Economia da Vida: a proposta do Conselho Mundial de Igrejas. Entrevista com Marcelo Schneider
O trinômio riqueza, pobreza e
ecologia tem guiado as reflexões recentes do Conselho Mundial de Igrejas, CMI
diante da conjuntura mundial, na busca pela justiça econômica.
Com a proposta
de pensar uma alternativa à economia e aos impactos sociais gerados pela má
distribuição de riquezas, a Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas, CMIR, em
parceria com o Conselho Mundial de Igrejas, CMI e o Conselho para Missão Mundial,
CMM, economistas e ativistas de vários países do mundo, elaborou a
"Declaração de São Paulo”, intitulada Transformação Financeira
Internacional para uma Economia da Vida. A declaração foi entregue ao governo
boliviano na semana passada e será entregue aos demais chefes de Estado da
América Latina.
Em entrevista concedida à IHU
On-Line por e-mail, o teólogo Marcelo Schneider esclarece que "além de uma
análise estrutural, o documento traz uma série recomendações concretas que
visam a transformação do sistema econômico e financeiro atual”. Entre elas, ele
menciona a proposta de uma "reforma tributária que englobe uma política de
impostos progressivos capaz de fazer com que indivíduos e empresas que acumulam
quantias exorbitantes sejam levados a um maior comprometimento com as
sociedades onde vivem. A Declaração ainda pede a adoção de indicadores
econômicos alternativos, que englobem categorias como o bem-estar das pessoas e
o impacto ambiental, a garantia de acesso a serviços bancários básicos por
parte dos setores marginalizados das sociedades, uma regulamentação mais
efetiva do setor bancário”.
Marcelo Schneider é doutor em
Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, com tese
intitulada Em busca de uma ética social ecumênica. A discussão no Conselho
Mundial de Igrejas em perspectiva e práxis Latino-Americanas (2005). Também é
assessor do moderador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas e
correspondente para América Latina do departamento de Comunicação do CMI. Além
de membro da coordenação do Fórum Ecumênico Brasil e do grupo de comunicadores
de ACT Aliança (Acting by Churches Together), já atuou como coordenador de
comunicação e logística do escritório local da 9ª Assembleia do CMI
(2005-2006).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como, por quem, e
em que momento foi redigida a "Declaração de São Paulo”, intitulada
Transformação Financeira Internacional para uma Economia da Vida?
Marcelo Schneider - O documento é
fruto de uma conferência organizada pela Comunhão Mundial de Igrejas Reformadas
- CMIR, em parceria com o Conselho Mundial de Igrejas - CMI e Conselho para
Missão Mundial - CMM. O encontro reuniu cerca de 80 economistas, ativistas e
líderes de igrejas de todos os continentes, entre 29 de setembro e 5 de outubro
de 2012, em Guarulhos, São Paulo. No entanto, o evento não é um
episódio isolado e tampouco representa a primeira iniciativa ecumênica em torno
do tema da economia. O movimento ecumênico esteve criticamente envolvido em
questões de justiça econômica e social desde a sua criação. O termo "economia da vida”
foi forjado ao longo de um processo promovido pelo CMI chamado de Alternative
Globalization Addressing Peoples and Earth - AGAPE (Globalização Alternativa
direcionada aos Povos e à Terra), que, por quase uma década, dedicou-se a diagnosticar as causas que perpetravam estruturas econômicas injustas,
inserir-se em processos de debate da sociedade civil sobre este tema, como o
Fórum Social Mundial, abrir frentes de diálogo com o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional, e encorajar os membros das igrejas a buscarem mais
informações sobre o problema e engajarem-se na luta por justiça. À medida que o
processo se desenvolvia, com consultas regionais ao redor do mundo, tornou-se
clara a ligação que existe entre riqueza, pobreza e ecologia. Este trinômio tem
guiado as reflexões recentes do CMI em torno do tema da justiça econômica e foi
através dele que a crescente preocupação com o impacto da economia na natureza
se tornou um item crucial da agenda.
IHU On-Line - Quais são as
principais propostas da Declaração, especialmente no que se refere ao debate econômico e
ecológico?
