Desde que a arte é arte - Por Carlos Velásquez


A liberdade criativa do artista tem sido exaltada de forma falaciosa pela sociedade moderna. O artista é um sujeito e, como a designação aponta, esse indivíduo está sujeito a modelos mentais, e em decorrência culturais, que definem unidades sociais. Estas, por sua vez, estão sujeitas a um sistema planetário que repousa na natureza. 

A sociedade moderna, antropocêntrica e hedonista a despeito da organicidade medieval, serve-se da arte, principalmente da visual, para dar notoriedade a seus promotores. Nas sociedades antigas não havia artistas famosos. 
As obras de arte passaram a ser assinadas e devidas em direitos a seus autores somente a partir do renascimento, por volta do século XIV, na Europa. Mas isto não significa que outrora os artistas podiam produzir segundo a própria vontade. Como sujeitos, as criações artísticas da antiguidade devotaram-se principalmente a finalidades rituais coletivas, de extrema importância naquele modelo mental.
A economia do capital, que está à base da sociedade moderna, requer notoriedade individual para seus fins comerciais e a arte tem se constituído um excelente meio de notabilização. 

Não é a toa que a figura do mecenas surgiu na renascença e que as artes plásticas, na época, se tornaram realistas e ocupadas com o registro e a divulgação de mercadores, banqueiros, políticos e religiosos, assim como da suntuosidade de seus pertences e costumes.

Isto não significa que a arte seja um embuste. Mas mesmo quando, apesar de constrangimentos conjunturais, o artista oferece uma verdadeira experiência estética, esse resultado é alcançado, via de regra, por um estado de “surto criativo” que, longe de ser controlado pelo artista, impõe-se a ele como se a obra estivesse pronta e acabada em algum lugar límbico. A psicologia conhece este fenômeno pelo conceito de “complexo autônomo”.
A criação não é própria do homem. Lavoisier foi claro neste sentido: “Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. E é justamente a capacidade de transformação o que define o artista. 

Ele transforma o disposto na natureza (sons, cores, movimentos, etc) em organismos qualitativos que constituem experiências de unidade e correlação entre suas partes. E a questão é que as partes constitutivas da obra não se restringem a seus componentes internos, mas se estendem a relações sinérgicas destes com o entorno. Portanto, o artista nunca é ente absoluto, criador de uma experiência estética de arte.


Rejeito a ideia de que nossa sociedade atual superou a modernidade. Não somos uma sociedade pós-moderna já que os postulados que definem a modernidade continuam em voga. Os programas contemporâneos de incentivo às artes formalizaram juridicamente as práticas históricas (modernas) quanto à remuneração do artista. 
A empresa que decide colocar parte da sua carga tributária na promoção de arte, espera, clara e declaradamente, notabilizar-se com o fato. Da mesma forma que Jan van Eick foi pago para exaltar a presença de um mercador que ostentava um turbante vermelho, peça cara e exclusiva na época, uma empresa atual financia uma turnê de artistas que irão atrair a atenção para seus produtos ou para a sua imagem de respeitabilidade.
Se o artista almeja o financiamento da sua obra criativa, deve começar por identificar o que essa obra teria para oferecer ao seu financiador. Mais uma vez, isto não é diferente desde que as relações econômicas e sociais dos humanos repousam sobre o princípio da troca de valores. 

Leonardo da Vinci deixou muitas obras e projetos inconclusos para ceder tempo de produção às piadas, truques de magia e canções que devia preparar para divertir as figuras influentes que frequentavam a casa do seu mecenas, Ludovico Sforza.

Mas é possível ser artista e permanecer à margem de programas de incentivo? Em aparência sim. A rigor não. Tomemos como exemplo um artista extremamente cotado. Alguém que com uma só obra recebe mais dinheiro que um professor de artes na vida inteira. Ele não precisa correr atrás de editais e escolher as palavras e os estilos que agradariam à comissão de seleção, mas tampouco pode criar a seu bel prazer. 
Não basta em algum momento ter dado mostras de grande talento, aliás, talvez não seja indispensável. Não há um artista nestas condições que não seja suportado por grandes estratégias mercadológicas e parte fundamental dessas ações se concentra em definir a imagem pública do artista e da sua obra. Em outras palavras, o artista se torna seu próprio constrangimento imagético e criativo, sendo que ele,como marca, adquire valor simbólico de troca.
A história universal conta numerosíssimos momentos em que a “liberdade assujeitada” da arte tem largamente ultrapassado suas condições mundanas. Patrocinados ou não, estou certo de que esses momentos revelam os grandes e verdadeiros artistas.


Carlos Velásquez é professor do Curso de Belas Artes da Unifor.


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