Judeus questionam seu futuro na Alemanha diante do crescente antissemitismo – Por Eric Thayer, Matthias Bartsch, Patrick Kremers, Juliane von Mittelstaedt e Conny
O tom ácido do debate sobre a
legalidade da circuncisão chocou os judeus que vivem na Alemanha e reabriu velhas
feridas. À luz do que muitos dizem serem dificuldades contínuas, alguns estão
agora se perguntando se o país de fato os quer ali.
Arye Sharuz Shalicar estava
procurando um lugar que pudesse chamar de lar. Não era um desejo incomum. Ele
não usa quipá e não é um judeu praticante. Ele cresceu no bairro de Wedding em
Berlim, cercado por crianças turcas e árabes – uma combinação difícil.
Mais
tarde ele vestiu o uniforme do exército alemão durante o serviço militar.
Depois foi para a faculdade. Mas em determinado ponto Shalicar não conseguiu
mais ficar na Alemanha, onde estava sujeito a intimidação diária, animosidade
desvelada e antissemitismo.
Em 2001, com 35 anos, Shalicar se
mudou para Israel e começou uma carreira lá. Durante os últimos três anos ele trabalhou
como porta-voz do exército israelense. Shalicar não está surpreso com os
ataques mais recentes contra os judeus na Alemanha.
Ele diz que cresceu tendo
que defender a si mesmo como judeu – até com os punhos, se necessário. Shalicar
escreveu um livro sobre suas experiências, e diz que ainda gosta da Alemanha.
Ele visita seus pais duas vezes por ano em Berlim, onde eles ainda moram, e
lembra com carinho de sua infância.
“A Alemanha sempre fará parte de mim. Eu
tenho um sotaque alemão quando falo hebraico, e falo com meu filho em alemão”,
diz ele. Mas a Alemanha não consegue oferecer o lar que ele deseja.
Charlotte Knobloch, ex-presidente
do Conselho Central de Judeus, já teve de explicar várias vezes para colegas
judeus porque ela escolheu ficar na Alemanha depois de 1945, apesar de se
tratar do país que perpetrou o Holocausto.
Mas Knobloch parece ter resolvido
para si mesma as questões sobre seu lar, escrevendo um livro sobre isso
intitulado “In Deutschland Angekommen”, ou “Chegando à Alemanha”, que será
publicado em outubro.
Ela descreve seu sonho de uma terra natal judaica no
país, e como ela viu a abertura de uma sinagoga e um centro comunitário judaico
no coração de sua cidade natal, Munique, há seis anos, como a missão de sua
vida e a conquista de um sonho. O livro soa conciliatório. Mas isso foi antes do debate
sobre a circuncisão começar na Alemanha.
Desde junho passado, quando o
tribunal regional de Colônia determinou que os médicos que circuncidarem um
menino por motivos religiosos podem ser acusados de cometer danos físicos,
parece que tudo mudou para ela.
“Eu me pergunto seriamente se este país ainda
nos quer”, escreveu num editorial para o jornal Süddeustche Zeitung na semana
passada. Em sua visão, a circuncisão é um ritual essencial da fé judaica.
Ela
ficou surpresa com o número de oponentes da prática que se manifestaram,
especialmente médicos e advogados. Alguns simplesmente queriam evitar que as
crianças fossem circuncidadas, mas outros pareciam sugerir que judeus e
muçulmanos querem mutilar e traumatizar seus filhos de forma injustificada.
Knobloch escreveu que ela
defendeu a presença dos judeus na Alemanha durante décadas, “muito embora
judeus sejam atacados verbalmente e apanhem a ponto de precisarem ser
hospitalizados”. Ela também disse que as fundações religiosas judaicas estavam
sendo “arrastadas para a lama” pelo debate, que “coloca dúvidas sobre o futuro
da já minúscula população judaica na Alemanha”.
Ambivalência em relação à
Alemanha
Será que ser judeu na Alemanha
ficou mais difícil e mais complicado, se não impossível? Será que a Alemanha de
2012 não é mais um país onde os judeus podem se sentir em casa?
