Um grito dos que paulatinamente nos vão deixando – Por Adriano Mixinge
Costa Andrade “Ndunduma”, um vulto da política, da literatura e das artes plásticas, em entrevista publicada por O PAÍS a título póstumo.
Dos primeiros, senão mesmo o primeiro em falar de angolanidade literária com a publicação do seu artigo “Deux expressions de l’angolanité” publicado, em 1962, na Présence Africaine – Revue Culturelle du Monde Noir, Costa Andrade “Ndunduma” foi uma figura destacada da sua geração e, nessa condição, viveu as suas complexidades, contradições, alegrias e tristezas, incluindo alguns dos seus momentos mais sombrios. Há quatro anos, via email, teve a amabilidade de responder para nós ao “questionário aos artistas plásticos angolanos”, como de resto também o fizeram Henrique Abranches e Edgardo Xavier e que aparecem recolhidos no livro de ensaios “Made in Angola: arte contemporânea, artistas e debates” (L’harmattan. Paris, 2009). Do jeito que lhe era característico, Ndunduma falou à vontade sobre o papel que a sua relação com a Política, a Literatura e as Artes Plásticas desempenharam no seu percurso criativo. Numa homenagem ao homem culto que Angola acaba de perder (Ndunduma faleceu dia 18 de Setembro em Lisboa), O PAÍS recupera o essencial da entrevista que figura no texto “Made in Angola…
Como artista cuja obra pode, eventualmente, inserir-se numa espécie de estética pós-colonial, quais são as estratégias de pesquisa, as motivações emocionais, conceituais e/ou históricas que estão implícitas na sua obra? Acredita que estamos num momento crucial da história das Artes Plásticas angolanas deste século? Porquê?
Não direi que a minha produção pictórica se insere numa estética pós ou pré-colonial. Não posso honestamente inserir-me numa qualquer corrente estética, por causas demasiado profundas, que poderei resumir afirmando: porque tem tudo a ver comigo mesmo, por carácter, por índole, por opção de um determinado conceito, ou talvez melhor, por um permanente sentimento de independência, ou de afirmação existencial. Não obedeço a estratégias préprogramadas de pesquisa, a não ser com objectivo analítico, para produção ensaística. Na arte como na escrita literária, pesquiso e acompanho, por exemplo, o desenvolvimento de uma ideia imediata, a expansão de um verso ou de um poema, um pensamento surgido de repente, a consequência imaginária de um acto sexual vivido, a dor, não a dor física, mas a dor sentida psicologicamente. Pesquiso a expressão de um conceito e não me importa minimamente, se o exprimo abstracta ou figurativamente através de um elemento de paisagem, dumaigura humana ou simplesmente viva, geométrica, gráfica ou pressupondo sons e silêncios, imprecisões, etc. São tantas e nenhumas, as motivações.Apenas as emoções, o que talvez explique porquê, que nos anos da década de 50/60 do século passado, me tenha interessado mais por Kandinski, Miró, Ziveri, Manet, Malhoa, Modigliani, Rembrandt, Portinari, entre tantos tão diversos, que ia conhecendo através de revistas, viagens, exposições ou até das aulas de História da Arte. Mais tarde vieram as oportunidades de visitar o Louvre, o Ermitage, ver os Siqueiros, Oroscos, os Museus de S.Paulo, a Capela Sistina e os Florentinos, os Eslavos em Belgrado, e no começo, o Prado em Madrid e outros mais, em Cuba, no Cairo, os quadros dos Kenianos, os Etíopes, Malangatana, e outros. Diante de todos eles, pensei-me tão pequenino, tão sem dimensão. A pergunta sugere-me contradição, porque eu acho que as Artes Plásticas angolanas, não se encontram em momento crucial. Alguns há, que pretendem afirmar-se imaginando estar a criar um momento especial, novo, etc. Não vejo isso. Os nomes mais importantes das nossas Artes Plásticas actuais são muito sóbrios e discretos. Veja-se António Ole, Jorge Gumbe, Van… Deixamos passar o momento crucial da história e desse momento restam apenas alguns testemunhos que perdurarão, se houver interesse em fazê-los perdurar, o que me parece não estar a acontecer, mas é tudo.
