ação Educativa, aponta inconstitucionalidade nas duas primeiras modalidades, pois, de acordo com a lei, a disciplina ministrada em escolas públicas não pode estar vinculada a uma confissão religiosa específica ou ainda ficar dependente de um acordo entre diversas denominações, “o que nunca chegará a respeitar o princípio da igualdade, pois não há unidade possível quando se fala de direito à liberdade de crença, culto e religião”. A terceira modalidade seria fruto de uma tentativa de justificar a possibilidade de manutenção do ensino religioso em uma escola pública que deve ser laica. “Persistem, ao menos, dois problemas: por mais que seja possível abordar religião sob o enfoque das ciências, isso, evidentemente, é objeto de estudos superiores ou, no mínimo, de disciplinas já presentes no ensino médio, não havendo necessidade, para tratá-las, de uma disciplina própria. É importante lembrar que as crianças, objeto do ensino religioso, têm idade entre 6 e 14 anos. Quando estudamos as propostas curriculares que se autodenominam não-confessionais ou supraconfessionais, quase invariavelmente percebemos que elas acabam caindo em dogmas de determinadas raízes religiosas”, argumenta Ximenes. Além disso, nas séries iniciais do ensino fundamental – do 1° ao 5° ano – não há organização por disciplinas, o que resulta em todas as aulas ministradas pelo mesmo professor, inclusive o ensino religioso. Portanto, nesses casos, não se respeita a facultatividade da disciplina. Para garantir a constitucionalidade do ensino religioso, seria possível então pensar em uma disciplina que abarcasse diversas religiões para, assim, respeitar a diversidade? Segundo alguns especialistas, essa alternativa também seria inviável. Roseli Fischmann, da USP, acredita que reunir várias religiões em uma só disciplina seria um fracasso em vários sentidos: “Como conteúdo religioso, é uma impossibilidade; como postura ética, é um equívoco, porque homogeneíza o que não pode ser homogeneizado, sob pena de violar a liberdade de consciência, de crença e de culto; como proposta escolar, pode facilmente se transformar em engodo e imposição, por incidir nas possibilidades de cada pessoa, de conseguir ensinar apenas o que é de sua própria vivência, e nada mais”, avalia.
O papel do ensino religioso
A escola é o lugar onde se formam os cidadãos. É nesse espaço que consolida o poder do diálogo e do respeito à diversidade, ferramentas básicas para a vida em sociedade. Qual é o papel do ensino religioso dentro desse universo? Para Matilde Tiemi Makiyama, pedagoga com especialização em ensino religioso pela PUC-SP e diretora da Escola Caritas-SP, o ensino religioso tem como objetivo o resgate da própria razão de ser do homem. “A sala de aula se torna um espaço privilegiado de reflexão, na busca de respostas para as questões existenciais e na compreensão do transcendente”, afirma. Segundo a pedagoga, entre os aspectos essenciais que orientam a ação pedagógica da disciplina, estão a dimensão dos valores humanos, a cultura da paz e da solidariedade. A escola que Makiyama dirige é confessional, seguidora da doutrina católica, e tem aulas de ensino religioso semanais, obrigatórias para todos os alunos, de todos os credos, inclusive com avaliação. No que se refere às escolas públicas, no entanto, o professor Afonso Soares, da PUC-SP, alerta para um detalhe importante: não há no Brasil aprovação para licenciatura em ciências da religião, apenas para cursos de especialização. “Vivemos a contradição de ter, obrigatoriamente, de oferecer a disciplina em todas as escolas públicas, sem profissionais qualificados para lecionar o tema”, avalia.
O ensino e a legislação vigente
A LDB estabelece a oferta obrigatória, com matrícula facultativa, da disciplina de ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental. Deve ser assegurado que o estudante, seus pais ou responsáveis sejam consultados previamente sobre a intenção de matricular. Entretanto, são comuns as situações em que as escolas ou redes de ensino agem de forma contrária, matriculando todas as crianças e somente excluindo aquelas que manifestem expressamente a intenção de não frequentar a disciplina. A antropóloga da UnB, Debora Diniz, que coordena o estudo “O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras: qual pluralismo?”, explica que para definir o caráter facultativo, é estabelecido o critério das 800 horas de carga anual exigidas pelo MEC para o ensino regular. Se a disciplina é de matrícula facultativa, deve ser oferecida além das 800 horas. A determinação de alguns estados para que a disciplina faça parte da grade curricular reforçaria a hipótese de que o caráter facultativo não esteja sendo respeitado. “A estratégia mais comum é incluir o ensino religioso no meio da grade de aulas, o que dificulta o exercício da facultatividade pelo estudante”, acrescenta Diniz. No que se refere ao caráter confessional, a antropóloga explica que seu estudo busca os marcos legais ou normativos de cada estado brasileiro para entender como o ensino é regulado. “Há estados em que ele é confessional no marco legal. Como é o caso do Rio Janeiro, objeto de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Supremo Tribunal Federal, que contesta sua constitucionalidade”, afirma Diniz. Ela acrescenta que há uma grande variação nesse cenário, que oscila entre a confessionalidade e a pluriconfessionalidade. A antropóloga chama atenção para o fato de o MEC não regular conteúdo, material didático e critérios de habilitação de professores para a disciplina. “Esse vácuo normativo e de monitoramento acaba por abrir espaço para uma série de interpretações sobre qual deve ser o conteúdo do ensino religioso”, avalia. Visto que a disciplina está em um marco constitucional, Diniz afirma que não apenas a liberdade religiosa, mas principalmente o direito à igual representação da riqueza social devem ser atendidos. E completa: “Acredito que nosso objetivo político e pedagógico seja garantir que o MEC participará ativamente da definição dos conteúdos e critérios de habilitação de professores para o provimento do ensino religioso”.
Fonte: http://www.comciencia.br
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