Muita coisa convergiu nos últimos
meses. Primeiro, aconteceu o 40º aniversário do massacre de atletas israelenses
nos Jogos Olímpicos de Munique, um evento que mais uma vez enfatizou a
ignorância dos policiais e políticos da Alemanha. Depois veio o controverso
poema de Günter Grass sobre Israel. Alguns também se ofenderam com o fato de
que Judith Butler, uma crítica mordaz de Israel, receberá o Prêmio Adorno esta
semana.
E então houve repetidos ataques
contra judeus, sobretudo por extremistas de direita, mas também por muçulmanos.
Na primeira metade de 2012, houve 13 ataques violentos, 11 deles realizados por
neonazistas. Embora judeus e estabelecimentos judeus na Alemanha tenham sido
atacados em apenas 16 ocasiões em 2011, em comparação com 114 na França, isso
não é nenhum motivo para celebração.
A realidade inclui um ataque contra o
rabino Daniel Alter de Berlim, que apanhou de jovens árabes em frente de sua
filha de sete anos há duas semanas e teve o osso molar quebrado.
Cerca de 104 mil membros da
comunidade judaica moram na Alemanha. Mas tudo isso levanta a questão de como a
sociedade alemã lida com esses judeus vivendo em seu meio. Ela vê as tradições,
costumes e conquistas judaicas como um bem? Ou muitas pessoas têm dificuldades
de suprimir seu antissemitismo e ódio abafado da diversidade?
Olhando para as maiores
comunidades judaicas da Alemanha, é fácil ver que muitos judeus alemães se
sentem ambivalentes em relação ao país que vez ou outra é difícil de ser
chamado de lar. Porque, por exemplo, seria perigoso professar abertamente sua
fé.
“Eles não podem nos tratar mal”
O colégio teológico judaico
Abraham Geiger em Potsdam aconselha seus 28 estudantes a rabino a não usar o
quipá – o adereço de cabeça judaico – em público. Preocupada com o bem-estar
dos alunos, a escola ortodoxa Or Avner em Berlim há muito tempo lançou normas
semelhantes.
Sempre que seus alunos vão a excursões para o zoológico ou museu,
são alertados: “falem alemão, não hebraico, e coloquem um boné sobre o quipá
para não dar motivos para pessoas estúpidas se irritarem.” Camuflados dessa
forma, jovens judeus andam nos trens do metrô de Berlim.
Na semana passada, alunas da Or
Avner foram abordadas agressivamente e chamadas de “porcas judias” por um grupo
de jovens. A diretora da escola Heike Michalka diz que tem de lutar bastante
para defender o que já deveria ser evidente. “Eles não podem nos tratar mal”,
diz ela de forma desafiadora. “A vida judaica precisa ser uma parte visível da
nossa sociedade.”
O jornalista judeu Philipp Peymen
Engel, 29, descobriu como as coisas podem ser duras quando pesquisou como as
pessoas se sentiam no bairro de Kreuzberg em Berlim para o jornal judaico
Jüdische Allgemeine. Lá ele encontrou um homem libanês de 23 anos chamado Adil,
que estava com meia dúzia de amigos e um pitbull na coleira perto da estação de
metrô. “Escória” foi a palavra que Adil usou para descrever os judeus para o
repórter.
“Odeio judeus”, disse. “Eles são um bando sujo”. Se ele conhecia
algum judeu pessoalmente? Não, mas assistia montes de documentários sobre
judeus na TV de língua árabe. “Eles dominam o mundo e oprimem os muçulmanos”,
disse.
Então, relata Peyman Engels, Adil
olhou para ele e seu colega e perguntou: “A propósito, para que jornal que você
trabalha? Você é judeu ou coisa do tipo?” Os dois homens disseram que não eram.
Primeiro, eles se sentiram aliviados, mas “o alívio logo se transformou em
vergonha por ter tido medo de contar a verdade".
