A era da fé "self service" – Por Vilmara Fernandes


Márcia da Silva, 28 anos, nasceu em berço umbandista. Aos 14 anos fez sua 1ª comunhão na Igreja Católica e, aos 22, já estava na Messiânica, de tradição oriental. 

Hoje frequenta, ao mesmo tempo, a Umbanda e a Messiânica, mas guarda no coração o desejo de conhecer uma igreja evangélica. Para a comerciante não há contradição, nem mesmo doutrinária, em suas escolhas. Como um self service da fé, ela quer aproveitar o que há de bom em cada denominação, sem seguir a cartilha de ninguém.

O comportamento de Márcia é semelhante ao de milhares de outros capixabas, que vivenciam sua religiosidade transitando por diversas crenças. Colhem de cada doutrina o que acham importante para sua trajetória pessoal. "Um estilo onde me sirvo do que agrada ao meu espírito, sem nenhum compromisso", explica Vitor Nunes Rosa, professor de Ciência da Religião da Faesa.

Diversificação

Uma tendência que teve início nos anos 60, com o crescimento das igrejas evangélicas, e que alcançou seu boom nas duas últimas décadas. Período em que as atividades religiosas se diversificaram no Estado, com o surgimento de várias denominações, explica o professor de Teologia e Ciência da Religião da Faculdade Unida, Julio Paulo Tavares Zabatiero.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou mais de 40 denominações no último censo. Só em Vitória existem mais de 250 templos. "Hoje há um crescimento não só do número de igrejas, mas de pessoas que são fiéis a si mesmas, com uma religião mais individualista, e que exploram sua religiosidade de várias formas", pontua Zabatiero.

Espírito aberto

Algo que Valteir Lopes de Oliveira, 46 anos, proprietário de um material de construção na Serra, levou ao pé da letra. Jamaica, como é mais conhecido, é filho de pais católicos. Ainda jovem começou a peregrinação que o levou à Assembleia de Deus, Betel, Deus é Amor, Umbanda, Espiritismo Kardecista e, por fim, à Batista.

"Quem quer aprender tem que visitar com o espírito desarmado", ensina Jamaica, que há um ano escolheu a Igreja Batista pelos filhos de 3 e 6 anos. "Criança precisa crescer em alguma religião para evitar os problemas sociais, como drogas", assinala. 

É lá que ele desenvolve um projeto de evangelização ambiental, com uma pitada espiritualista, fruto do que acumulou em sua bagagem religiosa. "Temos que ultrapassar as denominações", acentua Jamaica.

Para o professor Rosa este é um fenômeno do mundo moderno, "onde nem a fé é sólida". Destaca ainda que em seu livro: Deus é Pop, a antropóloga Leila Amaral explica que este tipo de migração faz parte de uma nova cultura religiosa, que é descentralizada e errante. "Uma religião não institucional que se encontra em toda a parte, seguindo a lógica do consumo moderno", diz.

Sinais

Dados do último censo revelam sinais de que esta migração religiosa tem crescido, e muito. Embora os católicos ainda sejam maioria, a cada ano perdem espaço para o conglomerado dos evangélicos.

Só nos últimos dez anos este grupo pulou de 24% para 33% da população, um ganho de 391 mil fiéis. É bem mais do que a população de Cariacica, uma das cidades mais populosas da Grande Vitória. E não fica só aí. A relação entre a população de católicos e evangélicos também cresceu muito. Em 2000, os evangélicos correspondiam a 39,53% dos católicos, em 2010 passaram a ser 62%.

Sem vergonha

Um cenário que reflete uma outra mudança social, como explica o professor Zabatiero. "Durante muitas décadas as pessoas tinham vergonha de se assumir como não-católicos", pontua. Hoje já há até os que se assumem como sem religião. Um grupo que, segundo o IBGE, cresceu 22% e já arrebanha mais de 364 mil pessoas.

É onde se enquadra a estudante de Ciências Sociais Shiara Arruda de Souza. Aos 28 anos, ela nunca teve uma religião. Sua curiosidade pende para o kardecismo, mas é mais um interesse cultural. "Até hoje não encontrei uma religião que atendesse as minhas necessidades", revela.

Insatisfação

Por trás deste trânsito religioso pode estar uma insatisfação com as igrejas que "muito prometem e pouco entregam", como destaca Zabatiero. Um exemplo vem dos próprios evangélicos, já que nenhum grupo parece representar a totalidade dos fiéis. "São religiões de consumo, com promessas exageradas – de felicidade, saúde, dinheiro – que acabam gerando desencanto".

E ao atender as demandas imediatas do cotidiano, muitas denominações acabaram perdendo a sua identidade, suas características doutrinárias. "O discurso mudou para atender o que o povo quer", observa Edebrande Cavalieri, professor de Religião da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

E não só os evangélicos passaram a adotar uma nova linguagem. Também os católicos andam cedendo a mudanças. Além do discurso nas missas, onde os interesses pessoais, como a cura para doenças, são valorizados, há livros de autoajuda vendidos em livrarias católicas e até artigos, com princípios espíritas no site da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Uma preocupação que acabou batendo na porta do Vaticano. Um de seus documentos alerta sobre os novos movimentos religiosos, que denominam de New Age, e de como se deve agir para diferenciá-los da fé cristã.

Busca

Mas o que buscam estas pessoas ao transitar entre tantas denominações? Algo que pode estar ligado mais ao espiritual do que a religião, explica Sidemberg Rodrigues, gerente de Comunicação, Imagem e Responsabilidade Social da ArcelorMittal Tubarão.

Ele já falou sobre o assunto em mais de 22 palestras, em vários cantos do mundo. "A maioria busca o equilíbrio e a paz interior", diz, acrescentando que a vida é feita de impermanências e que saber lidar com elas é que garante a estabilidade espiritual. 

O caminho, pontua, passa em pôr em prática valores como a compaixão e a empatia. "Considerarmos os mais próximos, nos colocarmos no lugar do outro, não julgarmos". Algo que vale até no meio empresarial.

Compartilhar

Para os especialistas que estudam este novo comportamento, esta busca é válida, mas alertam que um dos princípios básicos de todas as religiões, até as não-cristãs, não deve ser esquecido: a vivência comunitária. Em algum momento, mesmo em uma fé individualista, compartilhar é importante.




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