Batuque: uma religião afro-rio-grandense em oposição à cosmovisão cristã – Por Moisés Sbardelotto e Márcia Junges
Nascido no Rio Grande do Sul, o
batuque, religião afro-brasileira de culto aos Orixás, encontrou no solo gaúcho
um território receptivo, apesar do racismo e das importância social e política
das religiões cristãs, especialmente da Igreja Católica.
Sinal disso é que os
deuses do batuque recebem polenta ou churrasco como oferendas, além de caldos
com erva-mate, e vestem até bombacha.
Mas, para o Prof. Dr. Norton
Figueiredo Corrêa, existe por trás disso uma enorme assimetria de poder social
e cultural, especialmente entre as religiões cristãs e as afro-brasileiras. Em
termos de cosmovisão, por exemplo, ele afirma que, "enquanto a sexualidade
é condenada no catolicismo (e no céu também não existe sexo), os deuses
afro-brasileiros namoram as deusas".
E se o céu católico-cristão parece
algo eternamente inerte, as representações referentes aos orixás
"mostram-nos em movimento, guerreando, amando".
Nesta entrevista concedida à IHU
On-Line, por e-mail, Corrêa defende que justamente os brancos que ocupam as
posições de maior poder na sociedade gaúcha é que vão buscar o poder simbólico
que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa afro-brasileira. Segundo
ele, Borges de Medeiros (1863-1961), presidente do Estado do Rio Grande do Sul
por mais de 25 anos, era cliente de um famoso e rico sacerdote africano. Por
outro lado, Dom Vicente Scherer (1903-1996), cardeal e ex-arcebispo de Porto
Alegre, manteve, por muitos anos, um ataque frontal às religiões afro, hoje
manifestado pela Igreja Universal do Reino de Deus.
Confira a entrevista.
Quais são as origens do batuque?
Poderia situá-las?
Norton Figueiredo Corrêa – O
batuque provavelmente surgiu em Rio Grande, na segunda metade do século XIX. Um
trabalho muito interessante de mestrado, de Jovani Scherer, detectou uma considerável
colônia de nagôs na cidade. É possível que uma parte dos negros de origem
jêje-nagô tivessem vindo da África, diretamente, e uma parte de outros Estados
brasileiros. São extraordinariamente grandes as semelhanças entre o batuque e o
xangô pernambucano. Do Rio Grande do Sul, o batuque migrou para o Prata, hoje
há muitas casas "de religião", para usar um termo usado por seus
integrantes, na Argentina, Uruguai, Paraguai e outros países vizinhos.
Quais são as suas peculiaridades
e diferenças em relação a outras religiões afro-brasileiras?
Norton Figueiredo Corrêa – Uma
das peculiaridades do batuque – mas comum a qualquer religião – é a adaptação
ao contexto regional. No caso do batuque, Oxum, a deusa das águas doces, tem
como oferenda a polenta, influência da colônia italiana. O Bará, divindade das
encruzilhadas e caminhos, recebe batatas inglesas assadas, sendo que a batata,
embora americana, foi popularizada pela colônia alemã. A veste ritual masculina
é a bombacha e o churrasco é o alimento preferido de Ogum, o deus da guerra e
das artes manuais. E os eguns, os espíritos dos mortos, recebem uma espécie de
caldo, o mieró de egum, ao qual alguns templos adicionam erva-mate. Mas há
diferenças variadas entre o batuque e outras religiões, especialmente as de
influência banto, como a umbanda e o candomblé de caboclo baiano.
Qual a importância do batuque na
construção da sociabilidade e da religiosidade do gaúcho?
Norton Figueiredo Corrêa – Podemos
falar na sociabilidade interna à religião e externa a ela. Internamente,
entendo que o batuque foi um espaço simbólico criado pelos negros urbanos com a
função de praticarem a sociabilidade, de se auto-protegerem contra a repressão
da sociedade branca e construírem uma identidade própria, grupal. Com o tempo,
os brancos, especialmente das classes baixas, começam a ingressar na religião,
e muitos deles, mesmo no passado, assumiram a condição de pais e mães-de-santo
e se tornaram muito famosos e respeitados dentro e fora da comunidade.
Atualmente, o número de brancos aumentou, inclusive descendentes de italianos e
alemães. O que ocorre com eles é que a conversão às religiões afro, mas mais
especialmente ao batuque, implica na aquisição de uma visão de mundo muito
específica, que se opõe diametralmente à cristã. São brancos na pele, mas
negros na cabeça.
A expressão "sociedade
gaúcha" é complicada, porque os religiosos afro-brasileiros pertencem a
ela. Se falarmos dos não filiados às religiões afro, a grande influência delas
se traduz pelo fato de que os não filiados acreditam firmemente no poder
simbólico que elas possuem. Quando falei em espaço criado, trata-se, na
verdade, de um espaço negociado entre a comunidade religiosa e a sociedade
envolvente. Há dois pontos a considerar. Os brancos ocupam as posições de maior
poder na sociedade gaúcha, e esta, em caráter oficial, apenas tolera as
religiões afro. Mas são justamente essas pessoas, individualmente, que vão
buscar o poder simbólico que creditam aos sacerdotes da comunidade religiosa
afro-brasileira.
