Cultura como mercadoria ou como bem comum - Por Emir Sader

Imagem de Tony Shi (http://www.flickr.com/photos/tonyshi)

A discussão mais importante sobre a cultura no mundo contemporâneo se deu no marco da Unesco sobre a cultura como mercadoria ou a cultura como bem comum. A primeira expressa a ideologia hegemônica no período neoliberal, em que tudo deve se transformar em mercadoria, tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra, de que o modelo nuclear são os shopping centers. É a concepção proposta e colocada em prática pelos EUA, berço da visa mercantil do mundo.


A concepção que se opôs a ela e que, pelo bem da cultura e da humanidade, terminou triunfando, é a que considera a cultura um patrimônio da humanidade, um bem comum. Aquela coloca a cultura na esfera mercantil, esta a situa na esfera pública; a primeira a considera uma mercadoria como outra qualquer, esta a concebe como um direito.


Em Congresso recentemente realizado em Mar del Plata – Congresso Iberoamericano de Cultura – essa contraposição ficou clara. Houve quem louvasse, exibindo dados evidentes, a globalização da produção cultural, que permite que quase qualquer um possa difundir seu conjunto musical, suas pinturas, seus documentários. O aspecto democratizante da internet apareceria como irrefutável, na medida em que se contornariam filtros seletivos, de mercado, para permitir um contato direto entre produtores culturais e público.


Mas a generalização desse inegável potencial da internet não impede que ela seja majoritariamente invadida por relações mercantis, com os intercâmbios econômicos dominando amplamente o espectro da internet em todo o mundo. Além de que a vida cultural segue avançando em outra direção.


Pude destacar numa intervenção no Congresso os avanços imensos dos monopólios mercantis na esfera cultural. Bastou utilizar exemplos dos mecanismos de distribuição, em que as grandes distribuidoras e editoras se associam às grandes redes para ocupar grande parte dos espaços nas livrarias. Estas se parecem cada vez mais umas às outras, assemelhando-se mais a supermercados.


A experiência de ter ido uma vez à Feira de Frankfurt é muito significativa da produção de bestsellers hoje. Dos 7 dias, 5 dias são fechados para o público, só movimento de agentes, tentando vender o que seriam os bestsellers dos anos seguintes a editoras de todas as nacionalidades. Nos dois dias restantes, o púbico pode entrar para ver a ampla gama de estandes de editoras de todos os lugares do mundo, depois que as listas dos mais vendidos dos anos seguintes já foram cozinhadas.


Eu gosto de mencionar sempre a experiência extraordinária da Biblioteca Virtual de Clacso – Conselho Latinoamericano de Ciencias Sociais, rede de 300 centros de ciências sociais de todo o continente. Essa Biblioteca tem grande quantidade de textos do pensamento crítico latino-americano. Todos os textos são integrais e todos são de acesso gratuito para todos, sob o princípio da propriedade comum.


Apesar das enormes dificuldades que temos para que os 100 livros que coeditamos por ano possam chegar às livrarias, por dia 40 mil textos são impressos da Biblioteca Virtual. Isso mesmo: 40 mil textos por dia, um milhão e 200 mil textos impressos por mês. O que significa que existe um imenso público, jovem na sua grande maioria, ansioso por ter acesso ao pensamento crítico, que não encontra nas livrarias, mas que pode ter acesso pela Biblioteca Virtual.


Esse é um de tantos outros exemplos de democratização do acesso ao conhecimento mediante o conceito da cultura como bem comum, como patrimônio da humanidade, e não como mercadoria apropriada individualmente por quem tem recursos para comprar bens.


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Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). É secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e coordenador-geral do Laboratório de Políticas Públicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Coordena a coleção Pauliceia, publicada pela Boitempo, e organizou ao lado de Ivana Jinkings, Carlos Eduardo Martins e Rodrigo Nobile a Latinoamericana – enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (São Paulo, Boitempo, 2006), vencedora do 49º Prêmio Jabuti, na categoria Livro de não-ficção do ano.

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