Rio inaugura roteiro turístico sobre presença africana na cidade - Por Patrick Moraes
Circuito Histórico e Arqueológico
da Herança Africana inclui seis pontos nos bairros de Santo Cristo, Saúde e
Gamboa. Principal atração é o cais do Valongo, que serviu de porta de entrada
para 500 mil escravos no Brasil.
Após mais de um século à margem
da memória carioca, os primórdios da presença negra na sociedade local e as
incômodas lembranças da escravidão ganham homenagem no Rio com a inauguração do
Circuito Histórico e Arqueológico da Herança Africana.
O roteiro, que foi inaugurado na terça-feira, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra,
inclui seis pontos históricos nos bairros de Santo Cristo, Saúde e Gamboa.
Na virada do século passado, a
região chegou a ser conhecida como Pequena África, devido à grande concentração
de afrodescendentes. O projeto integra os esforços para a revitalização da Zona
Portuária, liderada pela prefeitura nos últimos dois anos.
Com 1,2 quilômetro de extensão, o
trajeto do circuito foi definido após seis meses de reuniões com integrantes da
prefeitura, representantes de movimentos negros e moradores locais. Além de
sinalização e painéis explicativos sobre pontos históricos, o circuito
oferecerá visitas guiadas.
"Somos um povo com uma
enorme contribuição negra em nossa língua, música e gastronomia, mas com poucos
monumentos voltados para a memória dos afrodescendentes. Queremos diminuir essa
lacuna", explica Washington Fajardo, presidente do Instituto Rio
Patrimônio da Humanidade.
Cais do Valongo
A principal atração do circuito é
o Cais do Valongo, a porta de entrada no país para 500 mil escravos, que
desembarcaram por este atracadouro entre 1769 e 1830. Construído como
alternativa para retirar o desembarque da frente do Paço Imperial, local de
despachos da Corte Imperial, o Cais do Valongo deu origem a uma movimentada
área de comércio escravo.
Em 1843, quando o tráfico
negreiro já era visto com muitas reservas, o cais foi aterrado para a
construção do Cais da Imperatriz, encomendado para o desembarque de Teresa Cristina,
futura esposa do Imperador Dom Pedro 2°. No início do século 20, a reforma
urbanística promovida pelo então prefeito do Rio, Pereira Passos, apagou os
vestígios do cais.
Soterrado por mais de 150 anos, o
Valongo foi recuperado recentemente. Após um longo processo de escavação,
transformou-se num memorial a céu aberto. Apesar de localizado embaixo de duas
ruas movimentadas e sob o peso de um emaranhado de canos de rede elétrica,
água, esgoto e galerias pluviais, o cais ressurgiu em ótimo estado de conservação.
As escavações também recuperaram
um trecho do Cais da Imperatriz, com calçadas mais bem trabalhadas do que as
pedras irregulares que formavam o pavimento dos escravos. A prefeitura do Rio
pleiteia, junto à Unesco, o título de Patrimônio Histórico da Humanidade, por
se tratar do único sítio de tráfico negreiro preservado nas Américas.
"É um local que foi
deliberadamente esquecido, aterrado, para que não se lembrasse mais da chaga da
escravidão", afirma Tânia Lima, líder da equipe de arqueólogos que
supervisiona os trabalhos de escavação na Zona Portuária.
"É muito simbólico que o
Cais da Imperatriz tenha sido construído em cima do Valongo: é a imagem da
princesa de Bourbon pisando em cima dos escravos. É importante recuperar a
história. As ruas mudaram de nome e hoje são pouquíssimos os cariocas que têm
alguma referência do que foi o Valongo", completa.
Durante as escavações, iniciadas
há um ano e meio, foram encontrados cinco canhões e centenas de pequenos
objetos, como peças de cerâmica, cachimbos, anéis e artefatos religiosos.
Depois de passar por uma triagem, com a ajuda de especialistas em religiões
afrobrasileiras, os objetos foram separados, avaliados e catalogados para
futura exposição, em local a ser definido.
Roteiro completo
A menos de 200 metros do Cais do
Valongo, o circuito tem mais duas paradas na atual Rua Camerino: o Largo do
Depósito e os Jardins Suspensos do Valongo. No primeiro ponto, uma praça marca
hoje o espaço em que era realizada a maior parte do comércio escravocrata da
época.
Em frente, ficam os Jardins
Suspensos do Valongo, obra paisagística realizada no início da República para
apagar as lembranças dos barracões, chamados à época de "casas de
engorda". Nesse locais, os escravos eram alimentados para ganhar peso e
valor de mercado.
Os escravos que não resistiam às
condições sub-humanas da viagem eram enterrados em condições indigentes. Seus
ossos eram triturados e misturados no Cemitério dos Pretos Novos, casa
transformada há 16 anos num centro cultural que zela pela memória dos
antepassados africanos, outro ponto de parada do circuito.
O roteiro inclui ainda a Pedra do
Sal, região simbolizada por uma rocha, que marcava o centro da Pequena África
e era o local onde os escravos se reuniam para celebrar seus antepassados e
realizar cultos e festividades com samba e capoeira. A última parada é o Centro
Cultural José Bonifácio, o maior centro de referência da cultural
afro-brasileira do país.
"Num momento em que se
discutem políticas de cotas raciais no país, reconhecer e valorizar nossa
herança africana é muito importante. Para darmos um passo à frente, não podemos
voltar a esconder o nosso passado", afirma Alberto Silva, coordenador do
programa Porto Maravilha Cultural.
Quatro pontos do circuito já estão
restaurados e em funcionamento. O Centro Cultural José Bonifácio e o Largo do
Depósito ainda passam por reformas.
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