Arqueologia conceitual - Por Fábio de Castro
O patrimônio arquitetônico e artístico de Minas Gerais no século 18 está entre os mais importantes do país. Mas a tarefa de compreender e analisar esse acervo não é nada fácil, já que ele foi formado a partir de concepções de mundo, preceitos e doutrinas que se transformaram ou se perderam ao longo dos séculos seguintes.
Estudo premiado faz reconstituição histórica dos preceitos que orientaram arquitetura do século 18 em Minas Gerais, gerando novo método de análise do patrimônio colonial (Foto: Divulgação)
A partir da reconstituição histórica dos conceitos que orientaram as práticas artísticas e arquitetônicas setecentistas na cidade de Ouro Preto (MG), um estudo realizado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP) renovou o método de análise histórica da arte e da arquitetura coloniais, oferecendo uma compreensão alternativa daquele patrimônio.
A pesquisa correspondeu à tese de doutorado de Rodrigo Almeida Bastos, defendida em 2009 na FAU-USP, com Bolsa da FAPESP. Graças à contribuição inédita dada à historiografia da arquitetura brasileira, o trabalho venceu a segunda edição do Prêmio Marta Rossetti Batista de História da Arte e da Arquitetura, organizado pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
A premiação reconhece, a cada dois anos, a melhor pesquisa inédita sobre arte e arquitetura escrita no Brasil. A segunda edição incluía trabalhos produzidos desde 2005. O estudo de Bastos, intitulado: A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822), foi orientado por Mário Henrique Simão D’Agostino, da FAU-USP.
De acordo com Bastos, que é professor do Departamento de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura e do Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o estudo propõe um método inédito para pesquisar a arquitetura do século 18, ao mesmo tempo em que apresenta os primeiros resultados da aplicação do método em análises de alguns dos exemplares mais paradigmáticos da arquitetura colonial mineira, como a Igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar e as igrejas das ordens terceiras de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo, em Ouro Preto.
“A tese já apresenta resultados que são significativos para a renovação da compreensão das práticas artísticas e arquitetônicas daquele tempo. Além de levantar muita documentação primária e secundária, o trabalho reconstituiu historicamente dezenas de termos – como decoro, engenho, elegância, asseio, formosura, maravilha e perfeição – que perderam o sentido com a mentalidade romântica e moderna, mas puderam ser recuperados pela pesquisa”, disse Bastos à Agência FAPESP.
O decoro era a doutrina central das artes no século 18. Preceito que estabelecia a adequação de conveniências das partes de uma obra, era a noção responsável por efetivar uma beleza que pudesse ser considerada adequada. O decoro, no entanto, foi esquecido há pelo menos um século.
“Hoje, seria muito anacrônico falar nisso. No século 18, o conceito de beleza remetia a uma ideia de proveito e utilidade, isto é, a forma era a função da obra. Atualmente, a forma pode até seguir a função, mas são coisas separadas. Reconstituir a noção de decoro que norteava a produção daquelas obras, no entanto, foi fundamental para compreendê-las e para fazer uma análise consistente”, explicou.
Segundo Bastos, o modo de compreender e fazer a arte e a arquitetura se transformou de forma decisiva nos últimos 200 anos, com o surgimento do romantismo, do positivismo, da psicanálise, da fotografia e de acontecimentos como a revolução francesa, a revolução industrial. Isso gera pontos de vista anacrônicos nas análises sobre a arquitetura setecentista, como, por exemplo, a visão dos modernistas que elegeram o barroco mineiro como o primeiro momento de síntese da arte genuinamente brasileira.
“Outro anacronismo perigoso é a ideia da originalidade, bastante recorrente na historiografia. Não se pode falar em originalidade no século 18, já que naquele tempo o preceito vigente era a imitação. Não existia a ideia moderna de plágio, nem de autoria, como as conhecemos hoje. A ideia do gênio romântico que cria a obra original ao entrar em contato com os padrões sublimes da natureza é do século 19. O homem do século 18 falaria em engenhosidade, mas nunca em originalidade”, disse.
Sutileza de engenho
O preceito dominante da imitação, segundo Bastos, ajuda a entender até mesmo as semelhanças na aparência de arquiteturas e cidades luso-brasileiras da época colonial.
“Se o artista fosse bastante ‘engenhoso’, ele poderia imitar causando variações sutis na obra produzida. O efeito desse artifício virtuoso causava o maravilhamento na sociedade daquele tempo, que reconhecia que o artista havia imitado, mas com certa novidade na operação. A esse artifício, se dava o nome de sutileza ou agudeza de engenho”, destacou.
O trabalho de pesquisa teve início há dez anos, quando Bastos fez seu mestrado na UFMG. “A proposta era compreender a implantação de povoações em Minas Gerais à luz dos conceitos do século 18. A pesquisa mostrou uma grande proficuidade porque, ao compreendermos a implantação dessas povoações com os conceitos de época, pudemos renovar muitas das compreensões consagradas na historiografia, como as ideias de espontaneidade, irregularidade e desordem, por exemplo”, disse.
Durante o doutorado, em 2007, Bastos já havia recebido outra premiação nacional: o 8º Prêmio Jovens Arquitetos, com um texto publicado na Revista IEB. No artigo, intitulado Regularidade e ordem das povoações mineiras no século 18, o autor demonstrou que, ao contrário do que se pensava, as povoações históricas de Minas Gerais, como Ouro Preto, Sabará e Mariana, não se desenvolveram espontaneamente, de forma irregular.
“Aquelas povoações evidenciam a observação de preceitos de ordem, adequação e decoro relativos àquele tempo. Mas o conhecimento dessas práticas se perdeu nos séculos 18 e 19 e foi preciso também reconstituir aquelas noções”, disse.
Fonte: http://www.agencia.fapesp.br
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