Há poucos meses Peyman Engel se
mudou do Vale de Ruhr para a capital alemã, onde vivem cerca de 10.600 membros
da comunidade judaica. Ele diz que foi insultado ou tratado grosseiramente
repetidas vezes quando reconhecido como judeu, mas ficou pior depois que o debate
sobre a circuncisão começou. “Há uma grande ansiedade entre judeus”, disse ele.
“Alguma coisa está errada”
Berlim tem a maior comunidade
judaica. Muitos judeus emigraram para lá de antigos países do bloco soviético,
depois da reunificação da Alemanha em 1990. Muitos elogiam o fato de que os
alemães construíram um memorial do Holocausto do lado do Portão de
Brandenburgo, um símbolo nacional. Muitos ficaram aliviados quando as pessoas
foram às ruas recentemente para protestar em solidariedade ao ataque brutal
contra o rabino em Berlim.
Um colega dele em Hamburgo, o
rabino Shlomo Bistritzky, ainda se sente seguro na cidade mesmo depois do
ataque. Ele sempre usa terno escuro e quipá. “Alguns dias eu fico no escritório
até 3h da manhã, mas posso ir para casa andando sem ficar com medo”, diz
Bistritzky.
Mesmo assim, ele tem a impressão
de que alguma coisa mudou. “Você nunca sabe o que as pessoas estão de fato
pensando”, diz ele. “E é óbvio que o debate sobre a circuncisão levou muitas
pessoas a expressarem sua opinião”.
Ficou “muito claro que alguma coisa está
errada com o relacionamento entre judeus e alemães”, acrescentou Bistrizky. “No
que diz respeito à convivência, parece que não avançamos tanto quanto
acreditávamos.”
Ainda assim, o bairro de
Grindelviertel em Hamburgo tem uma comunidade judaica vívida. Uma escola
judaica abriu lá em 2007. O centro comunitário tem um clube de idosos, um clube
de xadrez, uma biblioteca e um clube esportivo judaico. Um supermercado local
oferece produtos kosher, há um café administrado por judeus, e uma loja que
vende vinhos kosher, a maioria de Israel.
Ulrich Lohse é dono da loja de
vinhos. Parado em frente a uma prateleira contendo cerca de 100 variedades, o
homem de 66 anos usa um terno, embora tenha pendurado o paletó sobre uma
cadeira. A discussão sobre a circuncisão também mudou sua relação com seu lar.
“Eu tinha esperança de que os alemães aceitariam melhor”, diz.
Ele acha que é
absurdo que as pessoas até mesmo pensem que os pais judeus querem machucar seus
filhos. “É discriminatório fazer essas afirmações sobre os judeus”, diz ele.
Incidentes não registrados
Para tentar entender como muitos
judeus alemães se sentem atacados, pode ser útil considerar brevemente como
seria ser acusado de ser um pedófilo. É mais ou menos assim que Alexa Brum
descreve. A mulher de 64 anos é professora há quatro décadas, e atualmente é
chefe da comunidade judaica da Escola Lichtigfeld em Frankfurt.
Ela diz que
costumava se sentir “ótima” na cidade de mentalidade liberal, onde os eleitores
até escolherem um homem de fé judaica nesta primavera – Peter Feldmann – como
prefeito. O “Times of Israel” deu a notícia, e até o Congresso Mundial Judaico
achou notável.
Brum acredita que todas as
pessoas devem ser capazes de coexistir sem tensão e tolerar umas às outras na
Alemanha moderna, assim como os alunos em sua escola, onde crianças judias e
não judias não veem nada de errado em aprender lado a lado.
Mas então veio a
acusação de que os judeus estavam machucando e traumatizando seus filhos ao
circuncidá-los, uma sugestão que a professora considerou um ataque não só à sua
religião, mas também um ataque pessoal a ela. “Foi devastador”, disse.
Assim como Knobloch, ela se
perguntou se ainda queria morar na Alemanha. Ela não teme um ataque, mas sim a
perda de abertura da Alemanha e “o fato de que os babacas do país um dia terão
a vantagem no debate e poderão decidir como as minorias devem viver suas vidas
e praticar sua religião".
