“Ser insensível ao sofrimento das pessoas não é atitude cristã”, afirma teólogo Jung Mo Sung – Por Tiago Chagas


O teólogo sul-coreano Jung Mo Sung, doutor em ciências da religião e católico, mas com livre trânsito entre lideranças evangélicas, tradicionais e pentecostais, devido ao seu amplo conhecimento acadêmico a respeito do cristianismo, afirmou em entrevista à revista Cristianismo Hoje que pesa sobre os cristãos da atualidade a responsabilidade de protagonizar iniciativas que reduzam as desigualdades sociais.

Jung Mo Sung acredita que a origem das injustiças é a natureza humana, e pontua que tais injustiças são oriundas do livre arbítrio: 

“É mentira colocar sobre os ombros do Senhor a responsabilidade pela pobreza e pelas injustiças, e não sobre o pecado. Deus nos criou como seres livres, e como tais, somos produtores da pobreza e da injustiça”.

Falando sobre teologia da libertação, amplamente difundida nas fileiras católicas, e da teologia da missão integral, mais presente no meio protestante, Sung afirma que ambas podem contribuir pela construção de um mundo mais justo: 

“Deus não é indiferente aos sofrimentos dos pobres e dos injustiçados. A consequência social dessa visão teológica é que o cristianismo ainda tem ou pode ter um papel social importante no mundo”.

Para o teólogo, a teologia da missão integral, que prega a divulgação do evangelho aliada à prática de ações sociais que traduzam a mensagem em contribuições concretas aos necessitados, é uma importante ferramenta: 

“Para muitos grupos, a prioridade das Escrituras ficou reduzida ao anúncio sem, podemos dizer, uma ação concreta que desse consistência à afirmação de que Jesus é o Senhor. A teologia da missão integral tentou superar essa dicotomia fazendo uma equação simples – a Palavra de Deus mais a ação social”, pontua.

De forma enfática, Jung Mo Sung afirma que não estar atento às necessidades das pessoas ao redor é incoerente com a mensagem bíblica: 

“Se Deus não é indiferente, ser indiferente ou insensível aos sofrimentos das pessoas pobres ou vulneráveis não é atitude compatível com o cristianismo [...]Essa é a convicção de que não se pode viver a fé cristã sem se encarnar no mundo, na luta contra as injustiças e mentiras que matam!”.

Numa forte crítica à teologia da prosperidade, Sung afirma que “identificar as bênçãos com a riqueza é critério mundano”, e dispara contra líderes que promovem essa doutrina: “É por isso que pastores e bispos se vangloriam da sua riqueza e da posse de bens de luxo, como aviões particulares”.

Leia abaixo, a íntegra da entrevista do teólogo Jung Mo Sung à revista Cristianismo Hoje:

O senhor é conhecido por seus vários trabalhos na área de economia, onde aborda temas como mercado e pobreza sob ótica cristã. Uma pergunta sempre surge quando se trata dessa relação – se Deus existe, por que há miséria e injustiças sociais?

O tema da economia tem sido um dos objetos fundamentais da minha reflexão teológica porque Deus é Deus da vida e Cristo veio anunciar a boa nova aos pobres – a boa notícia de que também os pobres têm direito a uma vida digna. E a vida não é possível sem bens materiais, que fazem parte da economia. Jesus veio nos mostrar a verdadeira face de Deus, contra a mentira que coloca sobre os ombros do Senhor a responsabilidade pela pobreza e pelas injustiças, que são frutos do pecado. Deus nos criou como seres livres, e como tais, somos produtores da pobreza e da injustiça.

Um de seus livros é Teologia e economia: Repensando a teologia da libertação e utopias. Passada a divisão ideológica do mundo entre esquerda e direita, qual o legado da teologia da libertação, hoje?

