Deus existe mas a religião é imperfeita, Deus não existe mas fingimos que sim – Por Joana Gorjão Henriques
É uma discussão que raramente
consegue que alguém mude de posição: Deus existe, Deus não existe?
Nos últimos anos, um grupo
agressivo de académicos e jornalistas chamados "novos ateus" que
atacam a religião, como Richard Dawkins e Christopher Hitchens, gerou
inúmeros debates sobre a relação entre fé e ciência.
John Haught, senior fellow do
Woodstock Theological Center da Georgetown University, autor de quase 20
livros, a maioria sobre ciência e religião, participou activamente na polémica
argumentando que não são incompatíveis.
"Os novos ateus argumentaram que a
fé, de qualquer tipo, é o contrário da ciência. Defendo que não se pode fazer
ciência sem um certo tipo de fé - tem de se acreditar que o universo é
inteligível, tem de se acreditar que vale a pena procurar a verdade e tem de se
acreditar que a nossa mente tem integridade auto-suficiente para distinguir o
que é verdade e o que não é. Isto são tudo crenças nas quais a maioria dos
cientistas não reflecte", diz.
O esloveno Slavoj Zizek não é
cientista, é um filósofo que não acredita na ponte entre as duas áreas. Ateu
convicto, que tem também escrito sobre o tema, lança a questão da crença como
algo misterioso, sim, e recusa vê-la como "apenas uma convicção
interior" mas como algo que está ligado "às instituições" e
nas alturas em que temos de decidir entre as duas, o que tem mais influência
não é a convicção interior mas a instituição exterior, argumenta.
Para Zizek
ser verdadeiramente ateu é "extremamente difícil", porque a vida
social e as instituições estão impregnadas de uma estrutura religiosa. "As
instituições externas nunca são apenas externas, são a nossa verdadeira
identidade."
A verdade é que cada vez mais
pessoas no mundo se dizem sem religião. Ainda esta semana, dados de um
instituto americano, o Pew, mostraram que o grupo das pessoas sem religião é o
terceiro maior no mundo, a seguir aos cristãos e aos muçulmanos.
Em Portugal,
apenas 6,8% não têm religião e 81% dizem-se católicos, mas quantos destes
responderiam que acreditam que Jesus foi um homem que existiu? Usando o exemplo
de uma sondagem na Eslovénia em que 80% disseram que não acreditavam "que
há dois mil anos um homem filho de Deus andou na Palestina", sendo que 90%
se diziam cristãos, Zizek levanta a questão que o "intriga": "O
que leva as pessoas a acreditar [em Deus], mesmo sabendo que não é
verdade?"
Prestes a publicar: Science and
Faith: A New Introduction, John Haught, que em Portugal tem traduzido pela
Gradiva o seu livro Cristianismo e Evolucionismo em 101 Perguntas e Respostas, "responde" com a ligação que estabelece entre ciência e religião: a biologia,
a cosmologia e a teologia mostraram-nos "que vivemos num universo
incompleto e que ainda temos pela frente um futuro". "Não podemos
olhar para trás, nem para cima, mas para a frente quando pensamos na nossa
relação com Deus", diz.
Em: Science and Religion: From
Conflict to Conversation (1995), Haught defende que a ciência não é tão pura e
objectiva, nem a teologia tão impura e subjectiva quanto se pensava e que ambas
partilham a procura da verdade, mas para as duas áreas entrarem em diálogo é
necessária dar uma "explicação em camadas".
"A ciência procura
perceber a natureza e deixa de fora questões à volta de valores, do significado
da vida, de Deus ou da finalidade. Olha para a natureza apenas do ponto de
vista das causas naturais. Isso está correcto, mas não significa que aquelas
questões sejam irrelevantes, por isso vejo complementaridade entre a ciência e
a religião. Isso é outra crença, a de que a ciência é a única forma de
explicação."
No seu novo livro, lança várias
perguntas, como: a fé é compatível com a teoria da evolução? Charles Darwin
desafia a teologia em três pontos, lembra: foram necessários vários acidentes
para que a evolução acontecesse, o acaso lidera o processo; a lei da selecção
natural é injusta e cruel porque elimina os organismos que não são adaptáveis e
não podem sobreviver; e, por último, se Deus "é amor e é providencial,
porque é que demorou tanto tempo a criar a vida há 3,8 mil milhões de
anos"?
Haught argumenta que "se tudo fosse desenhado de forma perfeita
desde o dia número um da criação, então não existiria futuro, o universo teria
acabado". "Se o universo fosse perfeito, a vida e a liberdade não
eram possíveis, se Deus tivesse fixado tudo no princípio, o universo estaria
morto."