Historicamente, tem havido um forte movimento migratório em toda a África Austral; as culturas (Bantu, muçulmanas ou, inclusive, indianas) se estabeleceram na região e se articulam com os sistemas gerais da cultura na maior parte dos países.Acha que, actualmente, a sua obra tem alguma relação com a obra de outros artistas da região? Com quem e de que modo? E se não tem nenhuma relação, qual é, de facto, a especificidade da sua obra?
O meu percurso de vida permitiume o contacto, umas vezes mais profundo, outras ocasionais, com diferentes culturas e suas manifestações em África e no mundo. Visitei, desde museus a exposições e feiras de artesanato, onde o consegui. Só não sou coleccionador, porque aconteceu, não poucas vezes, visitar tais feiras ou exposições, em jejum, quero dizer, sem dinheiro para um copo de leite e um pão. As maiores similitudes africanas encontrei-as no artesanato. Nas belíssimas manifestações de arte decorativa variadíssimas e demonstrando, quer profundas diferenças, quer grandes semelhanças culturais, presentes nas paredes de barro, nas portas e janelas de madeira talhada, de aldeias. Na pintura, que muitos consideram naive (não quero entrar nessa discussão) executada com matéria natural, barro, terra queimada, ocre, cinza, carvão, que sei eu? Constata-se muita influência, que as épocas actuais vão necessariamente transformar em inter-influências. Mas infelizmente objecto apenas, de pesquisas parcelares, ou de estudo, que não ajuda a receber selectivamente tais influências, ou pelo menos a distingui-las.Daí, que me recuse a introduzir na minha produção, factores exógenos, quer de forma, quer de conteúdo. Talvez também, por causa da actividade diversificada, que me ocupa, não posso dizer-me artista plástico a tempo inteiro.Com efeito sou um pintor sazonal, que recorre ao experimentalismo, para encontrar certas respostas. Assim, não poderei dizer-lhe se reconheço ou não, alguma relação com a obra de outros autores. Agora, acrescento, que me recuso terminantemente a adoptar o critério generalizado e provadamente rentável, destinado a turistas, que visa e consegue fazer acreditar, que arte africana é sobretudo ou apenas aquela que apresenta o disforme, o caricaturado com predominância do horror, do mau desenho e do anatomicamente distorcido, ignorando perspectivas e proporções.
Nos fins do século XX, falar de globalização é já um lugar comum e uma coisa tão constante como iniludível; porém o tailandês Apinan Poshyananda vem falando da “glocalização”, um conceito que pretende unir o global com o local. O que é que acha de semelhante proposta face aos poderes homogeneizadores da globalização?
Confesso a minha ignorância relativamente à tese e ao vocábulo que cita do ilustre tailandês. Não tenho elementos suficientes para não poder situá-lo numa preocupação, cada vez mais em moda de consumo, a de adjectivar, criar designações supostamente filosóficas para a própria produção. Parece-me doença nova, com mais capacidade de espalhar-se pelo mundo, do que a muito temida gripe das aves, contra a qual se vão descobrindo vacinas. Felizmente para nós angolanos, a doença da auto-alcunha, filosófica chegou primeiro. Oxalá não nos atinja nunca, a outra. Reflictamos um pouco: Se até o existencialismo, de Sartre, se tanto do rigor do Marxismo, da genialidade do Cubismo e do Impressionismo, do Fauvismo, etc,etc, assentes em teorizações profundas, debates de nível e inteligências elevadas estão a ser questionados e por vezes apagados pelo tempo de sempre novos encontros com o futuro! Vejamos então agora o que poderia acontecer comigo, se atingido pelo vírus, ao acordar de manhã ou a altas horas me repetisse diante de uma tela ou de um poema e me dissesse: é o ndundumismo . Girava pelo mundo, usando todos os meios, na tentativa de convencer outros, que a rir para si, encolhem os ombros e murmuram: «coitado, passou-se». Não elaboro tese alguma, não a discuto com ninguém, não submeto a ideia a qualquer prova de conhecimento, fico zangado se alguém para me ajudar me oferece uma bolsa de estudo para aprofundar e consolidar o meu saber eventual...condoído da minha sinceridade e ingenuidade. E lá vou eu com o meu ndundumismo, certo de ter descoberto a pólvora e a quadratura do círculo. Estarei, isso sim, a contribuir muito bem, durante algum tempo, para a benéfica terapêutica do riso, no oceano das nossas tristezas. É algo que merece louvor! O certo porém é que muitos acreditam.Sobretudo pela gritante falta de crítica no domínio das artes em Angola.