Em primeiro lugar, o que acabou foi a chamada Guerra Fria entre o bloco capitalista e o comunista. Mas as injustiças e graves desigualdades sociais ainda continuam no mundo. Norberto Bobbio, um importante teórico liberal, disse que ainda hoje faz sentido falar em direita e esquerda. Para ele, ser da direita é crer que as diferenças sociais são naturais e promovem progresso econômico – e, portanto, não devem ser combatidas. Ser da esquerda é crer que, mesmo que diferenças sociais não possam ser extintas, é preciso lutar para diminuí-las, pois causam grave injustiça social. Eu concordo e me sinto, como ele, alguém da esquerda, isto é, luto para diminuir desigualdades e injustiças sociais. Penso que a contribuição mais importante da teologia da libertação – não só para a Igreja Católica, mas também para muitos outros grupos religiosos, incluindo as correntes não-cristãs que foram influenciadas por ela –, foi a de mostrar que Deus não é indiferente aos sofrimentos dos pobres e dos injustiçados. A consequência social dessa visão teológica é que o cristianismo ainda tem ou pode ter um papel social importante no mundo.

O que o senhor diria sobre a influência desse movimento sobre os evangélicos?

A teologia da libertação não nasceu católica. Na verdade, entre os primeiros autores latinoamericanos a tratarem da teologia nessa perspectiva estão presentes teólogos protestantes, como Richard Shaull, Miguez Bonino e Rubem Alves. Podemos dizer que a teologia da libertação nasceu ecumênica e influenciou diversos setores das igrejas protestantes evangélicas e da Igreja Católica. Com passar do tempo, ela se tornou mais católica, sem deixar de ter entre o seu meio teólogos protestantes. Mesmo setores que não aderiram àquela teologia foram influenciados na medida em que foram “pressionados” a debater sobre problemas sociais a partir da fé cristã.

A opção preferencial pelos pobres, expressa pela Igreja Católica nos anos 1960, nunca encontrou, ao menos formalmente, eco na Igreja Evangélica. Na sua opinião, o que difere os dois grupos no trato da questão e por que os evangélicos têm certo pudor de assumir essa causa como prioritária na sua prática cristã?

Eu penso que setores evangélicos ainda são muito marcados pela divisão entre a pregação da Palavra e a ação social. Para muitos grupos, a prioridade das Escrituras ficou reduzida ao anúncio sem, podemos dizer, uma ação concreta que desse consistência à afirmação de que Jesus é o Senhor. A teologia da missão integral tentou superar essa dicotomia fazendo uma equação simples – a Palavra de Deus mais a ação social. Enquanto isso, a “opção pelos pobres” feita pelos adeptos da teologia da libertação significa que a forma concreta de anunciar que Jesus é o Senhor em um mundo marcado por tanta injustiça social é optar pelos pobres. Em outras palavras, os senhores do mundo oprimem os pobres e os consideram como sub-humanos; por isso, anunciar o senhorio de Jesus ou de Deus seria afirmar que pobres também são seres amados pelo Senhor, com direito a uma vida digna.

Quais são, em sua opinião, os pontos de afinidade e diálogo entre a teologia da libertação e a teologia da missão integral?

O ponto de afinidade mais importante, na minha opinião, é a convicção, expressa por ambas as teologias, de que Deus não é indiferente às injustiças e aos sofrimentos dos pobres no mundo. Portanto, se Deus não é indiferente, ser indiferente ou insensível aos sofrimentos das pessoas pobres ou vulneráveis não é atitude compatível com o cristianismo. Por isso, as duas teologias levam a sério o chamado de Jesus à conversão, a sair do mundo do pecado, da injustiça e da mentira em direção ao Reino de Deus. Outra afinidade importante se dá em torno da teologia da encarnação. Deus se esvaziou do seu poder divino e se encarnou no meio da humanidade para que também nós vivêssemos a nossa missão no meio do mundo, sem a pretensão de um poder sobrenatural para resolver os problemas. Essa é a convicção de que não se pode viver a fé cristã sem se encarnar no mundo, na luta contra as injustiças e mentiras que matam! Em torno desses dois pontos teológicos em comum é possível desenvolver diálogos importantes entre a teologia da libertação e a teologia da missão integral.