Marcelo Schneider - Além de uma
análise estrutural, o documento traz uma série recomendações concretas que
visam a transformação do sistema econômico e financeiro atual. Entre as
propostas está a de uma reforma tributária que englobe uma política de impostos
progressivos capaz de fazer com que indivíduos e empresas que acumulam quantias
exorbitantes sejam levados a um maior comprometimento com as sociedades onde
vivem. A Declaração ainda pede a adoção de indicadores econômicos alternativos,
que englobem categorias como o bem-estar das pessoas e o impacto ambiental, a
garantia de acesso a serviços bancários básicos por parte dos setores
marginalizados das sociedades, uma regulamentação mais efetiva do setor
bancário, e a proposta de criação de um Conselho de Segurança Econômica, Social
e Ecológica na ONU.
IHU On-Line - Na semana passada a
Declaração foi entregue ao Ministro da Casa Civil da Bolívia, Juan Ramón de la
Quintana. Qual a postura e acolhida do governo boliviano acerca do documento?
Que papel o governo boliviano pode ter na discussão acerca do desenvolvimento?
Marcelo Schneider - O Pastor
luterano brasileiro Walter Altmann, moderador do Comitê Central do CMI, que
chefiou a delegação ecumênica naquela ocasião e responsável pela entrega do
documento, foi extremamente bem recebido tanto no palácio do governo, pelo
Ministro da Casa Civil, como na chancelaria, pelo vice-ministro para assuntos
inter-religiosos. A Bolívia tem desempenhado um papel muito importante no
debate e encaminhamento de resoluções nas Nações Unidas (ONU) acerca do tema do
desenvolvimento, principalmente no que tange à questão da água.
Graças ao minucioso e incansável
trabalho de diplomatas bolivianos, por exemplo, é que a Assembleia da ONU, em
2010, aprovou a resolução que declara a água como direito humano fundamental. A
visita ao governo boliviano, portanto, foi peça importante neste plano
estratégico que busca consolidar e encaminhar as reflexões ecumênicas em
esferas onde elas possam influenciar, de forma mais direta, os processos
decisórios internacionais tanto na sociedade civil quanto junto aos governos.
Percebemos interesse por parte
dos membros do governo boliviano em relação ao conteúdo da declaração. Temas
como a necessidade de mecanismos globais de controle da especulação financeira,
a proposta de criação de um Conselho de Segurança Econômica, Social e Ecológica
na ONU, e o reconhecimento e alerta acerca do impacto ecológico negativo de
estruturas econômicas injustas vigentes estiveram na pauta das conversas com os
governantes que, por sua vez, manifestaram interesse em adotar o documento como
um subsídio complementar aos seus diálogos com a sociedade civil daquele país.
IHU On-Line - Que outros chefes
de Estado já receberam a declaração e ainda irão recebê-la? Qual a expectativa
ao entregar essa Declaração a eles?
Marcelo Schneider - Em outubro de
2012, poucas semanas depois da publicação do documento, aproveitamos a presença de
algumas lideranças ecumênicas latino-americanas reunidas em Buenos Aires para
encaminharmos um pedido de audiência na chancelaria argentina. Na ocasião, o
bispo anglicano panamenho Julio Murray, presidente do Conselho Latino-Americano
de Igrejas - CLAI, chefiou a delegação e o documento foi entregue ao
vice-ministro para assuntos religiosos do Ministério de Relações Exteriores da
Argentina. De acordo com a estratégia regional de incidência em torno do
conteúdo da declaração, depois de Argentina e Bolívia, estamos encaminhando o
mesmo pedido aos governos do Peru e do Brasil. Obviamente, novas frentes irão
se abrir e a lista deve aumentar ao longo do ano. Esperamos que iniciativas
assim motivem organismos regionais de outras partes do mundo a fazerem o mesmo,
além do próprio CMI.
Como já afirmei acima, nossa
expectativa neste processo é fazer com que nossas reflexões atinjam esferas
decisórias mais diretas, tanto na sociedade civil como nos governos. Nos anos
1970 e 1980, o CMI e o movimento ecumênico em geral, desfrutavam de bandeiras
mais claras e desempenhavam um papel de peso em diversas áreas da ética social,
como a luta contra o Apartheid, na África do Sul, por exemplo. Ao longo dos
anos 1990 e da primeira década do novo século, como consequência mais triste de
nossa própria busca por contextualização e identidade, fomos perdendo
envergadura e deixamos de participar de processos mais diretos, ficando
relegados a uma espécie de gueto profético que, ainda que seguisse fiel à causa
por justiça, parecia ter perdido o momento histórico e deixado de tomar este ou
aquele caminho. Por isso, é importante retomar a caminhada nos espaços onde
estes temas estão sendo debatidos de forma mais ampla.
IHU On-Line - O documento também
será entregue à presidente Dilma? Qual a contribuição do Brasil nesse debate?
