Historiadores pra quê? - Por Keila Grinberg
À luz do
debate que sacode o campo de história estadunidense sobre a função social dos
historiadores, Keila Grinberg contrapõe, em sua coluna de março, as
expectativas do graduando em história no Brasil e a realidade que ele encontra
depois de formado. A reflexão sugere um novo direcionamento profissional nos
cursos de pós-graduação na área.
Pergunte a qualquer estudante de
pós-graduação em história no Brasil o que ele quer ser quando defender, e a
resposta vai ser quase sempre a mesma: professor universitário. Nos Estados
Unidos também é assim. Mas a realidade dos doutores recém-formados tem sido bem
diferente da expectativa. Com a crise econômica, a maioria, quando acha
emprego, acaba trabalhando em museus, escolas e outros lugares tidos como de
menor prestígio.
A redução de vagas no mercado de
trabalho universitário para a área de humanidades – o que, aliás, acontece nos
Estados Unidos desde a década de 1970 – é a provável razão por trás da grande
discussão sobre os programas de pós-graduação em história e a função social dos
historiadores que está sacudindo o campo desde outubro do ano passado naquele
país. Ainda que a motivação seja mesmo esta, ela está vindo para o bem.
Em outubro de 2011, Anthony Grafton,
presidente da Associação Americana de História, e Jim Grossman,
diretor-executivo da entidade, escreveram o artigo: “No more plan B” (Não mais
plano B, em tradução livre), defendendo que as chamadas carreiras alternativas,
principalmente no campo do ensino e da história pública, não deveriam ser mais
o plano B dos recém-doutores na área de história, mas sim o caminho principal.
E isto não apenas porque falta vaga no mercado, mas porque os historiadores
devem rever a sua relação com a sociedade, deixando de ver a si mesmos apenas
como profissionais que pesquisam e ensinam dentro da universidade.
O artigo caiu como uma bomba no meio
acadêmico. Houve quem criticasse, dizendo que Grafton só defendia essas ideias
por ser, ele próprio, professor de Princeton, uma das universidades de pesquisa
mais prestigiadas dos Estados Unidos. Mas prefiro entrar na fila dos que
aplaudiram, como Claire Potter e Thomas Bender, ambos professores da
Universidade de Nova Iorque.
De maneiras diferentes, os dois
defendem uma mudança radical no ensino universitário de história: Bender, para
recuperar o comprometimento dos intelectuais com a vida pública que marcou
a formação universitária na área de humanidades no século 19; e Potter, para
defender que o trabalho do historiador no século 21 deve ser feito em conjunto
e acessível ao grande público, um modelo radicalmente diferente daquele do
pesquisador solitário, em vigor no século passado, que escreve somente para
seus pares.
Para dar
conta das novas tecnologias e para estar em dia com a produção acadêmica
internacional, o historiador deve trabalhar em conjunto. Segundo Potter, os historiadores,
para dar conta das novas tecnologias, das variadas formas de divulgação dos
resultados de suas pesquisas, e para estar em dia com a produção acadêmica
internacional, deve trabalhar em conjunto com outros historiadores. E isto vale
também para o ensino e para um diálogo mais igualitário e engajado com o
público (que, nas universidades do Brasil, poderíamos chamar de extensão).
Nisto não há muita novidade, a não ser
a constatação, comum a ambos, de que o ensino universitário de história está
muito longe de prover as competências necessárias para que os recém-formados
possam se adequar aos novos tempos do mundo real. As disciplinas existentes na
maioria dos cursos de pós-graduação em história são orientadas tão somente para
a especialização excessiva e para a pesquisa individual.
Perda total
No Brasil, estamos no mesmo barco. A
diferença é que a Associação Americana de História acabou de se engajar em um grande
projeto de reflexão sobre a profissão, que, nos próximos três anos, vai estudar
e discutir os currículos de várias universidades dos Estados Unidos.
Enquanto isso, aqui, são pouquíssimos
os cursos de graduação em história que têm disciplinas como “Patrimônio” ou
“Relações internacionais” em seus currículos. Candidatos a historiadores pouco
estagiam em museus ou em centros culturais. Mesmo a área de ensino de história
na educação básica é frequentemente neglicenciada. O resultado disso é que a
maioria dos graduados na área foge das salas de aula dos ensinos fundamental e
médio e nenhum curso de pós-graduação se dedica a formar professores para a
educação básica.
Dos 63 cursos de mestrado e doutorado
existentes na área de história no início de 2012 no Brasil, apenas dois
são mestrados profissionais, um dos quais especializado em bens culturais
e projetos sociais. Nenhum é devotado ao ensino de história.
Para se ter uma ideia do contraste com
outras áreas, existem hoje 72 cursos de pós-graduação no Brasil dedicados
exclusivamente ao ensino de ciências – física, química, biologia, ciências da
terra – e matemática, entre mestrado profissional (39), mestrado acadêmico e
doutorado.
Da mesma maneira, a produção
acadêmica resultante de trabalhos realizados em conjunto é frequentemente
desvalorizada. Por decisão dos próprios historiadores, os livros didáticos –
realizados necessariamente em equipe – não são considerados pela Capes como
produção intelectual qualificada, item de fundamental importância na avaliação
dos programas de pós-graduação.
Dos 63
cursos de mestrado e doutorado em história no Brasil, nenhum é devotado ao
ensino. O mesmo vale para textos escritos em
parceria, principalmente se a coautoria for entre aluno e professor – há quem
desconfie que ou o professor se aproveita do trabalho do aluno ou o aluno se
aproveita do prestígio do professor para publicar – e para o conhecimento
divulgado em outros meios que não a palavra escrita, como filmes e sites.
A flagrante competição entre os
programas de pós-graduação – têm mais recursos e bolsas de estudos aqueles
cujos professores têm produção acadêmica considerada mais qualificada –
completa o quadro.
Daí não ser de espantar que a maioria
dos pesquisadores da área de história só se dedique a escrever livros, artigos
e capítulos para serem lidos por seus pares; que suas aulas sigam esse mesmo
padrão; e que seus alunos tenham no horizonte apenas a restrita carreira
acadêmica.
Seguindo esse padrão, perdemos todos:
pesquisadores, professores e alunos; Perdem os programas de pós-graduação,
viciados em produzir apenas o que é bem pontuado na avaliação da Capes; perdem
os alunos universitários, que têm uma formação voltada para um trabalho que
dificilmente exercerão e que deixam de ser qualificados em competências que
fatalmente deverão desenvolver. E perde o público, ávido por ler bons
livros, ver bons filmes, frequentar bons museus e navegar em bons sites de
história.
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