Mercados da fé – Por Alice Melo
Neste mês, a Revista de História
aborda, em profundidade, a trajetória dos evangélicos no Brasil.
Autora de
texto que explica a ‘Imagem da capa’ desta edição e fonte da reportagem ‘No
ritmo de Jesus’, a historiadora Karina Kosicki Bellotti, professora da UFPR e
autora de: “Delas é o reino dos céus: mídia evangélica infantil na cultura
pós-moderna do Brasil (1950-2000)”, explica o crescimento das religiões evangélicas
nas últimas décadas.
Em entrevista, a pesquisadora destrincha o surgimento da
cultura gospel e indica de que maneira ela está sendo assimilada pela cultura
brasileira, em suas múltiplas formas e códigos.
Revista de História da Biblioteca
Nacional: Diante do crescimento das igrejas evangélicas nas últimas décadas,
poderia explicar as semelhanças e singularidades entre as religiões que vemos
hoje?
Karina Bellotti: Observamos um
crescimento evangélico, predominantemente pentecostal, desde os anos 1980, mais
acentuadamente a partir dos anos 1990.
Uma das principais razões é o empenho de algumas igrejas e de fiéis na
evangelização por diferentes maneiras – seja entre seus pares, seja pelos meios
de comunicação (uso de rádio, TV, mídia impressa), seja pela estratégia de
atração de fiéis em cultos, shows, celebrações, campanhas.
Os chamados protestantes
históricos são os luteranos, presbiterianos, metodistas, anglicanos,
episcopais, congregacionalistas – igrejas criadas no século XVI, herdeiras diretas
e indiretas da Reforma, e que vieram para o Brasil no século XIX, com
imigrantes europeus e missionários norte-americanos. Ao final do século XIX,
esse grupo teve algum crescimento na trilha do café e em algumas cidades com
núcleos republicanos liberais, que viam nos protestantes uma forma de trazer o
progresso – e o embranquecimento – ao Brasil. Foram os primeiros a investir em
meios de comunicação para evangelização.
Já os pentecostais surgem de um
ramo evangélico americano do início do século XX nos EUA, em cultos que
reproduziam o Pentecostes, a passagem bíblica de Atos dos Apóstolos em que o
Espírito Santo manifesta-se em forma de glossolalia, dons de cura e profecia,
no movimento de avivamento da Rua Azusa, em Los Angeles, em 1906. A partir de 1910 já havia pentecostais no Brasil – primeiro
com Luigi Fancescon, fundador da Congregação Cristã no Brasil, e depois em 1911
com Gunnar Vingren e Daniel Berg, fundadores da Assembleia de Deus. Esse
pentecostalismo se diversifica principalmente a partir dos anos 1950 e 1960,
com o maior uso dos meios de comunicação, até chegarmos ao tal famoso
neopentecostalismo, caracterizado pela Teologia da Prosperidade, pela
liberalização dos usos e costumes e pela guerra ao diabo, presentes em maior ou
menor grau em igrejas como a Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo,
Igreja do Poder Mundial de Deus, dentre outras.
E ainda há uma diversidade de
igrejas independentes, comunidades cristãs, casas de oração, devido ao caráter
fragmentário do protestantismo. As ideias de livre interpretação das Escrituras
e do sacerdócio universal dos santos, trazidas por Lutero, retiraram a
autoridade da Igreja Católica na devoção e no controle dos rituais, da
“comunicação” entre o fiel e a divindade, permitindo que qualquer pessoa
pudesse sentir o chamado para servir a Deus – e abrir sua igreja. Esses
elementos também são responsáveis pela atuação dos evangélicos – muitos que se
convertem querem testemunhar a transformação que Deus fez em suas vidas,
fazendo uma “evangelização informal”, no dia a dia – usando inclusive produtos
do chamado “mercado evangélico”, camisetas, folhetos, cartões, marca páginas e
presentes com mensagens evangelísticas, músicas, dentre várias opções de
produtos que existem atualmente.
RHBN: É possível afirmar que há uma identidade
evangélica brasileira?
KB: Acho arriscado afirmar que
existe uma identidade evangélica brasileira – os historiadores devem procurar
as diferenças dentro da diferença, parafraseando Joan Scott. Da mesma forma que
não é possível falar de uma identidade católica brasileira, pois há vários
catolicismos dentro do catolicismo. O que ocorre é que vivemos desde os anos
1950/1960 um período de competição religiosa, que tem acentuado determinadas
tendências, como o carismatismo, além do próprio crescimento do mercado
evangélico, que cria determinadas padronizações de produtos para o público
evangélico – livros de autoajuda e de vida cristã, música “gospel”, vestuário,
e até material escolar – que tem sido
consumido por evangélicos das mais diferentes tendências. Porém, há diferenças
profundas que precisam ser consideradas.
RHBN: O que diferencia as
manifestações culturais evangélicas no Brasil do resto do mundo?
KB:De maneira geral, o
protestantismo e o pentecostalismo brasileiro possuem uma forte ligação
cultural com matrizes norte-americanas, mesmo que muitas igrejas atuais sejam
nacionalizadas há gerações. A cultura evangélica norte-americana, que nunca foi
homogênea, transita pelo mercado editorial, pelo mercado fonográfico, pelo circuito
de palestras de pastores e pregadores no Brasil, e pela circulação de pastores
e lideranças brasileiras por universidades e igrejas americanas. Vejo
semelhanças, como o crescente investimento em estratégias empresariais de
gestão de igrejas e de formação de lideranças; mas também vejo diferenças, como
o maior crescimento pentecostal no Brasil – algo que nunca ocorreu de forma
significativa dos Estados Unidos.