A classe alta gaúcha e o batuque
Observei tal fenômeno, que é
muito recorrente, durante os 20 anos de pesquisa sobre o batuque. Ouvi, de pais
e mães-de-santo, descrições muito precisas e detalhadas de escritórios,
consultórios, indústrias, lojas e empresas de grande porte, para onde foram
levados por seus proprietários para fazerem serviços religiosos. Assinale-se
que o detalhamento excedia os locais frequentados pela clientela ou público,
estendendo-se, por exemplo, a almoxarifados, salas reservadas etc.
Além disso, muitos dos nomes dos
respectivos proprietários eram de pessoas de grande visibilidade na sociedade
gaúcha. Diz-se que Borges de Medeiros [(1863-1961), presidente do Estado do Rio
Grande do Sul por mais de 25 anos], nos anos 1930, era cliente do Príncipe, um
famoso e rico sacerdote africano que veio morar em Porto Alegre. Testemunhas
afirmam que ele o atendia – assim como a outros políticos – a portas fechadas,
em seu templo. E que teria "sentado" (isto é, entronizado) um Bará,
no Palácio Piratini.
O segundo ponto a ser considerado
é que é muito difícil que uma família pobre, no Rio Grande do Sul, mesmo
branca, que não tenha vários membros iniciados ou frequentadores de religiões
afro. Uma grande quantidade de pessoas, além disso, já jogou búzios e sabe quem
são seus orixás ou entidades, porque, na visão de mundo batuqueira, cada
indivíduo, não importa se iniciado ou não, mesmo os de outros locais do mundo,
são filhos espirituais de dois orixás, um que comanda a cabeça, e outro, o
corpo.
Repressão católico-cristã
É um fenômeno semelhante ao que
ocorre na Bahia, mas com a diferença de que no Rio Grande do Sul não existe,
como lá, a enorme badalação (muito para fins turísticos, esclareça-se) que é
feita sobre o candomblé e seus orixás. O número de templos afro-gaúchos,
estimado em cerca de 30 mil, supera os do Rio de Janeiro e os da Bahia. Outro
indicador – a abundância de despachos em rios, cachoeiras, ruas, praias,
cemitérios, matas (o que, inclusive, ensejou tentativas de regulamentação
através de leis) – é uma característica local, não observável nos outros
estados referidos. A presença e pujança das religiões afro-gaúchas é algo
extraordinário em se tratando de Brasil. Mas, pode-se perguntar, qual o motivo
de tanta vitalidade justamente num Estado considerado o mais branco da
Federação? A resposta, na minha opinião, remete para a questão do racismo no
Rio Grande do Sul, que é muito forte, além da grande presença e
influência política, social e simbólica da Igreja Católica, que até bem
recentemente foi a grande responsável pela repressão a estas religiões.
Uma figura de muita projeção, como Dom Vicente Scherer [(1903-1996), arcebispo de Porto Alegre entre 1946 e 1981. Em 1969, foi designado cardeal], manteve, por muitos anos, uma coluna jornalística, além de um programa de rádio, nos quais atacava violentamente tais religiões. Atualmente, os ataques partem da [Igreja] Universal do Reino de Deus (IURD), também uma instituição cristã. Aí voltamos à questão do espaço de sociabilidade que os negros criaram, uma resposta a um ambiente hostil.
Não é demais acrescentar que, de
certo modo, a arma simbólica potencial representada pela feitiçaria – ou seja,
a possibilidade de manobrar com forças sobrenaturais perigosas, conhecidas
apenas pelos integrantes da comunidade religiosa – ocupa um ponto importante
nas relações sociais no Rio Grande do Sul: brancos e negros acreditam em tais
poderes, mas ambos concordam que são os negros que detêm tais poderes. Ou seja,
o feitiço, como possibilidade, atua também como um moderador do poder branco. A
questão também se projeta no caso de Exu. Divindade africana dos caminhos e
encruzilhadas, foi demonizado pelo cristianismo. Mas o feitiço virou contra o
feiticeiro: ao associar os religiosos negros ao "mal", deu-lhes, de
bandeja, a condição de serem proprietários deste e, por conseguinte, o poder de
manejar com ele. Os muito humanos desejos de vingança, os sentimentos como
raiva e ódio impotentes encontram aí um canal de expressão e liberação. Alguém,
pergunta-se, pediria a uma divindade cristã que aniquilasse com a amante do
marido, por exemplo?
E quais são as influências do
batuque na culinária, também ritual?
Norton Figueiredo Corrêa – Muito
pequenas, porque é algo que permanece no intra-muros dos templos. Um dos poucos
alimentos rituais de divindades do batuque, o acarajé, era antigamente vendido
nas ruas. Mas é um costume que desapareceu no Rio Grande do Sul. A culinária
rio-grandense de origem africana veio dos povos banto, da região de Angola, de
Moçambique e do antigo Congo, como o quibebe, um pirão de abóbora.
