Viés religioso marca espiritismo no Brasil - Por Valéria Dias
Uma pesquisa realizada na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP investigou como o espiritismo chegou ao Brasil e a formação dos primeiros grupos brasileiros que estudaram a doutrina.
O estudo de mestrado Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa brasileira, da socióloga Célia da Graça Arribas, foi publicado em livro, em agosto de 2010, pela Editora Alameda, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Aspecto religioso da doutrina espírita predominou no Brasil
Segundo Célia, entre os primeiros adeptos do espiritismo existia uma discussão se a doutrina espírita era uma religião, uma filosofia ou uma ciência. De acordo com a pesquisadora, o médico e político cearense Adolfo Bezerra de Menezes (1831-1900) foi um dos grandes responsáveis pela divulgação do espiritismo no Brasil a partir do caráter religioso da crença. Outros nomes também ajudaram a difundir o espiritismo religioso: o advogado Antonio Luiz Sayão e o jornalista e literato Bittencourt Sampaio.
“Por meio dos trabalhos intelectuais de Bezerra de Menezes e de seu grupo o espiritismo passou a ter argumentos teológicos de validação e de explicação da existência social e espiritual, tendo seus próprios dogmas e crenças. Esse lado religioso, cujo preceito ‘fora da caridade não há salvação’, foi e ainda é o mais destacado em relação ao aspecto científico da crença”, esclarece.
Do ponto de vista da Sociologia, segundo Célia, o espiritismo pode ser considerado, atualmente, uma religião, pois apresenta características que o definem como tal: “as instituições espíritas buscam ressaltar preceitos morais da crença e incentivam a prática da caridade, além de explicar as condições (sociais e espirituais) de vida das pessoas com um viés religioso”, destaca.
Codificação
Célia explica que no início da década de 1860 chegava ao Brasil: O Livro dos Espíritos (publicado na França em 1857), o primeiro livro da chamada “codificação espírita”, formada por mais quatro obras: O Livro dos Médiuns (1861), O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864), O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868). A codificação foi organizada pelo pedagogo francês Hippolyte Leon Denizad Rivail, sob o pseudônimo de Allan Kardec. Esses livros reúnem informações de caráter religioso, científico e filosófico.
Célia cita que na França, no final do século 19, ocorriam alguns episódios considerados como “sobrenaturais” e que reuniam em eventos sociais um grande número de pessoas: mesas giravam no ar, sozinhas, sem interferência de nada nem ninguém. Também podiam ser ouvidos barulhos estranhos, sem motivo aparente. Kardec decidiu investigar estes fenômenos a partir da premissa de que “o sobrenatural não existe”. E foi por meio dessa investigação que o pedagogo manteve os primeiros contatos com o mundo espiritual e com as informações fornecidas pelos espíritos. Esses dados foram “codificados” e reunidos em livros.
“A elite brasileira, formada por médicos, intelectuais, jornalistas e políticos, mantinha muito contato com a produção intelectual da França e foi por meio deles que o espiritismo chegou ao País, em 1860, com o Livro dos Espíritos”, conta. Neste primeiro contato com o espiritismo, foram formados grupos, cada um deles dando ênfase a um dos aspectos da doutrina.
O grupo dos científicos, também chamado de Espiritismo Científico, tinha sua atenção voltada para os “fenômenos” espíritas, como as aparições e manifestações de espíritos e seus efeitos (materialização, sonambulismo, hipnotismo). “Ao espiritismo assim concebido cabia, portanto, explicar tais acontecimentos por meio do método científico da observação e das experimentações, tendo como objeto não somente a matéria, mas também o espírito”, explica.
O grupo dos espíritas puros, ou Espiritismo Filosófico, conta Célia, “entendia-o na sua dimensão metafísica, isto é, como um conjunto de especulações teóricas que compartilham, com a religião, a busca das verdades primeiras e incondicionadas, tais como as relativas à natureza de Deus, da alma e do universo, divergindo, entretanto, da fé por utilizar procedimentos argumentativos, lógicos e dedutivos”, esclarece.
O grupo dos religiosos era o mais numeroso e estava mais preocupado com o lado religioso do espiritismo, atendo-se à moral e aos preceitos cristãos.
Espiritismo religioso
Segundo Célia, por volta de 1880, Bezerra de Menezes teve o primeiro contato com o Livro dos Espíritos, se identificando com o conteúdo da obra. “Ele era muito influente na sociedade e tinha reconhecimento público. Isso ajudou a difundir a doutrina”, diz. Na época, o espiritismo era considerado por muitos como uma coisa “demoníaca” e de “loucos e doentes mentais”. Mas quando Bezerra de Menezes se assume publicamente como espírita, ajuda a romper essa barreira.
Outro ponto destacado por Célia é que a partir da Proclamação da República, em 1889, o Estado brasileiro passa a ser totalmente laico (separado da Igreja). “Isso facilitou a difundir o espiritismo como uma religião, pois até então, o catolicismo era a única crença aceitável e os cultos de outras religiões eram proibidos”, aponta.
A pesquisa teve como base a análise de alguns documentos, entre eles material encontrado no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, como a coleção completa do periódico: O Reformador, publicado pela Federação Espírita Brasileira (FEB), além de outras publicações do meio espírita da época, e dos artigos de jornal escritos por Bezerra de Menezes.
A socióloga também passou um período de seis meses na França, onde acompanhou algumas reuniões espíritas e pesquisou material em arquivos locais. A pesquisa teve orientação do professor Antonio Flavio de Oliveira Pierucci e está disponível para consulta na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.
Fonte: http://www.usp.br/
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