Círio de Nazaré: uma manifestação de crença, devoção e cultura. Entrevista com João de Jesus Paes Loureiro
"O Círio simboliza a saída e
o retorno da Imagem da Santa ao seu lugar de escolha original", diz o
escritor.
"O Círio de Nazaré de Belém
do Pará contém a possibilidade de plurissignificação interminável,
ressignificado ou multissignificado pelo dinamismo complexo e riquíssimo da
cultura", diz o escritor e professor da Universidade Federal do Pará, João
de Jesus Paes Loureiro à IHU On-Line. Para ele, a maior celebração religiosa católica
do Brasil, que reúne aproximadamente seis milhões de pessoas em todas as
procissões, representa uma identificação "harmoniosa entre crença, devoção
e cultura". A celebração, que acontece anualmente desde 1793 na cidade de
Belém, no Pará, revela que a "força mítica do imaginário amazônico (...)
se abriu para a consciência do sobrenatural religioso, encontrando nele uma
epifania espiritual de devaneio e esperança numa transcendência espiritual
católica, de uma forma que os mitos culturais não podiam oferecer",
assinala.
Na entrevista a seguir, concedida
por e-mail, Paes Loureiro enfatiza que o "predomínio à dimensão de
transcendentalidade mítica da cultura amazônica talvez seja motivador dessa
popularidade e ardorosa devoção à Nossa Senhora de Nazaré".
Para ele, o
que faz com que o Círio de Nazaré seja particularmente paraense "é a sua
configuração cultural e sua esteticidade. A estrutura do cortejo litúrgico como
um rio humano que passa; a natureza das promessas levadas para serem ofertadas
à Santa; a convivialidade fortalecedora de uma impressionante comunidade
emocional; o fanatismo autoflagelador da corda puxada pelos romeiros; as
vestimentas do promesseiros, de anjos, mortalhas etc".
João Jesus de Paes Loureiro é
mestre em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade de São Paulo -
PUC-SP, e em Semiótica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, doutor
em Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris. Atualmente, leciona na
Universidade Federal do Pará.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a origem do
Círio de Nazaré?
João de Jesus Paes Loureiro -
Origem mítica, como decorrência do milagroso aparecer da imagem da Virgem de
Nazaré a um homem simples, no tronco de uma árvore frondosa. Construída uma
capela tosca para abrigá-la, ao ser levada para o altar, a imagem
misteriosamente retornou à árvore, seu altar da natureza. O gesto e o fato se
repetiram tantas vezes, que terminaram por construir a Capela no lugar em que
Santa desejava ficar, e onde hoje está erguida a Basílica Santuário. O Círio simboliza
a saída e o retorno da Imagem da Santa ao seu lugar de escolha original.
IHU On-Line - A que atribui a
popularidade do Círio de Nazaré? Por que há tanta comoção em torno de Nossa
Senhora de Nazaré, a Rainha da Amazônia?
João de Jesus Paes Loureiro - À
identificação harmoniosa entre crença, devoção e cultura. Também à força mítica
do imaginário amazônico, do que conceitua como sua poética do imaginário, que
se abriu para a consciência do sobrenatural religioso, encontrando nele uma
epifania espiritual de devaneio e esperança numa transcendência espiritual
católica, de uma forma que os mitos culturais não podiam oferecer. Ainda que
diferentemente dos encantados do fundo dos rios e da floresta, o predomínio à
dimensão de transcendentalidade mítica da cultura amazônica talvez seja
motivador dessa popularidade e ardorosa devoção à Nossa Senhora de Nazaré.
IHU On-Line - Em que medida é
possível dizer que o Círio expressa a identidade da Amazônia? Quais são os
elementos místicos, poéticos e simbólicos que estão em torno do Círio de
Nazaré?
João de Jesus Paes Loureiro - Na
medida em que há uma sensibilidade mitologisante da sociedade ribeirinho-rural
paraense e uma integração identificadora da cultura como intercorrentre entre
Círio e sociedade. O que faz com que o Círio de Nazaré seja paraense é a sua
configuração cultural e sua esteticidade. A estrutura do cortejo litúrgico como
um rio humano que passa; a natureza das promessas levadas para serem ofertadas
à Santa; a convivialidade fortalecedora de uma impressionante comunidade
emocional; o fanatismo autoflagelador da corda puxada pelos romeiros; as
vestimentas do promesseiros, de anjos, mortalhas etc.; a visualidade plástica e
de apelo sensível; a sua etnocenologia, como comportamento espetacular
organizado, o apelo à participação de artistas; a culinária característica e
celebrada como entusiasmo profano coroando o dia; o extravasamento temático nas
artes; e a presença do estético como uma ética de compromisso religioso.
IHU On-Line - Quais são os signos
que compõem o Círio de Nazaré? Em que medida ele pode ser lido como um
"preamar de signos”?
João de Jesus Paes Loureiro - Os
signos-síntese são três: A berlinda com a Santa, signo da Fé; a corda puxada
pelos fiéis, signo da Devoção; o brinquedo de Miriti de Abaetetuba, signos da
cultura artística. São signos sintetizadores da multidão de signos
complementares que, à semelhança de uma preamar nos rios, espalham-se em
plenitude pela ruas da peregrinação.
IHU On-Line - Qual o significado
da corda do Círio? Por que muitos fiéis almejam um pedaço da corda após a
procissão? O que isso significa?
João de Jesus Paes Loureiro - A
Corda, porque vem atada à berlinda da Santa, impregna-se do sagrado que a
berlinda significa. Como tal, no todo ou em partes minúsculas em que é cortado
pelo povo, representa um amuleto, um pólen de possíveis milagres ou curas
milagrosas. Significa que o sagrado não é um signo em si nem para si. Como uma
luz clareia tudo que entra em suas proximidade ou relação.
IHU On-Line - O Círio pode ser
analisado como uma festa religiosa, profana, cultural, mercadológica e
tecnológica, em termos de amadurecimento das tecnologias digitais? Por quê?
João de Jesus Paes Loureiro - O
Círio de Nazaré de Belém do Pará contém a possibilidade de plurissignificação
interminável, ressignificado ou multissignificado pelo dinamismo complexo e
riquíssimo da cultura. Hoje, desenvolve-se uma impressionante motorromaria
(Círio de milhares de motocicletas que reproduzem signos e visualidades da
romaria); o Círio Virtual, seguido pela internet em vários estados e países.
Fonte: http://www.adital.com.br
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