Poderes femininos nos interstícios da ordem patriarcal - Por José Tadeu Arantes
As mulheres da elite rural
brasileira do fim do século 19 e início do século 20 podem ter exercido um
papel muito mais ativo, dentro e fora do lar, do que deixou transparecer o
discurso ideológico dominante.
Para além da epiderme da ordem
patriarcal, elas teriam sido centros de gravidade de famílias extensas,
atuantes nos negócios e opinantes na política. Tal é a generalização que
poderia ser feita a partir do caso singular – e exemplar – estudado por Marcos
Profeta Ribeiro, professor da Universidade do Estado da Bahia.
O estudo foi feito em mestrado
orientado por Maria Odila Leite da Silva Dias, professora titular aposentada da
Universidade de São Paulo, onde mantém atividades de orientação de mestrado e
doutorado, e professora associada da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, e resultou no livro Mulheres e poder no Alto Sertão da Bahia, publicado
com apoio da FAPESP.
Ribeiro se ocupou do vasto acervo
de cartas deixado por Celsina Teixeira Ladeia, irmã do educador Anísio Teixeira,
idealizador da Universidade de Brasília e notável defensor da reforma
educacional no país.
Celsina (1887-1979) testemunhou,
quando criança, a última década do século 19 e, como adolescente e adulta, as
oito primeiras décadas do século 20. O livro enfoca um período específico da
vida de Celsina, o quarto de século que se estendeu de 1901 a 1927.
“Nesse trabalho, Ribeiro dá uma
importante contribuição aos estudos das relações de gênero, ao investigar os
espaços de autonomia, ocultados pelos papéis atribuídos às mulheres pela
Igreja, pela cultura e pelas tradições das elites”, disse Maria Odila.
“As cartas, estudadas com argúcia
pelo autor, são expressivas não apenas pelo que dizem, mas também e
principalmente pelo que silenciam”, afirmou a professora.
Celsina era filha do coronel
Deocleciano Pires Teixeira (chefe político do município de Caetité, no Alto
Sertão da Bahia) e de Ana Spínola Teixeira, a terceira de três filhas do
coronel Antonio de Souza Spínola (grande fazendeiro de Lençóis, na Chapada Diamantina),
com as quais Deocleciano se casou sucessivamente.
Fruto de um casamento que foi,
antes de tudo, um arranjo político entre duas famílias poderosas, Celsina foi a
segunda filha de sua mãe e quinta integrante da prole do pai – que teria um
total de 14 filhos e filhas.
“Sua intensa atividade epistolar,
iniciada aos 14 anos de idade, em 1901, estendeu-se até meados da década de
1960. Dessas mais de seis décadas de produção resultou um espantoso acervo de
1,5 mil cartas, emitidas ou recebidas”, disse Ribeiro.
Ribeiro esmiuçou parte desse
legado, estudando as cartas produzidas até 1927, quando, em decorrência do
estresse sofrido com a prolongada doença e a morte do marido (o fazendeiro e
farmacêutico José Antônio Gomes Ladeia, neto do Barão de Caetité) e as
primeiras manifestações da doença mental que afetou seu único filho (Edvaldo
Teixeira Ladeia, morto precocemente aos 35 anos), Celsina viveu um severo, mas
rapidamente superado, episódio de depressão, ou, como foi diagnosticado na
época, uma enfermidade causada por “incômodos nervosos”.
Essas cartas colocam diante de
nossos olhos uma mulher muito ativa, não apenas na gestão do lar, mas também na
administração das fazendas, na promoção da filantropia e nas articulações de
bastidores da política local.
“Celsina mantinha uma rigorosa
contabilidade, tomava decisões em relação aos empregados, planejava
investimentos para enfrentar as graves secas que castigavam o sertão, estava a
par das variações do preço do gado e sabia aproveitar as melhores ofertas dos
compradores e recusar as oportunidades de risco”, disse Maria Odila.
Dotado da singularidade que
caracteriza cada trajetória humana, o caso de Celsina não foi, no entanto,
único. A vasta documentação estudada por Ribeiro desvelou uma participação
intensa das mulheres da elite local nos diversos aspectos da vida cotidiana.
Tanto que, em seu trabalho de
doutorado, Ribeiro pretende ampliar o foco, estudando as trajetórias de outras
mulheres, inclusive da mãe de Celsina, Ana Spínola Teixeira.
“Os documentos sugerem uma
revisão da questão patriarcal. Por meio deles, percebemos que as mulheres da
elite exerceram poderes difusos e periféricos que não transparecem ao primeiro
olhar. E constatamos que o ambiente doméstico era um espaço de articulação do
poder público”, disse Ribeiro.
Mulheres e poder no Alto Sertão
da Bahia: A escrita epistolar de Celsina Teixeira Ladeia (1901-1927)
Autor: Marcos Profeta Ribeiro
Lançamento: 2012
Mais informações:
www.alamedaeditorial.com.br/mulheres-e-poder-no-alto-sertao-da-bahia
Fonte: http://agencia.fapesp.br
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