Jean Salem, uma filosofia para transformar o mundo – Por Milton Pinheiro
“Jean Salem é um daqueles
intelectuais humanistas, cada vez mais raros, que são homens de cultura
integrada”.
O elogio desferido por Miguel Urbano Rodrigues aconteceu em outubro
de 2012, ao comentar o lançamento da edição portuguesa do livro:
A Felicidade ou
a Arte de Ser Feliz Quando os Tempos São Difíceis
Do escritor francês. Lutar pela felicidade, de acordo
com Salem, também autor de: Lênin e a Revolução, é um dever em meio à escalada
da barbárie capitalista.
Filho do revolucionário e
escritor Henri Alleg, o filósofo escreve artigos para diversos jornais
franceses e estrangeiros. Quanto às lutas concretas em que se envolve, elas
visam essencialmente, segundo ele, à reconstrução de um movimento
autenticamente revolucionário na França e no mundo.
Ao Brasil de Fato, Salem lança
luz sobre o que foi a França de Nicolas Sarkozy e o que é a de François
Hollande. Tece considerações acerca das lutas sociais na Europa que pecam por
falta de coordenação política. Fala da imagem midiática do Brasil na Europa, mas
enfatiza a visão segundo a qual ele, de fato, nos compreende.
Brasil de Fato – Você é um
filósofo que estuda os materialistas na filosofia grega e romana; marxista
ligado às lutas dos trabalhadores em seu país e no mundo, a exemplo de seu
apoio ao MST no Brasil, foi sempre vinculado às ideias comunistas. Quem é o
intelectual orgânico Jean Salem, sua história e suas lutas?
Jean Salem – Tenho, de fato,
dedicado uma dúzia de anos e mais de uma dúzia de livros a estudar de maneira
intensa o materialismo antigo: aquele de Demócrito, de Epicuro e de Lucrécio.
No meio dos anos de 1980, enquanto tudo parecia colapsar ao lado dos Partidos
Comunistas da Europa, e do “socialismo real”, eu decidi enfrentar os trabalhos
acadêmicos sobre esse assunto. Mais que compor uma milésima tese sobre Marx, eu
tentei (como o próprio Marx em sua tese de doutorado) conhecer mais de perto
esses autores que ousaram enfrentar os preconceitos religiosos e que já estavam
decididos a levantar um canto do véu, ou seja, a propor uma visão racional de
tudo o que nos cerca. Uma visão que permanece compatível com a ciência moderna.
Tenho também dedicado leituras a Maupassant, à Renascença italiana, à
felicidade, e tenho organizado diversos livros de filosofi a e de lógica
matemática.
Agora, você me pergunta sobre
minhas lutas. Elas são muitas: eu me encontro na Coréia, em Portugal, na
América Latina, em congressos ou
reuniões animadas pelos progressistas. Tomando o cuidado, sempre, de não cair
no que eu chamaria de “jet-altermundismo”: muitos se perdem nele, outros aí se
corrompem.
O projeto de Sarkozy,
completamente enquadrado na ação imperialista pelo mundo, em especial no norte
da África, foi derrotado eleitoralmente. Mas como fica a França com François
Hollande?
É evidente que Sarkozy encarnou um estilo de
chefe de Estado de cultura medíocre, vulgar até, rompendo com a tradição de uma
França onde, durante longo tempo, se quis crer que os notáveis deveriam
aparecer como mais que simples representantes do meio de negócios. Sarkozy, que
se vangloria de o denominarem “Sarkozy, o americano” [entenda-se, dos EUA],
tudo fez para alinhar a política francesa com a da Casa Branca. Antes mesmo de
assumir a presidência da república, em maio de 2007, [ainda que já ocupasse o
cargo de Ministro do Interior] frequentava assiduamente a embaixada americana
em Paris. E ele não hesitava em criticar a posição oficial da França – da
França que em fevereiro de 2002 vetou, no Conselho de Segurança das Nações
Unidas, a tentativa dos EUA aprovar a invasão do Iraque. Teve papel auxiliar
nas guerras empreendidas pelo império no norte da África.