O Pan-africanismo é um dos arquétipos fundamentais da libertação.A possibilidade real ou imaginária de que todos africanos possuíam mais semelhanças que diferenças no seu modus vivendi, nas estruturas sintácticas de pensamento e na articulação das suas imaginarias é algo que, pelo que eu saiba, William Du Bois tratou de fundamentar.Quais são as considerações que você pode fazer à raiz do actual perfil dos circuitos internacionais da Arte e da cultura e, em particular, daquilo que já se denomina como “o novo renascimento africano” (Thabo Mbeki)?
O Pan-africanismo de William Du Bois cumpriu a sua etapa histórica com o objectivo visionário da conquista das independências e da libertação política africana. O novo renascimento de que fala Thabo Mbeki é um nova etapa, que será necessário, não apenas indicar, mas identificar e teorizar sistematicamente, quer como filosofia, como cultura, como concepção do mundo do futuro e do papel que os africanos devem jogar na sua realização e consecução. A prevalência actual do poder económico da globalização não deixa muito espaço à luta pela consubstanciação desse necessário renascimento, se não se tiver em conta que o inimigo (todas as lutas pela conquista de um novo estatuto contra ordens estabelecidas têm inimigos para defrontar) desta vez é muito mais global e poderoso, do que aquele, que se opunha aos ideais do pan-africanismo. São diferentes as suas armas e métodos, são mais sofisticados os interesses que defende e maior a sua capacidade de nos dividir. Os circuitos internacionais da arte e da cultura são integracionistas. Deste modo não será muito difícil surgirem aqui e ali, perfeitamente integradas, cumprindo um determinado papel, manifestações de arte e cultura supostamente perspectivadas na sua origem, para objectivos diferentes.
Como é sabido, em 1948, uma série de intelectuais e homens de cultura uniram-se à volta do conhecido slogan que era, sobretudo, o espírito de uma época, o “Vamos descobrir Angola”. Que opinião tem a propósito da “descoberta” ou da reciclagem das raízes mais profundas da angolanidade, num momento em que a sociedade e as culturas de Angola sofrem uma das situações mais catastróficas da sua história mais recente?
O “Vamos descobrir Angola” constituiu a inadiável pedrada no charco da dominação colonial, que sofríamos e ao mesmo tempo o grito indicativo do novo percurso, que se devia seguir, contra o marasmo dos nossos evasionistas, ou o seguidismo dos que não conseguiam descortinar o caminho. Uma vez que o Grupo da Mensagem perspectivava fundamental e essencialmente um objectivo politico e os políticos, que teriam de tomar as rédeas para esse objectivo, afinal eram eles próprios, a parte conceptual relativa à cultura, que o movimento se propunha descobrir, tidas em conta, é claro, as enormes dificuldades das barreiras repressivas a transpor, confinou-se a dois números de jornal, um número ontológico e a produção literária individual, que só muito mais tarde seria publicada. Ainda assim, era de tal força e rica de conteúdo a ideia mestra do movimento, longamente ansiada, síntese capaz de preencher uma teoria da história do passado, denúncia do presente e proposta de futuro, que o simples enunciado do seu nome se constituiu em bandeira, em programa e chama libertadora. No entanto, num espaço de pouco mais de trinta anos, esse contributo sem par tem sido paulatinamente relegado a respeitável peça de museu, por enquanto, apenas por contenção. Consequência do abandono a que os princípios cívicos estiveram votados, em tempo do poder absoluto da violência. O período que vivemos necessita ainda da descoberta de Angola, que se propunham os heróicos percursores, mas hoje e agora impõe prioritariamente a sua construção a partir dos escombros. Repare que não digo reconstrução, porque nem tudo quanto possa eventualmente constituir arqueologia colonial importa incidentalmente ao projecto angolano, do ser ou ter sido. Primeiro haverá de se criar vida, para depois descobrir raízes do tempo perdido, que também darão frutos de futuro. É evidente que uma coisa não pode esperar pela outra. A simultaneidade é obrigatória perante a profundidade da destruição onde chegamos. Relativamente às Artes Plásticas deve-se a Agostinho Neto a única manifestação e reflexão teórica sobre a questão. Trata-se de matéria, que por si só deveria constituir objecto de estudo e não diluir-se no âmbito de uma entrevista ou melhor dito, questionário pluri-direccionado.
