Estética do arrebatamento - entrevista com Marta Dantas - Por Ana Cecília Soares
Marta Dantas: "Não é a vida que esclarece a obra; a obra e o discurso delirante preenchem as lacunas da história de Bispo"
Professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Estadual de Londrina, Marta Dantas desenvolve desde 2001 um estudo sobre Arthur Bispo do Rosário. No livro que lançou recentemente pela Unesp, resgata a relação entre arte e loucura na produção do artista sergipano, que passou boa parte de sua jornada criando miniaturas, escritos, vestimentas, bordados e objetos ligados ao sagrado.
Como surgiu o interesse em estudar a obra de Arthur Bispo do Rosário?
Tomei conhecimento da obra de Bispo em 1990, em uma exposição no Museu de Arte Contemporânea da USP. Passei anos impressionada. Mas só em 2001 tomei coragem de escrever sobre sua obra. Desde os anos de 1990 me dedico à pesquisa sobre arte marginal. Mas o estudo que gerou este livro foi desenvolvido entre 2001 e 2003. E continuo intrigada e fascinada pela obra dele.
Qual a construção teórica e qual o diferencial desta pesquisa?
Sou graduada e mestre em História, professora de "História e Teorias da Arte" e o livro é uma adaptação da minha tese de doutorado em Sociologia. Todavia, o campo teórico da pesquisa não ficou restrito à Sociologia. Tive de articular conhecimentos da História da Arte, da Estética, da História das Religiões. O livro nasceu de uma pesquisa inter e multidisciplinar, este já é um diferencial. Minha proposta foi fazer uma "escuta poética" do universo de Bispo, isto é, estar aberta para uma percepção sensível e mágica da sua obra porque, como dizia o poeta Hölderlin, "poeticamente o homem habita a terra". Não há muitos documentos "oficiais" sobre a passagem de Bispo pela terra, mas isso não foi problema, pois, no seu caso, não é a vida que esclarece a sua obra, mas a sua obra e o seu discurso delirante é que preenchem as lacunas da sua história. Afinal, o maior registro deixado por ele é sua própria obra. Assim, o livro foge da biografia tradicional, apesar de ter dados biográficos.
O que faz de Bispo um artista? Em sua opinião, o que há de mais interessante em sua obra?
Eu tentarei responder a sua pergunta com outra: o que esperamos de uma obra de arte? Esperamos que ela seja algo diferente, que não seja necessariamente bela mas que de alguma forma mexa com a gente, que gere um movimento de atração ou repulsão; esperamos que ela seja como uma janela aberta que nos convida a uma aventura ao desconhecido e que dela possamos descobrir uma outra forma de conhecimento, sobre o mundo, a vida e as coisas. Tudo isso encontramos na obra de Bispo. Também buscamos em uma produção perceber como o artista trabalha com as questões do seu fazer artístico. Nas artes plásticas, como ele lida com os materiais, como busca determinados efeitos plásticos, entre outros. Os trabalhos do Bispo revelam um conhecimento advindo do trabalho artesanal, do "bricoleur", mas não se restringem a ele. Basta repararmos em suas "vitrines", por exemplo, para descobrirmos o olhar atento de Bispo sobre a potencialidade plástica dos materiais escolhidos, como ele compõe os objetos de maneira cuidadosa visando ao efeito visual. Enfim, tudo isso faz dele um artista. Para mim, tudo é demasiadamente interessante na obra de Bispo: a relação dele com a vida e, portanto, com a morte; seu impacto visual; a sua contemporaneidade; a construção do seu universo simbólico a partir de heranças culturais afro-brasileiras e cristãs; sua relação com o sagrado; a maneira como ela exige de nós uma reflexão sobre a noção do que é arte e do que é loucura… Não consigo eleger uma ou outra característica, pois para mim sua obra é o conjunto complexo de todas essas coisas.
De que forma o livro trabalha a relação entre arte e loucura?
A loucura é um termo que aparece diversas vezes no meu texto. Escolhi o "loucura" em detrimento de doença mental justamente porque não se trata de uma leitura de Bispo pelo viés do discurso psiquiátrico. Meu aporte teórico está em Nietzsche, Michel Foucault e Maurice Blanchot, portanto, tomei a de loucura de Bispo como uma experiência trágica, intimamente ligada à consciência da morte. Também relembro como uma "loucura" noção que não é fixa, pois muda não só no decorrer da História, mas também de grupo para outro. Se Bispo, depois de ter visto anjos, ao invés de ter ido ao Mosteiro de São Bento tivesse ido a um terreiro de candomblé, talvez sua história teria sido diferente.
Assim como o artista visual cearense Leonilson, a produção de Bispo do Rosário apresenta justaposições de objetos e bordados. Além disso, há no trabalho dos dois certa tendência ao colecionismo e a narrar a vida através da arte...
Há muitos pontos em comum entre a obra de Bispo e a de Leonilson. São artistas cujas obras (ao menos parte das obras de Leonilson) estão relacionadas à morte. Podemos aproximar a obra de Bispo com a de muitos artistas do século XX: Duchamp, Arman, Tony Cragg, entre outros, todavia, Bispo dialogava com Deus, e não com a História da Arte. Isto não torna sua obra menor nem menos importante, apenas diferente.
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