A teologia da missão integral, tão valorizada em segmentos protestantes históricos e denominações tradicionais, sequer é mencionada no ambiente neopentecostal, onde a ênfase é mais no assistencialismo de ocasião. Caso essa escola de pensamento missional fosse majoritária na Igreja Evangélica como um todo, haveria espaço para o neopentecostalismo e para sua ação nas classes mais pobres?

As igrejas neopentecostais partem de uma opção distinta em relação à teologia da missão integral. Enquanto que ela e a teologia da libertação criticam o mundo atual pelas suas injustiças, os principais expoentes do neopentecostalismo e da teologia da prosperidade não o fazem. Na verdade, eles aceitam os valores e a hierarquia social do mundo e propõem levar os cristãos ao topo dessa hierarquia. Por isso, as bênçãos são identificadas com a riqueza, que é critério essencial do mundo; e pastores e bispos se vangloriam da sua riqueza da posse de bens de luxo, como aviões particulares. Mesmo que a missão integral fosse majoritária nos segmentos históricos e tradicionais do protestantismo, o neopentecostalismo e teologia da prosperidade teria seu espaço. Afinal, muitos querem subir a hierarquia social, não necessariamente encontrar Deus que se manifestou em Jesus.

O senhor concorda com a afirmação que diz que “a Igreja Católica optou pelos pobres e estes optaram pelo neopentecostalismo”?

Eu penso que essa frase, tão repetida, tem problemas. Primeiro, não se pode entender a força da teologia da libertação sem a rede imensa das comunidades eclesiais de base, que teria chegado a mais de 100 mil nas décadas de 1980-90 no Brasil. Muitos pobre optaram por elas, que são uma forma específica de organização de comunidade no interior da Igreja Católica. Mas, como há muitos pobres na América Latina, muitos optaram pelo pentecostalismo. Porém, é preciso apontar que não há um só tipo de igrejas pentecostais. Penso que muitas comunidades ou congregações pentecostais também fizeram um grande trabalho em relação aos pobres, na linha de opção por eles, mesmo quando não usavam essa terminologia.

Diante do avanço numérico da Igreja Evangélica, fenômeno constante e crescente desde os anos 1970, já se fala numa possível quebra da hegemonia católica ainda na primeira metade deste século. O senhor concorda que isso deva acontecer?

É difícil fazer esse tipo de previsão, pois a sociedade não funciona como uma máquina. Além disso, o crescimento numérico das igrejas evangélicas e pentecostais já está em um ritmo menor do que em anos anteriores. E isso é normal, na medida em que uma boa parcela da população suscetível de mudar de crença já foi atingida pelas igrejas evangélicas. Na minha opinião, se uma igreja, seja Católica ou evangélica, faz do aumento do número de seus membros o seu principal objetivo, ela perdeu de vista a missão principal do cristianismo. A missão das igrejas cristãs é anunciar o Reino de Deus, que é amor solidário, perdão, misericórdia e justiça para a humanidade, e não entrar em competição para ver qual é a maior. Como disse Jesus, a igreja que quiser ser a maior tem que assumir a atitude do menor e servir. Por isso, eu não me preocupo muito sobre o que a Igreja Católica deve fazer para frear o avanço das igrejas evangélicas, mas sim, acerca de como ela poderia servir mais e melhor a Deus no serviço ao povo que sofre.

Que personalidades intelectuais evangélicas o senhor respeita por sua capacidade de diálogo com a academia?

Eu respeito e admiro muitas pessoas do mundo evangélico. Por isso, nomear alguns seria correr risco de esquecer muitos. Mas, como não é possível viver, e nem dar entrevistas, sem correr riscos, vou nomear alguns só para que os leitores tenham ideia do meu círculo de relacionamento: René Padilla, teólogo da missão integral, e Néstor Miguez, teólogo metodista argentino; e os pastores Ed René Kivitz (batista) e Ricardo Gondim (pentecostal). Todos eles estão em minha biblioteca, assim como Milton Schwantes, Julio de Santa Ana, Elsa Tamez, Junger Moltmann, Dietrich Bonhoeffer, C.S. Lewis e muitos outros protestantes e evangélicos.

