Mitologia e religião no Oscar 2013 em uma sociedade cética – Por Wilson Ferreira
O nosso leitor Giordano Cimadon
da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba indicou o artigo de S. Brent
Plate (professor de Estudos Religiosos da Hamilton College – EUA)
“Religion at
Academy Awards”
sobre a intensa presença de temas, símbolos e alegorias
religiosas nos filmes que estão disputando o Oscar desse ano.
Para Plate, a
indústria do entretenimento parece ultrapassar as instituições religiosas como
a principal criadora de mitos e rituais em uma sociedade que, paradoxalmente,
cresce o espírito de ceticismo e aversão às religiões organizadas. Filmes como
“As Aventuras de Pi”, "Django Livre”, “Indomável Sonhadora” e “The Master”
exploram antigas simbologias míticas como as da água, enchentes e caos, e
bíblicas onde compaixão, vingança e justiça divina se entrelaçam de forma
inextrincável.
Em postagens anteriores falávamos
de uma “guinada metafísica de Hollywood” a partir de uma série de filmes cujos
roteiros e argumentos se inspiravam em antigas narrativas míticas do
Gnosticismo - conjunto de seitas sincréticas do início da era cristã que davam
uma interpretação mística de Cristo. Filmes como “Show de Truman”, “Matrix”,
“Vanilla Sky” entre outros criaram uma coerente recorrência de personagens,
temas e simbolismos gnósticos.
Mas Plate parece demonstrar um
fenômeno diferente no artigo que reproduzimos abaixo: um sincretismo de
simbologias, temas e rituais de religiões institucionalizadas e mitologias
antigas, tudo cimentado pela auto-ajuda e a crença no trabalho duro do herói -
ideologia do “self made man” americano? É o que chamaríamos de “ecumenismo
pós-moderno”. O mesmo sincretismo desesperado do protagonista Pi em “As
Aventuras de Pi” que misturava práticas cristãs com hinduísmo e islamismo em
busca de algum sentido. É o paradoxo descrito por Plates em um mundo onde as
religiões institucionalizadas decrescem na proporção inversa do crescimento do
“espiritualismo”.
No momento em que reverenciamos uma
estátua dourada chamada Oscar em rituais de exaltação a um santo despido
enquanto lemos as nossas sagradas colunas de fofocas, podemos parar para
refletir sobre o lugar permanente dos temas e alegorias religiosas nos filmes
que disputam o prêmio desse ano. Mais uma vez os filmes indicados ao Oscar
deste ano estão repletos de referências religiosas demonstrando que a indústria
do entretenimento parece ultrapassar as instituições religiosas como a
principal criadora de mitos e rituais em uma sociedade onde os “céticos” ou
“não-religiosos” estão em ascensão.
O desejo por algum tipo de
redenção na vida humana através de veículos como “graça”, “karma”, ou
simplesmente o trabalho duro, é fortemente explorado por Hollywood. Os caras
realmente maus merecem o seu lugar na cova, mas muitos miseráveis ainda podem
ser salvos. Comentando sobre seu romance, "Os Miseráveis", Victor
Hugo notou como o enredo “se move do mal para o bem ... do nada a Deus."
Mas, aparentemente, a simplicidade desse
arco narrativo não é o suficiente para o público contemporâneo. Por isso
Hollywood, via Broadway, acrescenta música. Algumas músicas, shows e alguns
rostos bonitos ajudam a tornar as viúvas, os órfãos e os ladrões suportáveis,
abrindo nosso caminho à redenção.
"Django Livre": Bíblia
e vingança
Mas, se os caras maus são feios
tanto no rosto quanto no espírito, podemos nos deliciar com a mais dura
justiça. "Django Livre" foi, de acordo com um crítico de destaque, um
"prazer narcótico e delirante". O encontro do gênero
spaghetti-western com a violência explosiva de Quentin Tarantino levanta
questões sobre o papel da violência e o lugar da religião na criação desta
nação. Duas cenas trazem isso para o campo religioso. A primeira ocorre no
início, quando um traficante de escravos leva em torno de uma Bíblia um
chicote, citando algumas passagens sobre a justiça das escolhas de Deus. Várias
páginas de uma Bíblia estão presas ao seu corpo quando Django (Jamie Foxx)
atira nele. A página que está sobre o seu coração onde se lê "couraça da
justiça" (Isaías 59,17) se torna o alvo de uma bala.
A cena corolária vem no final,
quando o Django inicia uma séria revanche. Quando Django se prepara para
descarregar balas nos corpos dos escravagistas, a letra da música neo-soul de
John Legend (“Quem fez isso com você?”) lembra-nos que toda vingança é do
Senhor “Mas eu vou fazer isso primeiro", pois "meu julgamento é
divino", diz Django. As implicações
são claras: Django encarna a vingança de Deus. E quando os irmãos Brittle
tombam mortos, Django proclama: "Eu gosto do seu jeito de morrer,
rapaz", uma afirmação que se torna também o grito narcótico e delirante do
público.
A vingança de Django não está
muito longe da história do abolicionista cristão John Brown, que pegou nas
armas no mesmo período histórico em que a narrativa de “Django Livre” foi
definida, na véspera da Guerra Civil.
Brown afirma: "Tenho pena do pobre no cativeiro que não dispõe de
qualquer ajuda: é por isso que eu estou aqui, não para satisfazer qualquer
animosidade pessoal ou espírito vingativo." Após uma fracassada tentativa
militar em roubar armas do arsenal Harper’s Ferry, Victor Hugo publicou uma
carta buscando perdão a Brown. Caridade cristã, atitudes em relação ao oprimido
e a violência se misturam de uma forma difícil de separar.
Certa vez T.S. Eliot poetizou
sobre o poder do "estranho deus marrom", que é um rio, e como na
modernidade nos esquecemos desse poder quando nós construímos pontes sobre ele.
Até que um dia ele se enfurece, se levanta e destrói. A água pode limpar, mas
mitos após mitos religiosos (e não apenas a respeito de Noé) apresentam a água
como portadora da morte. Inundações representam o caos em erupção a partir do
profundezas, ultrapassando a ordem
cósmica da terra dos vivos. Ambos os filmes “Indomável Sonhadora” (Beasts of
the Southern Wild) e “As Aventuras de Pi” (Life of Pi) bebem nessas antigas
fontes históricas, levando-nos de volta ao primitivo, ao destrutivo e,
finalmente, ao poder recriador de água.
A grande divindade Vishnu domou o
caos do mar infinito reclinada sobre a parte de trás da serpente do mar Shesha.
Uma imagem que descreve esse mito é mostrada no início do filme dirigido por
Ang Lee "As Aventuras de Pi", uma história que se desenrola através
do jovem protagonista Piscine Monitor ou "Pi" (Suraj Sharma), a bordo
de um bote salva-vidas com um pouco domesticado tigre. As águas se enfurecem e
matam sua família. Pi sobrevive à jornada do herói através de um oceano de
tubarões, ilhas carnívoras, e, oh!, sim, o Tigre. Ele é atraído para rituais e
tradição, e alegremente sincretiza elementos hindus, muçulmanos e práticas
cristãs. O que fica na sua garganta é mais a ausência do ritual, os obstáculos
para as cerimônias que preveem coisas até o fim, permitindo um cosmos em face
do caos. Quando é deixado sem as instituições e comunidades que ajudam a
promover tais atividades, o significado está perdido.
Fonte: http://www.advivo.com.br
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