Marcelo Schneider - Em 2011, o
CMI reabriu um canal importante de diálogo com o governo brasileiro graças ao
projeto Brasil: Nunca Mais! Digit@al. Uma parte dos registros de abusos da
ditadura militar estava salvaguardada nos arquivos do CMI, em Genebra, Suíça.
Durante ato público realizado em junho de 2011, em São Paulo, cópias destes
documentos foram entregues ao Procurador-Geral da República e isto ajudou a resgatar
a imagem pública do CMI como um aliado histórico consistente na defesa dos
Direitos Humanos na América Latina. Como fruto deste processo, o moderador do
Comitê Central do CMI, Walter Altmann, inaugurou uma nova frente de diálogo com
a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Uma proposta de
acordo bilateral de cooperação entre o CMI e o governo brasileiro na área de
direitos humanos está em fase de elaboração. Tudo isto facilita muito o caminho
para que se consiga um momento para fazer a "Declaração de São Paulo”
chegar às mãos da Presidenta Dilma. O Brasil é, atualmente, considerado um país
em ascensão por grande parte da comunidade internacional. Estrategicamente,
seria de grande valia se as colocações ecumênicas em torno do tema da economia
global chegassem ao governo brasileiro.
IHU On-Line - Quais são os
maiores desafios econômicos considerando a conjuntura econômica e ecológica do
mundo hoje?
Marcelo Schneider - O maior
desafio é conter a ganância e buscar meios de partilha das riquezas existentes.
O conceito da "linha da pobreza” está amplamente difundido e, muitas
vezes, serve para comover a comunidade internacional em relação a este ou
aquele contexto onde pessoas vivem em absoluta miséria. Mas é preciso que se
fale também de uma "linha da riqueza”. Qual o limite da ganância? Até que
número é digno que um indivíduo ou uma empresa acumule riqueza? Até onde se
pode ser rico sem assumir nenhum tipo de compromisso com as outras pessoas?
A especulação financeira foi a
grande responsável pela grande crise de 2008. Esta crise foi causada por uma
frouxidão calculada de alguns governos que, em nome de uma agenda de
prosperidade a todo custo, deixaram os banqueiros agirem de forma desenfreada.
Mecanismos regulatórios não devem ser uma forma de opressão ou intervenção do
Estado, mas uma baliza ética essencial na garantia da justiça.
Se, por um lado, é preciso
resguardar o direito que cada pessoa tem de ter uma boa ideia, implementá-la e
obter lucro com isso, por outro lado, temos que encontrar formas de tornar o
acesso à riqueza menos excludente e, principalmente, fazer com que os pobres
tenham acesso a recursos e reencontrem uma vida digna.
Em meio a tudo isso, ou melhor,
em cima, em baixo e no meio de tudo isso, está a natureza. As recentes
conferências da ONU sobre mudanças climáticas (COPs) e aquela dedicada ao
desenvolvimento sustentável (UNCSD, Rio+20) foram enfáticas em mostrar o
inexorável impacto negativo do sistema econômico global em voga, que ignora
completamente a finitude dos recursos naturais existentes, o tempo que a
natureza precisa para renovar-se e a necessidade urgente de medidas que
contenham a poluição das fontes naturais e que impeçam a mercantilização da
vida em todas as suas formas. Tão importante quanto dar voz e vez aos excluídos
e conter a ganância dos bilionários é perceber que a natureza pede socorro e
que esta ajuda só pode sair de nossas mãos.
IHU On-Line - Como as Igrejas vêm
a proposta de Sumak Kawsay? Como esse modo de vida tem sido discutido pelo Conselho
Mundial de Igrejas?
Marcelo Schneider - Na reunião
com o governo boliviano, utilizamos o Sumak Kawsay por este conceito ter sido
forjado naquela região, através daquela espiritualidade. O conceito quéchua de
Sumak Kawsay (bem viver) é muito mais abrangente do que a noção de
desenvolvimento que vem sendo trabalhada em diversas frentes de cooperação e
ajuda humanitária. No âmbito ecumênico, encontramos experiências e saberes que
enriquecem muito a reflexão teológica e inspiram ações de incidência, como o
Ubuntu, na África e Sansaeng, na Coreia. Por ser um espaço de encontro da
comunidade cristã global, o CMI absorve estes conceitos e os toma como
inspiração e referência na busca da contextualização da causa por justiça
inspirada no Evangelho.
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Fonte: http://www.adital.com.br
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