O alimento, por ser algo
indispensável à vida humana, ocupa um lugar importantíssimo nos rituais de boa
parte das religiões. No catolicismo, a consagração do pão-hóstia, que
representa o corpo de Cristo, e o vinho, o sangue, se constitui no ápice da
missa. A expressão "o pão nosso de cada dia..." compõe uma das
orações de maior destaque. Nas religiões afro-brasileiras, a principal oferenda
são alimentos: de origem animal, como a carne e certos órgãos, ou vegetais,
como a polenta e o acarajé, além de bolos, doces.
Como se dá o diálogo
inter-religioso entre o batuque e as demais religiões em nosso Estado?
Norton Figueiredo Corrêa – Quanto
à [Igreja] Universal do Reino de Deus, como disse, é de franco ataque por
parte. No meu entender, a incrível tolerância do poder público brasileiro face
aos ataques, discriminação e desmoralização que a IURD promove em relação às
religiões afro é um exemplo muito ilustrativo, primeiro, do status que elas
ocupam na sociedade brasileira, que acompanha o de seus integrantes, os negros,
cidadãos de segunda classe. E segundo, do racismo. Se os ataques fossem à
religião católica, a questão seria muito diferente, como caso da imagem da
santa, chutada pelo pastor.
Como ex-aluno de uma instituição
jesuíta, como você percebe o diálogo entre as religiões afro-brasileiras e o
catolicismo?
Norton Figueiredo Corrêa – Pouco
expressivo, especialmente porque são duas visões de mundo opostas e
inconciliáveis. Tal constatação me surgiu com base no conhecimento da cosmovisão
cristã-católica, que aprendi em família (mas principalmente nas leituras da
Bíblia e do catecismo, nas aulas de religião, no velho Colégio Anchieta) e das
longas observações que fiz sobre o batuque. A visão católica, desenvolvida por
Santo Agostinho através dos escritos de Platão, prega que o destino da alma
está relacionado ao que o indivíduo faz em vida. É o que batizei de
"efeito-gangorra": se conceder tudo o que o corpo quer (em última
análise, o prazer), a alma vai para inferno. Ao contrário, se se reprimem
os desejos do corpo, vai para o céu. Em última análise, a dor redime (a maioria
dos santos foram para o céu porque sofreram), e o prazer condena.
Na visão de mundo religiosa
afro-brasileira, o destino da alma independe das atitudes do indivíduo em vida:
fica vagando, vai para os cemitérios ou se instala numa pequena casinha, o
balé, existente nos templos. Como não existe o efeito-gangorra, o prazer não é
condenado; pelo contrário, a vida é para ser bem vivida, em todos os sentidos.
Os respectivos panteões ilustram tais realidades: por exemplo, enquanto a
sexualidade é condenada no catolicismo (e no céu também não existe sexo),
os deuses afro-brasileiros namoram as deusas. As representações sobre o céu
remetem à imobilidade (como a missa), mas as referentes aos orixás mostram-nos
em movimento: cumprindo certas atividades, guerreando, amando, movimentando-se
por certos lugares que lhes são consagrados. Mas o que mais gostam
verdadeiramente é de dançar. Para isso, tomam conta dos corpos e mentes de seus
filhos espirituais humanos, dançando através deles nas solenidades religiosas
realizadas em sua homenagem. Por isso, afirmo que são cosmovisões muito
diversas, opostas.
Graças a tudo isso é que, no meu
entender, não tem sentido o que as igrejas cristãs chamam de evangelização,
pois não passa pela cabeça de um religioso afro-brasileiro a ideia de que se
deve, como Cristo, optar pela dor e pelo sacrifício para salvar a própria
alma. Tais questões, igualmente, é que impedem, também em minha opinião,
a efetivação de um verdadeiro ecumenismo, na mais ampla acepção do termo.
A não ser que, antes de tudo, seja reconhecido que há uma enorme assimetria de
poder, social e culturalmente falando, entre as religiões cristãs – e, no caso,
a católica – e as afro-brasileiras. E, segundo, que o termo se traduza pelo
mais amplo, total e irrestrito respeito às diferenças e à visão de mundo de
cada um.
Quais são os conflitos intra e
extrarreligiosos do batuque? Poderia exemplificar?
Norton Figueiredo Corrêa – Os
conflitos internos, entre integrantes do mesmo templo e entre os templos,
devem-se, em boa parte, à estrutura de sua organização: os templos são unidades
hierarquizadas e que permitem a ascensão do fiel aos cargos e posições de
prestígio e mando, que têm como ápice o sacerdócio e a abertura de um templo
para si. A situação é semelhante entre os templos, pois há uma certa hierarquia
e possibilidade de ascensão em matéria de prestígio, na comunidade, trazida
também pela visibilidade interna, mas que podem ser potenciadas pela externa,
junto à sociedade envolvente.
Quais são os principais desafios
para o negro hoje, dentro do tipo de sociedade em que vivemos?
Norton Figueiredo Corrêa – O
principal desafio para o negro, hoje, é batalhar, individual e
coletivamente, para superar os obstáculos, especialmente o racismo e a
discriminação racial que lhe são postos pela sociedade.
Fonte: http://amaivos.uol.com.br
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