História e religião sob as pedras e jardins - Por Júlio Black
A dificuldade de se manter em pé boa parte do patrimônio histórico de Vassouras impede a visitação de um dos mais interessantes pontos turísticos da cidade: com o incêndio que provocou a interdição do Asilo Barão do Amparo (antigo Hospital da Santa Casa de Misericórdia), em fevereiro de 2008, o Memorial Judaico da cidade está fechado para os moradores e turistas.
Acervo ETMP/Iphan-RJ
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Em dois momentos: Antes do incêndio no asilo, Memorial Judaico era visitado por inúmeros turistas; conservação, agora, é precária |
Inaugurado em 1992 por iniciativa do casal Egon (falecido um ano antes) e Frieda Wolff - além de Luiz Benyosef, da comunidade judaica carioca e do governo municipal à época - o memorial serve para lembrar a presença dos dois únicos judeus reconhecidos na cidade no século XIX: Benjamin Benatar e Miguel Levy, que faleceram em 1859 e 1878, respectivamente.
Com jardins projetados por Burle Marx e as matzeivas (lápides) das duas personalidades, o local era visitado por turistas e praticantes da religião vindos até mesmo do exterior. A interdição do asilo, que corre o risco de desabar, impede a visitação, mas o memorial ainda consegue manter boa parte das características de sua construção e aguarda as obras de recuperação da construção histórica para ser reaberto ao público.
Se visitar o Memorial Judaico, atualmente, é impossível, conhecer um pouco mais da história dos homenageados não é tarefa difícil na cidade, principalmente em relação a Benjamin Benatar. Segundo a arquiteta do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para o Sul Fluminense, Isabel Rocha, Benatar era figura conhecida em Vassouras e um próspero comerciante.
- As relações de Benjamin (nascido na possessão inglesa de Gibraltar e residente na cidade desde 1838) sempre foram muito boas com a cidade, mas ele nunca havia declarado sua verdadeira religião. A sua esposa era católica e a maioria dos seus oito filhos foram batizados por figuras ilustres de Vassouras, como o Barão de Tinguá e o Comendador Laureano Corrêa e Castro. Quando ficou doente e próximo da morte é que ele declarou ser judeu e pediu para ser enterrado conforme a sua religião - diz ela.
Acervo ETMP/Iphan-RJ
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Apesar de todas as boas relações, os problemas de Benatar começam aí: mesmo sendo amigo do padre da cidade, o Vigário Manoel José dos Reis, ele tem o seu sepultamento no único cemitério católico de Vassouras negado (à época, cada religião administrava seu próprio cemitério e neles sepultava apenas os seus praticantes; a situação mudou apenas com a criação dos cemitérios públicos administrados pelos governos municipais).
- Apesar das tentativas de conversão, ele se negou a aceitar o catolicismo e faleceu em 15 de abril de 1859, aos 50 anos, sem um local para ser sepultado. O corpo foi embalsamado e permaneceu assim por sete dias, até o Barão de Tinguá - que era provedor da Santa Casa - sugerir que ele fosse enterrado nos jardins da instituição.
Se o corpo tinha onde repousar, a família de Benjamin precisava lidar agora com as dívidas deixadas pelo patriarca. Ciente da situação, o Vigário doa à esposa e filhos de Benatar a casa que ele havia comprado do comerciante, e que não mais poderia ser usada para abater as outras dívidas com os credores.
O mistério de Levy
A arquiteta do Iphan lembra que muito se fala sobre a presença de outros judeus na cidade, mas o único - além de Benatar - a ter sua história (pouco) conhecida é Miguel Levy.
- Acredita-se que ele era um caixeiro viajante que passava pela cidade em 1878 quando faleceu nas dependências da Santa Casa.
Não havia maiores informações sobre ele, de familiares ou a quem avisar sobre o seu falecimento. Como havia o conhecimento da religião, o mais provável é que tenham resolvido dar a ele o mesmo destino de Benatar, e enterrá-lo nos jardins da Santa Casa. Se a lápide dele não tivesse resistido ao tempo, provavelmente ninguém saberia da sua existência - acredita.
A mudança
Os túmulos ficaram nos jardins da instituição, próximos à rua, até a ampliação da Santa Casa, em 1906, quando foram transferidos para os fundos do terreno. Quando o casal Wolff ficou sabendo da história da dupla, em 1985, ano em que foram procurados por Roberto Benatar, curioso em conhecer sua árvore genealógica, eles ficaram interessados em recuperar tanto o local quanto a história a respeito dos dois.
Na primeira visita a Vassouras, no ano seguinte, descobriram que os restos mortais estavam perdidos e uma das matseivas (a de Benatar) estava muito danificada. Mesmo assim, foi feito o movimento para a construção do memorial na área do novo sepultamento a fim de preservar a memória dos dois judeus que passaram por Vassouras no século XIX.
O local abriga atualmente duas matseivas, inclusive a original de Miguel Levy, com os nomes e os registros dos dois em um dos nove jardins octogonais projetados, além de bancos para contemplação. Ainda é possível encontrar no memorial pequenas pedras sobre as lápides depositadas pelos membros da religião - tradição judaica de visitação aos mortos.
O incêndio no asilo, porém, tem impedido o acesso ao local.
- O acesso está restrito a técnicos do Iphan por questão de segurança. Fizemos o escoramento dos dois prédios e estamos na fase final do projeto para recuperá-los, aguardando apenas a aprovação.
Segundo Isabel, o memorial não está abandonado, apesar de ninguém cuidar efetivamente de sua preservação. A prefeitura faz uma capina eventual na área por questões de saúde pública.
- A Sociedade de Amigos do Memorial Judaico (ONG criada para a preservação do local) pressiona para a recuperação dos prédios para que eles mesmos possam voltar a cuidar da manutenção do memorial. Havia caravanas de judeus que vinham visitar o local, além dos turistas - disse Isabel, que destaca a importância da construção:
- [O Memorial Judaico] é um patrimônio religioso, tombado pelo patrimônio histórico e que faz parte do Centro Histórico de Vassouras. A nossa história é de miscigenação, da diversidade de grupos religiosos e raças que se respeitam há muito tempo, apesar de ainda existir o preconceito. Essa é uma história que precisa ser contada, especialmente para os jovens - defendeu a arquiteta.
Fonte: http://diariodovale.uol.com.br
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