Por isso compara a narrativa da
evolução de Darwin à narrativa teológica: "Aquilo que de início parece ser
o oposto de um Deus arquitecto é essencial para a vida ter uma narrativa
coerente. A minha metáfora é que a vida é um drama e o universo é um drama de
transformação - a transformação que a religião procura no caso dos seres
humanos tem as suas raízes no universo. Tudo o que está em causa na discussão
entre ciência e fé vai dar à questão sobre se alguma coisa com significado se
está a criar a si própria no universo. Defendo que as probabilidades são muito
altas e nenhum de nós está em posição de dizer, como os novos ateus, que o
universo não tem sentido nem significado. O drama ainda está a
desenrolar-se." E se o universo não está acabado então quer dizer
"que a religião também não está acabada", "as religiões também
são imperfeitas".
O que exclui a ideia de que
"Deus é apenas um engenheiro" e sustenta a ideia de que "Deus é
muito mais amor do que aquele que coloca uma impressão final no universo no
princípio". "A divina providência numa era da ciência implica um Deus
que dá a oportunidade ao universo de se tornar ele próprio, vivo, que responde
e produz seres."
Esperança, diz, é a chave: "Há o risco de, uma vez
dada liberdade, podermos decidir contra o futuro, voltar atrás e reduzir tudo ao
passado. A atitude mais realista que podemos ter num universo que ainda está a
ser criado é esperança, não desespero - a esperança é um radar que ilumina o
futuro para novas possibilidades e para mim isso conjuga-se muito melhor com o
tipo de universo que a ciência desvendou."
A religião é o Grande Outro
O universo é um erro, defende
Zizek, que não acredita na ideia de finalidade ou de significado. Somos parte
da natureza, mas a natureza "é um mecanismo contingente, maluco, cheio de
catástrofes como nós, seres humanos".
Professor na Universidade de
Ljubljana, director do londrino Birkbeck Institute for the Humanites e
professor convidado de várias universidades americanas, Zizek desenvolveu as
suas posições sobre o tema em livros como: A Marioneta e o Anão: O Cristianismo
entre a Perversão e a Subversão, A Monstruosidade de Cristo: Paradoxo ou
Dialéctica (Relógio d"Água, 2006) ou no mais recente: God in Pain:
Inversions of the Apocalypse.
Tem citado frequentemente o
psicanalista Jacques Lacan para explicar que "a verdadeira fórmula do
ateísmo não é que Deus está morto mas que Deus é inconsciente". "O
que aprendi com a psicanálise é que é fácil dizer que Deus não existe, mas a
maioria age como se Deus existisse".
Mesmo críticos ferozes da
religião como os estalinistas caíram na "armadilha" de usar uma
estrutura teológica para explicar a sua filosofia, aquilo a que Lacan chama
"o Grande Outro, uma entidade simbólica que pode fazer julgamentos sobre o
significado dos nossos actos". "Há crenças que se manifestam nas
nossas práticas sociais. É isso que Walter Benjamin queria dizer quando
afirmava que o capitalismo era uma forma de religião - tem uma estrutura
religiosa."
Outro exemplo é a democracia e a justiça: as pessoas não
acreditam que exista, mas agem como se acreditassem, cotando, usando o sistema
legal.
A dificuldade de se ser um ateu
radical, explica, deve-se ao facto de a religião, "provavelmente",
fazer "parte da linguagem humana" desde sempre: "A partir do
momento em que usamos uma língua, temos de aceitar uma narrativa maior que lhe
garante significado.
Quando Cristo está na cruz e pergunta: "Pai, porque é
que me abandonaste?", é o momento em que Deus se torna um ateísta, morre
por ele próprio." Não chega, por isso, não acreditar em Deus, porque
"inconscientemente ainda contamos com Deus".
Na verdade, "para ser um
verdadeiro ateísta tem de se ir à cristandade", uma "religião
ateísta" porque "Deus morre, literalmente". "Deus permanece
no espírito santo, mas na comunidade de crentes."
Quem é Deus, afinal? Para John
Haught, "é o último repositório de tudo o que acontece no universo".
A resposta encontra-a em Cristo. "O significado da cristandade é que nunca
posso pensar em Deus sem pensar neste homem, Jesus. Isso é o que faz a
cristandade diferente. Os cristãos dizem: se querem saber como é Deus, olhem
para este homem, porque, como diz o Novo Testamento, pense-se em Cristo como
contendo a revelação do que Deus é."
E Zizek, como imagina que quem
acredita imagina Deus? "A maior parte das pessoas acredita que deve
existir uma entidade superior que garante que a nossa vida tem sentido, ou
seja, que deve existir algo superior. Acho que devíamos abandonar isto. Seria
muito melhor para a moralidade, porque se esquecermos a transcendência então
somos confrontados com a nossa responsabilidade. Aceitar a nossa liberdade e
não deitar a culpa para ninguém é uma posição mais forte." Deus existe?
Fonte: http://www.publico.pt
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