O senhor apresenta-se como um leigo católico, mas tem excelente trânsito em vários círculos evangélicos e ocupa cargos de direção acadêmica em uma instituição de orientação protestante. Como é o seu diálogo com os variados segmentos evangélicos, sobretudo aqueles mais ortodoxos, como os representados por instituições como Instituto Mackenzie, Seminário Servos de Cristo e Faculdade Teológica Batista?

Eu tenho bons relacionamentos com diversos professores dessas instituições e, quando a correria de São Paulo nos permite, mantemos bons diálogos. É importante ressaltar que diálogo só é necessário quando pensamos diferente, e só se torna possível quando temos um objetivo em comum. Eu lhes apresento as minhas ideias a partir de textos bíblicos em uma atitude de respeito e diálogo.

No seu entender, como está a formação teológica hoje, no Brasil?

É muito difícil falar de formação teológica no Brasil porque há uma diversidade muito grande. Mas, penso que enfrentamos um problema fundamental. Grosso modo, podemos dividir a formação teológica em dois grandes grupos. Um deles é o dos seminários que fazem da leitura mais literal da Bíblia o eixo central da sua formação, com muito pouca abertura para diálogo com as ciências humanas e sociais contemporâneas; o outro, com os seminários de linha mais liberal, com ênfase nos conceitos teológicos e filosóficos, com uma preocupação forte na desmitificação dos textos bíblicos. O problema é que seminários do primeiro tipo não conseguem mais dar conta das perguntas e demandas dos setores do mundo evangélico que têm acesso à formação universitária ou à cultura moderna. Por isso, cada vez mais jovens e lideranças dessas igrejas procuram escolas teológicas com maior consistência teórica. Porém, essas pessoas são movidas por experiências religiosas e por linguagens simbólico-bíblicas que são criticadas pelo pensamento teológico liberal. Assim, surge um conflito, uma dificuldade de diálogo entre professores e alunos nesses seminários.

Por que não há uma fusão das duas demandas, sobretudo visando à formação de pastores mais capacitados?

Isso exigiria a criação ou fortalecimento de modelos de seminários teológicos que valorizem a experiência religiosa e a linguagem simbólica sem, contudo, perder a seriedade teórica. No fundo, exige um novo modelo de fazer teologia e de educação teológica. Eu tratei mais longamente desse desafio na segunda parte do livro Missão e educação teológica, que escrevi com Lauri Wirth e Néstor Miguez [Editora Aste]. Na medida em que superarmos esse impasse, vamos encontrar uma formação teológica que não crie dicotomia entre a formação de pastores ou de teólogos. Os pastores precisam se formação teológica séria para realizar sua missão hoje; e quem quer seguir a carreira de teólogo precisa também ter bom conhecimento das práticas pastorais.

Se, como o senhor disse recentemente, a salvação não pode ser exclusiva do cristianismo, quais seriam os outros caminhos utilizados por Cristo para salvar o homem?

Segundo o evangelho de São João, e também nas suas cartas, Cristo nos ensina que Deus é amor e que quem ama o próximo, como o bom samaritano, está em Deus – e Deus está nele. A Primeira Carta de João nos ensina que ninguém jamais viu a Deus; mas, quando amamos uns aos outros, o amor de Deus se faz presente ou se realiza em nós. É nisso que creio. O Espírito do Cristo ressuscitado salva seres humanos no amor e por amor. O cristianismo é importante porque ensina isso, e não porque é meio exclusivo de salvação.

A Bíblia, para os evangélicos, é a Palavra de Deus. No seu entender, há outras formas de revelação divina comparáveis às Escrituras?