Quanto à política interna,
Sarkozy tentou limitar o direito de greve, “reformou” as aposentadorias, inflou
os sentimentos xenófobos e exacerbou a psicose da delinquência, assim como os
temores mais primitivos. Promoveu uma redução das despesas públicas que
desmantelou a saúde pública, desorganizou a Universidade, oprimindo-a cada dia
mais.
O governo François Hollande, o
que mudou? Muito pouco. Mas a única medida, a única, que parecia fazer pender
um pouco à esquerda o seu governo foi a tentativa de taxar em 75% os ganhos
suplementares de uma pessoa rica, o que geraria pelo menos 100 milhões de euros
de receita. Mas essa medida foi declarada inconstitucional por um dos bastiões
do conservadorismo: o Conselho constitucional. Quanto à atitude francesa face à
situação na Síria, ela foi mais extrema e unilateral do que Obama! Eis que a
pequena guerra levada pelo senhor Hollande ao Mali vem completar o quadro de
comportamento dessa esquerda de direita, essa “esquerda” que parece cada vez
mais à direita.
Quais são as lutas que têm
pautado os trabalhadores franceses e europeus?
As lutas existem, é claro. Ainda
que elas se “beneficiem” de um impressionante silêncio midiático. Elas se dão
“com as costas na parede”, como dizemos em francês. Os trabalhadores da PSA
Peugeot Citroën, em Aulnay, na periferia de Paris, fizeram greve para protestar
contra o plano de licenciamento que os ameaça. E a direção da fábrica recorreu
ao lock out, ou seja, ela fechou provisoriamente as portas!
Mas as lutas seguem, bem e belas,
eu repito! Em maio de 2012 os portugueses pararam massivamente; a Itália
conheceu uma greve geral acompanhada de manifestações impressionantes; os
gregos foram às ruas contra os planos da União Europeia e do FMI; os jovens na
Espanha e os “indignados” em geral conseguiram que falassem deles, tanto pela
ação surpresa, quanto por surpreender os sindicatos, que estavam muito ocupados
em negociar uma redução da idade de aposentadoria a fim de assegurar a “paz
social” visando tranquilizar “os mercados”.
A questão não é tanto de ausência
e lutas, mas de falta de coordenação, de perspectiva: nós estamos morrendo,
literalmente, por falta de organização, por ausência de um partido digno de seu
nome!
Como professor da Sorbonne, você
tem sido responsável por um ciclo de cursos sobre o marxismo. Quais são as
presenças mais importantes de teóricos desse campo de pensamento?
Nós lançamos em 2005 um seminário
intitulado “Marx no século XXI”, na Sorbonne. Para afirmar ali a presença do
marxismo, que diziam morto há tempos. A ideia que preside a apresentação desse
seminário era um pouco análoga àquela que conduziu Lênin a fundar seu jornal
Iskra, um jornal destinado a reunir, a agrupar mil energias até então dispersas
na Rússia dos czares. Para nós, se trata de convidar todos aqueles que
trabalharam, ou pensavam trabalhar, “no seu canto”, isoladamente, nas condições
atuais de pesquisa na França e no exterior: pois, aqui, particularmente, as
pesquisas marxistas foram durante longo tempo marginalizadas, senão censuradas.
Claro que a vinda de Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey, ou a de
Georges Labica, André Tosel, Daniel Bensaid, Michel Löwy, Slavoj Zizek, etc.,
constituíram grandes momentos do seminário!
Você é um intelectual acadêmico
vinculado ao pensamento marxista e comunista com uma importante história de
vida: é filho do legendário comunista Henri Alleg. O que você nos diz sobre a
vida deste revolucionário internacionalista?
Meu pai nos deu a imagem de um
homem que triunfou sobre seus torturadores, redigindo um livro, A questão. Ele
os denunciou e fez saber, a todo mundo, qual era o método ao qual se costumava
recorrer na Argélia durante a guerra colonial; e que a história e as lutas dos
povos demonstraram que o sistema colonialista, inelutavelmente, deveria
colapsar.
Henri Alleg é filho de uma
inglesa e de um polonês, judeus, que se encontraram em Londres e vieram para
Paris. Mas ele se apaixona pela Argélia, onde se fixa. Depois de ser militante
e membro do Partido Comunista argelino, ele se torna, em 1950, diretor do
jornal Argélia Republicana, onde militou em favor da independência. E é como
jornalista comunista que sofreu as perseguições e as torturas durante anos de
prisão, e depois [após sua fuga] enfrentou o exílio nos países socialistas.
