Jovens artistas encontram enclave de tolerância numa cidade outrora conflituosa - por Seth Sherwood


Capital do Líbano, Beirute é uma cidade de contrastes


Aqui, espalhado pelos tapumes de madeira compensada que circundam os terrenos de obras que proliferam na cidade está o logotipo da firma de arquitetura de Norman Foster, anunciando um trio de torres residenciais. Lá, num outdoor no final da rua do atraente Buddha Bar está a assinatura do arquiteto francês Jean Nouvel, que está construindo um complexo chamado modestamente de “O Marco” [The Landmark].


Graças a alguns anos de relativa estabilidade, esta capital do Oriente Médio está construindo como os faraós. Mas essa explosão tem um custo. Os edifícios antigos, cheios de maravilhosos detalhes arábicos, vêm sendo demolidos.

Pessoas com renda de cinco dígitos já não conseguem pagar. Felizmente, há um antídoto. Quando a personalidade da cidade começa a parecer sufocada por aço e vidro, costumo pegar um táxi e dizer para o motorista a única palavra que incorpora tudo o que é mais dinâmico, inspirador e autêntico em Beirute: Hamra.

Por muito tempo o centro da vida intelectual e da política de esquerda antes da guerra civil de 1975-1990, este bairro de elegantes prédios de apartamento de seis andares, campi universitários verdes e uma agitada vida nas ruas vem passando por um renascimento próprio. Vários novos cybercafés Wi-Fi, espaços de arte contemporânea, bares aconchegantes, clubes com música eclética estão ajudando a restabelecer Hamra como o canto mais progressivo e agitado da cidade.

Ao longo da diversa rua principal, Hamra Street, matronas muçulmanas xiitas com véu preto completo passam por mulheres cristãs de minissaia e vestidas como bonecas, e fornecedores de literatura corânica compartilham a calçada com livrarias modernas que vendem volumes sobre decoração em francês.

Para encontrar alguns dos personagens mais interessantes de Hamra, você pode começar visitando a Galeria Tanit, de dois anos de existência, que se juntou à mais antiga Agial Art Gallery para elevar o status de Hamra como um centro de arte contemporânea. Numa tarde de agosto as paredes aqui estavam decoradas com várias colagens grandes de Zena el-Khalil, um escritor de 34 anos e um dos grandes artistas libaneses que morou perto de Hamra durante anos e escreveu sobre o bairro no livro de memórias “Beirute, Eu Te Amo”.

Na arte de Khalil, recortes de personagens e ícones libaneses, sírios e israelenses foram feminilizados com muito glitter, flores falsas e arco-íris. Pistolas de plástico foram cobertas com uma tinta cor de rosa de menina. Mas a tolice superficial das obras disfarça a inteligência e a compaixão de Khalil. “Eu pego objetos de violência e agressão e de über-masculinidade e de certa forma os assimilo e os cuspo para fora no meu mundo, que é cheio de amor e beleza e paz”, disse Khalil. “A morte está a alguns passos de distância. E portanto eu acho que você precisa desenvolver um humor ou ironia quando vive numa situação como esta, e isso o ajuda a passar pela vida.”

Khalil deu uma dica rápida em relação à noite: para experimentar alguns cafés da nova geração de Hamra. Para os hippies de plantão, o ponto de encontro é o Bread Republic, uma padaria e café que abriu há dois anos e abriga um pequeno mercado com itens direto do produtor do lado de fora nas terças-feiras. Para a turma criativa, o novo ponto de encontro é o T-Marbouta. Como um clube noturno java-junkie, o espaço é escondido no segundo andar de um monótono shopping center (o Pavilion Center) numa rua lateral caindo aos pedaços frequentada principalmente por velhas libanesas ansiosas para comprar sapatos de plástico baratos.

Dentro do café escuro, a fumaça de cigarros Gauloises subia entre as pinturas de artistas locais, exalada por estudantes universitários de óculos e pessoas da mídia digitando nas teclas de seus MacBooks. A música de Fairouz, a grande diva libanesa, era tocada baixinho no sistema de som. “Desde o começo, o T-Marbouta tentou ser politica e socialmente engajado”, dizia o manifesto no menu, em inglês. “Um espaço cultural aberto onde todos podem vir para socializar, ler, encontrar pessoas, surfar na internet, e discutir os temas do dia.”

Hala Alsalman, documentarista canadense de 32 anos de idade, sentou-se num sofá vintage próximo à biblioteca separada do café, que tem apresentações de filmes nas noites de segunda-feira e oferece um menu impressionante de livros, CDs e DVDs. Ela estava em Beirute para documentar a reconstrução da velha e destruída sinagoga do centro de Beirute como parte de um projeto de cinema sobre judeus no Oriente Médio.

A comunidade judaica de Beirute foi reduzida para menos de 100 pessoas, diz ela, mas o projeto da sinagoga ganhou um financiamento parcial e a luz verde do Hezbollah, a organização militante muçulmana xiita e partido político. “É um lugar muito impressionante”, disse ela, abrindo seu laptop para revelar uma grande fotografia do interior cheio de arcos e detalhes de arquitetura árabe. “Muitos libaneses nem sabem que isso existe”.

Mas o espírito da Hamra do século 21 emerge totalmente à medida que o sol se põe e as luzes de seus muitos bares de DJs e lugares de música ao vivo despertam. O espírito ecoa em cada esquina do bairro, desde as conversas animadas no lounge do Ferdinand, parecido com uma sala de estar, conhecido por seu hamburguer com geléia de blueberry, até o jazz ao vivo e pop árabe ecoando de novos e modernos bares de música como o Cello e o Mojo's.

Numa noite de terça-feira, um grupo de três músicos chamado Pindoll encheu o pequeno palco no porão de um bar chamado Danny's. O grupo passou do cool swing pelo oddball funk e uma versão de lounge jazz de “These Boots Were Made For Walkin”' enquanto uma multidão secava garrafas de Almaza Beer. Na varanda em cima, o dono Dany Khoury, diretor de filmes de arte de 33 anos, maravilhava-se com a explosão da noite local desde que abriu o bar homônimo há dois anos.

“Não havia nada aqui”, disse ele entre um gole e outro. “Agora há cerca de 20 bares” em Hamra, incluindo três novos na mesma viela. O mais notável é o Carafe. Algumas noites você pode encontrar com Steffi Peichal, um artista germano-iraquiana que pintou as silhuetas humanas que formam o mural da parede do bar. Nas quartas-feiras, o bar ressoa com o jazz americano vintage tocado por um DJ libanês de 29 anos chamado Honeydrippin' Bill. Os fregueses são uma combinação de estrangeiros e locais das mais diversas religiões da cidade.

“Hamra nunca foi afetada por religião ou política”, disse Khoury, que cresceu num bairro cristão do outro lado da cidade mas nunca havia sonhado em abrir seu bar em nenhum outro lugar a não ser em Hamra. “Você vê vizinhos cristãos, sunitas, xiitas, ortodoxos, maronitas, católicos, druze, o que quer que seja. Todos eles andam pelas mesmas ruas, fazem as mesmas coisas, comem a mesma comida.”

É uma admiração frequentemente demonstrada pelos moradores e frequentadores de Hamra. À medida que o bar se preparava para fechar, alguns barulhentos clientes libaneses saíram numa confusão de conversas em árabe, inglês e francês. Khoury sorriu. “É provavelmente o bairro mais cosmopolita do Oriente Médio.”

fonte http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald

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