Você tem um projecto estético bem definido ou a sua obra se estrutura com base nas circunstâncias e nos materiais com que trabalha? Exceptuando a Acta da Fundação da União Nacional de Artistas Plásticos (UNAP) escrita em 1977, conhece – nem que for mesmo do período colonial – outros documentos, manifestos, doutrinas através das quais algum grupo ou, simplesmente, algum artista tenha traçado um programa artístico com base ao qual a sua obra se regeria?
Não! As minhas observações têm sido esparsas não constituindo projecto, nem sequer historicamente falando. Tenho sim proposto a alguns, dos que se dedicam profissional e exclusivamente ao labor artístico, a necessidade da continuidade do trabalho iniciado por Vítor Teixeira, começando pela catalogação, a sistematização de elementos, a recolha de material, fotográfico e de divulgação existente, não só em Angola. O espaço ideal e significante (não me refiro à estrutura física), abandonado da UNAP tem vindo a ser ocupado pelo arrivismo e o aproveitamento de alguns exteriores à sua génese. A nova direcção não me parece dispor de meios e forças para opor-se aos que se sobrepõem ao seu definhamento, com um projecto, que nada tem a ver com ela e na minha opinião ainda menos, com a angolanidade nas Artes Plásticas.
A Arte e a Literatura angolana, como na maior parte dos países africanos, não estiveram à margem dos movimentos de libertação. Sobre este assunto, numa conversa informal com o deputado Honório Van-Dúnem, tivemos conhecimento de que Zavarra é o único artista plástico associado à UNITA. Tem alguma informação que contradiga ou enriqueça essa informação?
Também não, infelizmente. Não conheço, nem possuo qualquer referência sobre a pessoa ou sua obra.Porém o que mais me importa é saber se há angolanos que queiram criar arte, onde quer que estejam e sejam, agora que é possível criá-la com amor e olhos secos! Qual é a sua opinião a propósito do sistema institucional das Artes Plásticas em Angola? Que sugestão tem a fazer para a sua melhoria ou mesmo para o seu desenvolvimento? Recordamos que é pertinente que tenha em conta as questões do mercado de obra de arte, a situação social do artista plástico, a possível revitalização da UNAP, a situação da Escola de Artes Plásticas, as questões concernentes ao associativismo ou outras que estima conveniente e oportuno abordar. Falar de sistema institucional das Artes Plásticas em Angola é quase ocioso. Se fizermos ressalva ao esforço ingente de uns poucos, aliás conhecidos, por eles dado ao Barracão; se dissermos o que todos sabem da geração que o Viteix iniciou; se repetirmos o que tentou fazer o Rui de Matos; se nos referirmos ao ensino distribuído por algumas categorias pelo Henrique Abranches; se não esquecermos o cumprimento dos deveres organizativos de responsáveis por pelouros relativos às Artes Plásticas, e se apontarmos a luta pessoal denodada contra tudo e a favor de todos da Marcela, estará quase tudo dito. O Ministério da Cultura tem consciência, de que falta muito ou quase tudo neste capítulo. Mas de que meios e poderes dispõe para a verdadeira revolução imperiosa e necessária neste sector? Vamos descobrir Angola é o grito que se ouve ainda dos Percursores e dos que paulatinamente nos vão deixando e que a eles se vão juntando, no âmago das recordações. Resta como instituição das nossas Artes Plásticas o Embondeiro de Belas (!), onde infelizmente não tenho tido a oportunidade de deslocar-me há muito tempo... Entre mau artesanato encontra-se umas poucas vezes a aUrte de grande qualidade.
Fonte: http://www.opais.net
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