Meio ano da Primavera Árabe lembra como gestos individuais podem mudar rumo da História Por Flávio Henrique Lino

Em seu confortável palácio de Cartago, nos arredores de Túnis, o ditador Zine el-Abidine Ben Ali não tinha motivos especiais para prestar atenção nas primeiras notícias que chegavam de Sidi Bouzid.


Até aquele sábado, 18 de dezembro de 2010, a sonolenta cidade de pouco mais de 40 mil habitantes no interior da Tunísia tivera apenas uma rápida passagem pela História: em 1943, como campo de batalha na Segunda Guerra. Mas, os jovens enfurecidos que estilhaçavam vitrines de lojas e danificavam carros nas ruas naquela noite certamente em nada se assemelhavam ao Afrika Korps de Hitler ou aos Exércitos Aliados - não eram, portanto, páreo para as bem treinadas forças de segurança do regime. Além disso, há 23 anos governando o país como se fosse sua propriedade pessoal, Ben Ali podia contar com a letargia complacente de seu povo.


Afinal, como disse a agência Reuters no dia seguinte, ao noticiar os distúrbios, "tumultos são extremamente raros na Tunísia, um país norte-africano que é um dos mais prósperos e estáveis na região". Era. Até um desconhecido vendedor de frutas chamado Mohamed Bouazizi atravessar o caminho do ditador.



Há seis meses, o gesto desesperado do jovem tunisiano de atear fogo a si próprio em protesto contra a corrupção em seu país desencadeou um terremoto político no mundo árabe.


Uma após outra, as encarquilhadas ditaduras do Oriente Médio e do Norte da África tiveram seus alicerces abalados. E os novos ventos, prontamente batizados de Primavera Árabe, trouxeram novamente para o centro da História a figura do paladino solitário, que com um único gesto é capaz de mudar o rumo dos acontecimentos e desencadear forças frequentemente muito além de sua própria compreensão.


Meio ano após a autoimolação de Bouazizi, que morreu 18 dias depois, a revolta das ruas árabes já varreu duas ditaduras - a de Ben Ali na Tunísia, em janeiro; e a de Hosni Mubarak, no Egito, em fevereiro -, instigou uma intervenção internacional contra um tirano há 42 anos no poder - Muamar Kadafi, da Líbia - e pôs em xeque a dinastia dos Assad, acossada pelo desafio mais sério em 41 anos de reinado de terror na Síria.

 
- Indivíduos podem realmente fazer a diferença em certas situações. Por exemplo, é impossível pensar que a Revolução Russa teria tomado o mesmo curso sem Lenin, e a História do século XX foi profundamente influenciada pelo impacto de Hitler na Alemanha - disse ao GLOBO, de Liverpool, o historiador Frank McDonough, da Universidade John Moores, autor de vários livros sobre a Alemanha nazista. - É claro que há tendências econômicas e sociais que afetam a História, mas os indivíduos realmente contam. Cada situação é única.

 
Para muitos, verdadeiro motor é o grupo social

 
Defensor dessa tese num artigo na prestigiosa revista britânica "History Today", McDonough cita como outros exemplos de pessoas que extrapolaram seu campo de atuação individual para ganhar dimensões sobre-humanas o teórico Karl Marx e os Beatles. Ele lembra como "O capital" influenciou todo um movimento político, e aponta o impacto que os Fab Four de Liverpool tiveram na cultura pop nos anos 60. E, no caso do desconhecido Bouazizi, McDonough indica outras possibilidades:



- Às vezes, como no caso do jovem tunisiano, um ato individual toma um significado maior se um grupo assume a sua causa.

Nem todos, no entanto, concordam em dar papel de protagonista a pessoas em voo solo pela História. Para uma vasta categoria de historiadores, o motor dos acontecimentos são as classes sociais, sendo as escolhas e atos dos indivíduos determinados por condições psíquicas e inconscientes relativas ao pertencimento a este ou àquele grupo. Desta maneira, cada ação estaria enquadrada num papel social de contornos previamente desenhados.



- A autoimolação do vendedor de frutas tunisiano é uma resposta que ele oferece à sua comunidade. A morte não é encarada como fim, mas um recomeço potencializado pela ação do martírio. Este, por sua vez, retorna à comunidade que o amparava não como pesar, mas como reforço de identidade e pedra de toque para a ação coletiva. Uma atitude individual que foi alimentada por uma expectativa coletiva - explica a professora Ana Maria Mauad, coordenadora do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF.



Segundo ela, mesmo personagens líderes de massas, como Hitler, aparecem como resposta às demandas coletivas numa determinada época. Seja como for, ator de monólogo ou músico de orquestra, o vendedor de frutas Mohamed Bouazizi deixou o anonimato das ruas de Sidi Bouzid para escrever, com as chamas que o consumiram, seu nome na posteridade.



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