Brum quer ficar onde está, por
enquanto, como parece que a maior parte dos outros judeus da Alemanha planeja
fazer, por mais horrorizados que estejam. Um desses é Alon Meyer, de 38 anos,
chefe do Makkabi, uma academia e clube esportivo em Frankfurt com cerca de
1.300 membros.
Pessoas como Meyer, que passam a
maior parte do tempo em centros esportivos e campos de futebol na periferia da
cidade, têm uma visão clara da coexistência religiosa na Alemanha. A cidade
pode agora ter um prefeito judeu, mas há muitos incidentes que nunca chegam aos
jornais.
Por exemplo, Meyer costuma pedir proteção à polícia quando a primeira
equipe da TuS Makkabi joga contra seus rivais locais, muitos dos quais são
muçulmanos ou palestinos. “Recebemos muito abuso verbal”, diz ele. Cerca de uma
vez por ano há um confronto sério que termina com feridos.
Trazendo as diferenças à tona
Esses tipos de ameaças fazem
parte da vida cotidiana de judeus na Alemanha, tanto no campo de futebol como
em lugares onde os judeus são comuns.
A principal sinagoga da
Comunidade Israelita de Munique e Bavária do Norte, situada próxima à praça
central Viktualienmarkt em Munique, é talvez o símbolo mais poderoso de onde a
vida dos judeus pertence na Alemanha: o coração da cidade.
E, entretanto o prédio parece uma
fortaleza. Carros de segurança guardam o acesso à sinagoga 24 horas por dia. A
segurança aumenta quando as crianças do jardim da infância e da escola judaica
da sinagoga chegam e vão embora. Autoridades acreditam que há uma séria ameaça
de ataque – mesmo contra as crianças.
Aaron Buch, porta-voz da
comunidade judaica de Munique, diz que muito antes de o debate da circuncisão
ter começado ele experimentava o antissemitismo diariamente. As pessoas
telefonavam, escreviam e-mails ou cartas, e muitas até davam seus nomes.
Se
elas querem expressar seu desgosto pessoal de um indivíduo (digamos, o âncora
de TV judeu Michel Friedman), regurgitar o velho mito de avareza dos
empresários judeus (bônus para os banqueiros dos EUA, por exemplo), ou reclamar
da política externa ou da segurança de Israel (como criticar o estilo de
Netanyahu, por exemplo), Buck é obrigado a ouvir cada uma das queixas. “As
pessoas simplesmente soltam toda sua raiva pelo telefone”, queixa-se Buck. E
normalmente acrescentam de forma retórica: “não há nenhuma lei contra dizer
isso”.
À luz de tudo isso, qualquer
desejo para uma “relação tranquila” entre judeus e outros alemães pareceria um
tanto ingênuo. É quase como se a decisão sobre a circuncisão do tribunal
regional de Colônia tivesse apenas trazido à tona a realidade das verdadeiras
diferenças entre as pessoas.
O ex-rabino chefe de Israel, Meir Lau, que
sobreviveu ao campo de concentração de Buchenwald quando era menino, disse
recentemente numa rádio israelense: “É incrível ver que os alemães estão
ficando tão sensíveis ao choro de um bebê. Não foi o que eu vivi na minha
infância.” Charlotte Knobloch escreve que está cansada de “dar aos alemães a
sensação de que o tempo pode curar até a maior ferida concebível".
No ano passado, 122 judeus
alemães pediram cidadania israelense. Esses números têm sido constantes durante
anos. Mesmo assim, Israel está se tornando uma opção cada vez mais interessante
para uma nova geração de judeus alemães.
Alguns emigram permanentemente,
enquanto outros estudam em Israel por um ano, assim como seus amigos não judeus
que se mudam para Nova York ou Barcelona. Mas todos eles concordam em uma
coisa: estão buscando um lugar em que possam se sentir em casa como judeus.
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