Segundo a Bíblia – por exemplo, na epístola aos Hebreus, capítulo primeiro –, a Palavra de Deus é a pessoa de Jesus. Deus nos fala através da pessoa de Jesus e não através da Bíblia, que é um conjunto de livros. Essa é uma confusão que muitos fazem. Para termos acesso a Cristo, para entendermos bem a vida e a pessoa de Jesus, que nos revela a face de Deus, precisamos da Bíblia – que contém a memória dos que viveram a experiência de serem tocados por Deus ou que conheceram a Jesus. Como a vida de uma pessoa como Jesus é muito rica, a Igreja primitiva definiu um conjunto de livros, que forma o Novo Testamento, como portadores da memória de sua vida e de seus ensinamentos. Muitas cartas são explicações ou admoestações sobre como as comunidades estavam vivendo a fé em Jesus. Em resumo, segundo a própria Escritura Sagrada, a Bíblia nos leva a conhecer a pessoa de Jesus, que é a Palavra de Deus encarnada entre nós. Em resumo, mesmo correndo risco de ser mal interpretado, eu quero dizer que para cristianismo não há revelação comparável à Escritura – por isso, somos cristãos–, mas a própria Escritura nos diz que o Espírito de Deus sopra onde quer; assim, creio que Deus se revelou à humanidade para além do cristianismo. Mas creio nisso a partir da Bíblia.

Em seu livro Ilusão ou realidade? (Ática), o senhor fala da oração como um momento de discernimento, entre outras coisas, acerca do melhor caminho para a concretização de atos de amor que anulam nossa ideia de impotência diante dos clamores do mundo. No seu entendimento, o que mais a oração pode representar para o cristão?

A oração é, acima de tudo, uma atitude de se colocar diante de Deus de forma humilde – pois só o fato de sabermos que nos colocamos diante de Deus deve nos levar a uma postura de humildade. É o momento em que buscamos a vontade de Deus, e não o nosso desejo egoísta ou as vontades colocadas em nós pelo mundo e por sua mídia. Na medida em que discernimos a vontade de Deus, pedimos força espiritual para seguirmos nesse caminho, pois sem essa força que vem de Deus não seremos capazes de resistir às tentações que o mundo nos oferece, com suas vaidades de sucesso e egoísmo. Oração é, também, momento de pedirmos perdão, confiando na misericórdia infinita de Deus. Há momentos em que essa oração precisa ser feita na solidão diante de Deus; em outras situações, é importante que seja feita de forma comunitária.

O senhor mentoreou o pastor Ricardo Gondim em sua dissertação de mestrado A Teologia da missão integral: Aproximações e impedimentos entre evangélicos e evangelicais , aprovada em 2009. Ultimamente, Gondim tem sido considerado extremamente heterodoxo em algumas de suas falas acerca da fé cristã – sobretudo, quando aborda o teísmo aberto e a doutrina da salvação. No seu entender, até que ponto as suas posturas influenciam Gondim e qual o resultado disso sobre o ministério dele?

Em primeiro lugar, quando Ricardo Gondim veio fazer mestrado sob minha orientação, ele já tinha essas ideias. Portanto, não penso que eu fui o influenciador dessa postura teológica dele. Em segundo, é preciso perguntar quem considera a teologia dele herética. Essas pessoas têm suas teologias e suas vidas cristãs acima da suspeita e, por isso, detêm tal autoridade? Eu li vários textos de Ricardo Gondim e não acho que sejam heréticos. Não concordo com tudo, mas isso não significa que sejam heréticas. Ele tem insistido muito em que a salvação é graça, fruto da misericórdia de Deus. Não há nada mais protestante do que isso! Na verdade, penso que o que mais incomoda nas pessoas é a afirmação, que não é original dele, de que Deus não tem controle sobre a história. Ora, mas isso é bíblico!

Como assim?

Se Deus tivesse controle sobre tudo o que acontece, tudo o que acontece seria da vontade dele. Mas, na Bíblia, encontramos inúmeros chamados de Deus à conversão e ao arrependimento, o que mostra que ele não estava de acordo com o que acontecia no povo de Israel. O chamado à conversão e a própria missão das igrejas só têm sentido se a história humana é feita de liberdade. Só há conversão, se há liberdade. E se há liberdade, não há predeterminação divina. Muitas pessoas preferem a falsa segurança que a teologia do controle absoluto de Deus parece dar do que a verdadeira mensagem da Bíblia: o chamado à conversão e a vida na fé. Por isso, pastores como Ricardo Gondim e outros dessa linha são objetos de crítica. Mas, não há como seguir o caminho de Cristo sem também compartilhar da cruz dele.

