Revivalismo religioso... de outro tipo - Por Faranaz Keshavjee

Vivemos e disseminamos hoje, cristãos e muçulmanos, um revivalismo religioso de uma outra espécie. Aquele que deixou ir embora a essência, e que prefere agora glorificar e adorar a forma.



Fui a Roma e visitei o Vaticano. Não vi o Papa. Gostava de ter tomado um chá com Bento XVI. Perguntar-lhe se já o tomou com muçulmanos. Isto é, se os conhece bem, se convive com eles...? Ou, se conhece as sociedades muçulmanas e o que dizem sobre a sua fé. Porque falar do respeito pelo ser humano e pelo imigrante, como fez na passada semana a propósito da lei italiana a vigorar a partir do próximo mês de Fevereiro, e lembrar que Jesus olhava para todos como seres humanos, é bonito e é verdade; e fica bem dizer. Mas melhor mesmo é conviver com eles, para se aprender sobre esse Outro, e respeitá-lo, integrando a sua diferença, deixando cair os preconceitos. Não é fácil. E não é fácil nem para os próprios muçulmanos. Os preconceitos devem ser desconstruidos na escola e na formação comunitária. É preciso trabalharmos neste sentido.
A visita ao Vaticano deixou memórias fabulosas, da riqueza e sumptuosidade, dos frescos de Miguel Ângelo e Rafael, da arte como projecção de poder, ou da arte como constestação desse mesmo poder e corrupção. Não se sai igual do Vaticano do que quando se lá entra. Uma das questões que mais me inquietou foi o porquê de o Vaticano ter aberto as portas ao grande público há uns 20 anos atrás? Qual seria a sua agenda religiosa, politica ou cultural? No Reino Unido, a Rainha Elizabete II abriu as portas do Palácio de Buckingham em Londres numa altura de crise da monarquia - uma crise financeira e outra social. Vivia-se o momento pós- falecimento de Diana - a Rainha do Povo - a excomungada pela monarquia britânica. E o povo estava revoltado contra a instituição monárquica. Que crise, se é que existiu alguma, servira ao Vaticano para se dar a conhecer em todo o seu esplendor, riqueza e poder?
Esta mesma questão levou-me a reflectir sobre os revivalismos religiosos na contemporaneidade. Em toda a visita ao espaço de poder e monarquia papal, Jesus nunca apareceu! Bem, há umas imagens... mas o culto é ao seu representante: em "islamês" chamaríamos os seus califas, com estado e tudo, com leis próprias, etc, e com sabedoria religiosa e portanto, os papas são califas-ulama. E é daquele lugar santo para o cristão católico apostólico romano que saiem as leis que regem a vida religiosa e mundana do crente em qualquer parte do mundo. Encontro analogias interessantes com os ayatollahs, os mullahs, e os ulama - todos sacerdotes muçulmanos que acabam por influenciar o poder estadual de governos muçulmanos, mas localmente.
Para os que advogam a separação que a cristandade fez entre Estado e Igreja, o Vaticano representa um poder muito interessante no mundo católico, predominantemente europeu. De lá não se ditam as leis, mas sim a ética que orienta o crente, mesmo em contextos seculares. Recomendo a este respeito, um interessante estudo apresentado no Herald Tribune sobre a forma como a Alemanha Cristã controla e subalterniza a mulher e o seu papel na sociedade há mais de 500 anos! Afinal, todos temos telhados de vidro...Pelos corredores sumptuosos do Vaticano procurei o meu querido e amado Jesus. O místico e sufi, que se vestia de trapos de algodão e partilhava o seu pão com os que precisavam, e protegia e enaltecia a mulher, colocando-a a seu lado, em todas as circunstâncias da sua existência? Estava ali, pequenino, na cruz, no meio de santos e cardeais grandes e gordos, de colunas e pinturas, de ouros, de sacerdotes mumificados, e outras riquezas materiais.
Tal como o poder e a lei preponderam sobre um estado dentro de outro estado - o italiano - o poder papal e a sua centralidade assemelha-se àquilo que muçulmanos e não muçulmanos chamam de "Islam". O conceito aparece umas 7 vezes no alcorão, e Deus (Allah) umas centenas de vezes. Se os católicos se esqueceram de Jesus, o fundamento de uma grande fé civilizacional, os muçulmanos e o resto do mundo também se esqueceram de falar de Deus, ou Allah - a Luz que orienta o muçulmano na sua Jihad-e-Akbar - a batalha da busca do seu Eu mais profundo. Vivemos e disseminamos hoje, cristãos e muçulmanos, um revivalismo religioso de uma outra espécie. Aquele que deixou ir embora a essência, e que prefere agora glorificar e adorar a forma.

Fonte: http://aeiou.expresso.pt

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