Projeto para mudar a história literária – Por Antonio Gonçalves Filho
Franco Moretti sustenta que a crítica deve valorizar mais as perguntas desafiadoras do que buscar respostas interessantes.
"No futuro teremos praticamente todos os textos literários online e as pessoas não saberão o que fazer com essa massa de informações, porque ter recursos disponíveis não significa nada", observa o italiano Franco Moretti, atualmente professor da Universidade de Stanford. "É preciso, mais que obter respostas interessantes, propor perguntas desafiadoras", diz. "É isso o que faz a crítica consequente", conclui o coordenador da coleção: O Romance, que tem outros livros publicados no Brasil (entre eles o essencial: A Literatura Vista de Longe, publicado pela Arquipélago Editorial).
De fato, qualquer internauta pode encontrar na rede um porto - mesmo inseguro - que assegure ser o primeiro romance moderno O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha, de Cervantes, ou garanta a James Joyce os direitos de criação do monólogo interior e do fluxo da consciência por conta de Ulisses. No entanto, é preciso um filósofo como o italiano Sergio Givone para mostrar como se dá a construção da interioridade no romance moderno, de Cervantes a Joyce - o que o autor de Hybris e Melancolia faz com mestria no primeiro volume de: O Romance. É um dos grandes ensaios do livro. Nele, Givone se empenha em mostrar como o cavaleiro D. Quixote de Cervantes se assemelha ao marinheiro Robinson Crusoé de Defoe, cuja reclusão numa ilha ele compara à jornada do Wilhelm Meister de Goethe em busca do conhecimento do mundo. Não satisfeito, passa pela aventura espiritual da dupla Bouvard e Pécuchet de Flaubert para abordar a regressão à barbárie do Kurtz de Conrad e chegar às profundezas da consciência do Zeno criado por Svevo. Em todos eles, Givone, também um grande estudioso de Dostoievski, detecta uma atração pelo abismo, como se apenas um gigantesco desastre cósmico pudesse devolver a saúde ao planeta, livrando a Terra, como queria Zeno, "dos parasitas e das enfermidades".
Esse conflito entre destino e sujeito no romance moderno é destacado logo a seguir por Roberto Gilodi ao analisar o Anton Reiser de Karl Philipp Moritz. Como classificá-lo? Não é, evidentemente, um Bildungsroman, um romance de formação, mas, antes, um romance psicológico protofreudiano. O protagonista tem 7 anos quando começa a história (baseada em fatos reais) e chega aos 20, privado, portanto de "Bildung". Não amadureceu. É um romance tão bom como o Wilhelm Meister de Goethe, mas por que ficou esquecido ou lido, por equívoco, como um "documento secularizado de introspecção pietista"? Justamente pelo motivo que levou Moretti a conceber a coleção: pela ideia de cânone, de hierarquia, defendida por Harold Bloom. "Não encontro originalidade em Bloom e gostaria de observar que a história da literatura obedece a ciclos regulares, sendo preciso analisar as formas narrativas como a biologia evolutiva estuda a formação dos seres", justifica Moretti, propondo acabar com essa lista dos dez mais, como se a literatura fosse concurso de miss. "Não entendo como alguém pode investir energia nisso." Moretti está mais interessado em preservar a tradição do romance numa época de fundamentalismo religioso e intolerância política. Lembra, a propósito, do ensaio: O Romance sob Acusação, de Walter Siti, crítico e curador da obra completa de Pasolini para a Mondadori. Nesse texto, publicado já no primeiro volume, Siti mostra como os romances e os livros sagrados correm perigo "toda vez que predomina uma ideologia de guerra", citando a Inquisição, que identificava no "livre pensar" seu demônio ideológico. Não por outra razão, segundo Siti, o romance é o único "que tem necessidade de renegar-se a si mesmo" entre todos os gêneros literários, citando como exemplo o século 18 (quando o gênero se consolidou), "repleto de romances que negam sua natureza". Defoe, como Rousseau e Diderot, temendo que os leitores identificassem o romance como uma falsificação da realidade, chegaram a abjurar o gênero que os consagrou. Desacreditado, ele atravessou séculos e sobreviveu a ataques de religiosos e autoridades civis (Vargas Llosa diz que as culturas religiosas produziram poesia e teatro, mas nunca grandes romances). E, se Moretti selecionou críticos de formação marxista para contribuir com sua coleção, o fez pensando justamente em oferecer uma visão histórica para a reabilitação do romance, que, hoje, corre o risco de declínio por excesso de autorreferência e falta de imaginação. "Não organizei a coleção por simpatia ideológica (Moretti é marxista e colabora com a New Left Review), mas por respeito a esses críticos." E é com a crença de que, análogo ao procedimento de Darwin, o romance possa ser analisado como um processo de seleção natural - em que Flaubert, Proust e Jane Austen teriam o mesmo DNA -, que Moretti preparou os outros quatro volumes da coleção, que vão discutir as formas literárias (volume 2), a história e a geografia do romance (volume 3), os temas e heróis (volume 4) e as lições do gênero (volume 5). A principal delas, segundo Moretti: "Hoje, quando o videogame toma o lugar do romance, mais do que nunca, é preciso ter espírito crítico."
Trecho
Incivilizado, bárbaro, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante e grave, alheio à paixão e ao erotismo, o mundo sem romances, esse pesadelo que procuro delinear, teria como traço principal o conformismo, a submissão generalizada dos seres humanos ao estabelecido. Também nesse sentido seria um mundo animal. Os instintos básicos decidiriam a rotina cotidiana de uma vida oprimida pela luta pela sobrevivência, pelo medo do desconhecido, pela satisfação das necessidades físicas... (Mario Vargas Llosa).
Fonte: http://www.estadao.com.br
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