Mas a ideia de que Deus por ser “pego de surpresa” – como, por exemplo, o teísmo aberto chega a sugerir diante de grandes catástrofes como o tsunami de 2004 – não diminui sua qualidade de Senhor sobre tudo e todos? A soberania divina não ficaria sublimada na teologia relacional?

Há duas formas de entender a noção de soberania de Deus. A mais comum é usar o mesmo sentido daquele dado ao poder de imperadores e reis. Um soberano tinha poder de vida e morte sobre os súditos, seu povo, porque estava acima da lei – ou seja, sua vontade era a lei. Assim era, por exemplo, no Império Romano e na Idade Média europeia. A afirmação da soberania de Deus não significa atribuir a ele essas mesmas características do imperador, o que seria terrível! Dizer que Deus é soberano é afirmar que imperadores, reis ou governantes de todo tipo não têm ou não deveriam ter esse poder de vida e morte, pois tal prerrogativa só cabe a Deus. É relativização do poder do imperador. Em segundo lugar, Deus é um soberano, diferente dos reis que tudo controlam e tudo dominam (que vem da palavra dominus, senhor). A soberania de Deus é caracterizada por amor e liberdade: é esse o ensinamento de Cristo. Bem, Deus poderia ter sabido do tsunami antes do acontecimento? Não gosto desse tipo de especulação, pois só nos leva a uma vaidade intelectual de querer saber sobre a mente do Senhor. O que posso dizer é que a história humana é feita de liberdade e nós somos chamados por Deus a viver o amor solidário e livre neste mundo marcado por injustiças e sofrimentos, mas, também, por alegrias e esperanças.

Então, como o que o senhor chama de Deus “padrasto-sádico” em seu livro Deus – Ilusão ou realidade (Ática) mais se manifesta?

Precisamos nos recordar que, quando Deus se revelou a Abraão, a Moisés ou aos profetas, os povos já tinham religiões e acreditavam em deuses. A revelação bíblica não é para ensinar que Deus existe, mas para ensinar a discernir a verdadeira imagem de Deus das falsas. O “deus padrasto-sádico” é muito comum nas religiões, e também nas igrejas cristãs. Confundimos Deus com dominadores, com ditadores sádicos que se apresentam como pais da pátria. O estudo da Bíblia e da teologia é importante exatamente para ajudar as comunidades cristãs e o povo em geral não cair nessas mentiras, ou na “idolatria”, como diz a Bíblia. Deuses que exigem sofrimento e sacrifícios para a salvação ou que justificam injustiças em nome de “mistério da salvação” são, segundo a Bíblia, deuses falsos, isto é, ídolos. Como ensinou Jesus, Deus quer misericórdia, e não sacrifícios.

Em que medida uma teologia considerada herética pode contribuir para o amadurecimento da fé de um cristão?

Nós só pensamos seriamente na nossa fé e amadurecemos a compreensão e a vivência dessa fé na medida em que somos enfrentados por formas diferentes de pensá-la e de vivê-la. Por isso, teologias consideradas heréticas têm o papel importante de nos fazer pensar. Além disso, é preciso perguntar: quem considera essas teologias heréticas? Quem tem esse poder, ou qual é a instância do magistério para definir heresia no mundo evangélico? Na Igreja Católica, esse poder está no Vaticano ou nos Concílio dos Bispos; mas, nas igrejas evangélicas, parece-me que não há essa instância. Por isso, é preciso perguntar, antes de mais nada: quem disse que tal teologia é herética? Não podemos nos esquecer que Jesus foi considerado blasfemo e herético pelos sacerdotes e teólogos da sua religião.

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