Nos Estados Unidos, a chamada
“Igreja Eletrônica” era um entidade autônoma – existem ministérios de
comunicação em que uma liderança vive de seu trabalho na mídia, em diversos
meios. Já no Brasil, a comunicação é tanto usada para atrair pessoas para as igrejas,
como também é a missão, o ministério de alguns evangélicos. Porém, é marcante o
fato de o protestantismo sempre ter sido uma religião “de minoria”, vista por
boa parte da sociedade brasileira como culturalmente estranha ao cenário
afro-católico-espírita; é com essa realidade que os protestantes no Brasil
sempre dialogaram, enquanto que nos Estados Unidos o protestantismo é a
religião eleita como parte integrante da identidade nacional.
RHBN: Com a fragmentação de
identidades na sociedade atual, o que entendemos por cultura brasileira está
mudando. Neste movimento, o que ela estaria incorporando destas religiões que
tradicionalmente não fazem parte da 'matriz religiosa' brasileira? E o
contrário?
KB:Não acredito que exista uma só
cultura brasileira – existem práticas e crenças mais identificáveis com a nossa
história, mas não há como falar em algo genuíno deste ou daquele lugar, como se
não houvesse um mínimo de hibridismo. Porém, para dar um exemplo bem conhecido,
o caso das sessões de descarrego da Igreja Universal são uma forma de
hibridismo de uma prática não muito comum do cristianismo – o exorcismo, a
expulsão de demônios – e o descarrego feito na umbanda, mas com um outro
sentido. Na Universal, espíritos conhecidos na umbanda e no candomblé são
demonizados - coisa que não ocorre nas
religiões afro – e são exorcizados como forma de limpeza e libertação
espiritual.
Sobre a via contrária: a questão
da influência do protestantismo na cultura brasileira é uma preocupação de
lideranças e até de intelectuais do meio. A atuação das igrejas chamadas
“neopentecostais” têm mudado a dinâmica religiosa no Brasil, imprimindo uma
competitividade que mobilizou a Igreja Católica a investir mais ostensivamente
na evangelização e nos meios de comunicação, além da maior presença do
carismatismo tanto no pentecostalismo como na Renovação Carismática Católica.
Em algumas emissoras católicas, por exemplo, vemos a venda de produtos
abençoados, livros, vídeos e CDs e DVDs, tal como em alguns programas
evangélicos. O crescimento evangélico tem diminuído o número de terreiros em
alguns lugares do Brasil, pela conversão de muitas mães e pais de santo. E também
vemos uma pentecostalização do campo evangélico, com a incorporação de dons de
cura e profecia, e até descarrego e cultos de libertação e ideias de
prosperidade em igrejas que historicamente não o faziam, como algumas
Assembleias de Deus. Agora, se isso trará uma mudança em termos de “ética
protestante” – se é que podemos pensar dessa forma -, não vejo como medir em
termos nacionais.
RHBN: Num tempo em que a
felicidade é vendida como objeto de consumo, por que uma 'mercantilização da
fé' é tão mal vista pela parte não-crente da sociedade?
KB:Porque no Brasil a religião
sempre teve uma relação mais dissimulada com o dinheiro. Durante a Colônia e o
Império, o catolicismo era a religião oficial, não necessitando do sustento
direto dos fiéis, pois também contavam com recursos externos. Já as igrejas
protestantes sempre foram autônomas e dependeram dos seus próprios recursos,
incluindo o dízimo – que também faz parte das práticas católicas. Isso é um
ponto – a ideia de que religião e dinheiro não se misturariam, um macularia o
outro.
Quem de fato introduz um mercado
de produtos cristãos são os evangélicos, inspirados no modelo americano, a
partir dos anos 1980. Antes disso, a mídia impressa foi a maior produtora de
bens culturais religiosos consumidos. Além disso, um incipiente mercado
fonográfico surge a partir dos anos 1960 e 1970, desenvolvendo-se em gigantes
como a MK, a Line Records, e até selos cristãos em gravadoras seculares, como a
Som Livre e a Sony Music.
Outro elemento que surge e
circula pelos meios de comunicação é a chamada “Nova Era”, um conjunto de
práticas e crenças que alia tradições orientais e ocidentais, esoterismo e
misticismo, e que se difunde por livrarias, oficinas, cursos, programas de Tv e
rádio, vídeos, apontando para uma religiosidade mais fluida e individualizada.
Mas, quando os produtos em questão são vistos de alguma forma como “portadores
de cultura”, parecem não carregar uma aparência de “mercadoria”. Agora, o outro
lado do conceito de “mercantilização da fé” estaria na venda de bens
religiosos, de promessas de salvação ou de libertação de males físicos,
emocionais, ou de carências materiais, disponíveis pela lógica da Teologia da
Prosperidade, em que o fiel deve dar uma oferta em dinheiro em troca deste bem.
Pois bem, isso também ocorre nas religiões afro – vemos aqui a ideia da troca
do fiel com a divindade, para receber um benefício na terra.
Por isso, é importante que os
historiadores que estudam religiões no tempo presente possam problematizar
esses preconceitos e sensos comuns sobre as religiões no geral, pois há uma
grande diversidade de práticas e crenças, atendendo a diferentes necessidades,
sentimentos e vontades, e que se transformam ao longo do tempo e no contato
diário entre crentes, e não-crentes. Saber olhar para o que é dinâmico é tão
importante quanto reconhecer as permanências dentro dos fenômenos religiosos.
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