Meu pai seguiu seu combate
internacionalista trabalhando como redator, e depois como secretário geral do
jornal L’Humanité. De suas grandes reportagens na China, nos EUA, na União
Soviética em Cuba, ele extraiu numerosos livros. O último é seu livro de
memórias, Memória argelina, publicado em 2005, pela editora Stock.
Como intelectual e militante
comunista você deve viajar por várias partes do mundo. O que nos diz sobre as
lutas dos trabalhadores? Há algo de novo no front?
Sim, tenho tido a felicidade de
ser convidado por universidades em todo o mundo. E tenho participado de muitas
reuniões, algumas vezes acadêmicas, porém mais frequentemente políticas. Isso
abre horizontes à reflexão. Na China pude constatar que o problema da poluição
nas cidades não se reduz, nem um pouco, a um tema de propaganda inventada pelas
redações ocidentais. Vi também o extraordinário progresso desse país, que o
Império cerca de maneira já ameaçadora.
Na Rússia se pode ver os efeitos
do capitalismo selvagem imposto a partir do golpe de 1991: lojas abertas 24
horas por dia, sete dias por semana; reino do business e da corrupção
generalizada; desigualdades ainda mais gritantes que na França, etc.
Mas eu fiquei impressionado,
recentemente, pela seriedade e organização dos camaradas coreanos, que
organizaram em setembro último, em Seul, um importante fórum internacional.
Eles estão lidando com um modelo quase acabado de “democracia” completamente
formal: uma lei dita de “segurança nacional” (que durante muito tempo era
chamada simplesmente de “lei anticomunista”) permite, de fato, que o governo
jogue na cadeia qualquer um que diga uma palavra que seja a favor da
reunificação com o norte, qualquer um que denuncie o sistema de forma um pouco
mais radical. Pude ver, nesse país longínquo (que a China e o Japão nos fazem
quase esquecer), homens e mulheres dos quais a determinação, a coragem e a
qualidade humana me lembraram as belas figuras de comunistas que, na minha
juventude, eu admirava.
Como analista de profunda
convicção internacionalista, qual a sua análise sobre o Brasil e qual a
mensagem que você deixaria para aqueles que lutam pela emancipação humana, em
nosso País?
Dei aulas, durante algumas
semanas, na USP, e dei algumas conferências na Universidade São Judas Tadeu.
Foi em 2007. Devorei sua literatura (Machado de Assis me agrada tanto quanto
Sterne e certos romancistas franceses que, como Crébillon, por exemplo, eu
aprecio particularmente). Sem querer dar lições e menos ainda ser um
intelectual que emite julgamentos sem conhecer grande coisa sobre o que fala, o
que eu posso dizer é que a imagem “midiática” do Brasil mudou radicalmente nos
últimos 20 anos. Do Brasil dos trabalhadores superexplorados, que durante muito
tempo nosso imaginário ocidental prontamente reduzia ao Nordeste, e a sua
miséria apavorante, do Brasil que era descrito, por exemplo, em Cacau de Jorge
Amado, passamos a um Brasil que nossas mídias apresentam como um país em pleno
progresso, como um gigante em formação, como um “concorrente” muito sério para
as economias cambaleantes da velha Europa, e etc.
Essa evolução foi acompanhada por
uma unanimidade alardeando sem qualquer nuance a política do governo Lula.
Quando o Tesouro estadunidense, os grandes bancos de negócios e as agências de
classificação dirigem louvações a vocês, é normal que a mídia do sistema trate
o Brasil com uma deferência entusiasta. Já a questão da corrupção foi enfocada
de passagem por nossa mídia oficial. Em compensação, se fala muito pouco, na
Europa, das desigualdades abissais que subsistem no Brasil.
* Jean Salem é filósofo,
militante das lutas anticapitalistas e comunistas, estudioso da filosofia
materialista greco-romana, professor da Universidade de Paris I (Sorbonne),
onde coordena o seminário “Marx no Século XXI” e é diretor do Centro Para a
História do Pensamento Moderno.
* Milton Pinheiro é Professor de
Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e editor da revista
Novos Temas
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