Fundamento e fundamentalismo – Por Alfredo J. Gonçalves
O fundamentalismo religioso,
político, ideológico ou de qualquer outra natureza, constitui a negação de um
verdadeiro fundamento.
Toda religião, todo projeto político e toda espécie de
ideologia têm como alicerce alguns princípios que os sustentam. Formam as
balizas e a base de seu fundamento.
Tais princípios, porém, deixam de
evoluir de acordo com o contexto histórico e os desafios do tempo, correm o
risco de fossilizar-se, de cristalizar-se, tornando-se tão rígidos que não
respondem mais às perguntas e inquietações das gerações novas. Novas perguntas
e novas dúvidas exigem novas respostas.
Paralisados diante da dinâmica sócio
histórica, os fundamentos tendem a exacerbar-se, convertendo-se em seu exato
contrário, isto é, no fundamentalismo fóssil. Este, ao longo dos séculos, tanto
à direita quanto à esquerda, tanto do ponto de vista religioso quanto ateu, tem
deixado um rastro macabro de perseguições, deportações, execuções, torturas,
mortes, uma imensa multidão anônima de mutilados e de cadáveres.
Os exemplos históricos são os
mais variados: vão desde a cristandade medieval ("fora da Igreja não há
salvação”) com as repetidas cruzadas, o processo de inquisição e as fogueiras,
até a guerra santa de alguns radicais muçulmanos com suas divisões intestinas e
seus métodos terroristas, passando pelas experiências totalitárias do
socialismo real, especialmente na ex-União Soviética, bem como do fascismo e
nazismo que culminaram com a tragédia da Segunda Guerra Mundial e do
holocausto.
Toda espécie de totalitarismo tem como base alguma forma de
fundamentalismo, seja ele de caráter político, ideológico ou religioso, quando
não os três ao mesmo tempo. Ao absolutista um determinado programa ou uma
determinada formação sócio-política, acaba-se por esquecer que tais construções
são sempre situados no tempo e no espaço. O resultado é a exclusão de toda
pessoa, grupo, povo, religião ou nação que não o seguem ou a ele não se
adaptam. Questionar determinadas ideologias é ser "alienado”,
"pecador”, "incrédulo”, o que pode levar à prisão e à morte.
A pretensão de possuir a verdade,
e de a possuir em termos absolutos, conduz à expurgação pura e simples. Segue-se
lhe o "dever” e até ao "direito” de eliminar o outro. Este pode ser o
herege ou a feiticeira/bruxa da Idade Média, o louco ou cientista do
Renascimento, o infiel ou ateu das "guerras santas”, o comunista ou
capitalista da sociedade contemporânea...
As consequências se tornam mais
graves e trágicas quando tal pretensão da verdade se reveste de uma roupagem
religiosa. De fato, a história registra as mais brutais barbaridades cometidas
em nome de Deus. O raciocínio é simples e direto:
"Se eu possuo a verdade
e sigo a vontade de Deus e você se opõe, você deve morrer”! Quando recorremos a
Deus para justificar certa posição ou certos critérios, qualquer argumento em
contrário deve ser absolutamente banido.
Chega-se assim a um o conceito
distorcido de identidade. Esta, em lugar de enriquecer-se no confronto e no
diálogo com o outro, fecha-se completamente em si mesma, evitando todo e
qualquer encontro ou questionamento. "O outro é o inferno”, dizia
amargamente o filósofo existencialista J.P.Sartre, um perigo a ser evitado ou
combatido.
A verdade torna-se única e absoluta, a pluralidade um risco a ser
eliminado pela raiz. Também pela raiz eliminam-se as sombras e ambiguidades,
próprias da condição humana. Nessa perspectiva, vê-se somente o preto e o
branco, tudo que é cinza converte-se em perigo. A verdade deve ter fronteiras
precisas e perfeitamente determinadas. Nenhum espaço para interpretações
diferentes, nada de interrogações incomodas Interrogar é duvidar, duvidar é
descrer...
Ora, sabemos que o ser humano é
feito de luzes e sombras, e entre umas e outras, os limites se misturam e se
confundem. Borram-se as fronteiras entre o certo e o errado. Nas relações
humanas, a cor cinza, indeterminada, costuma ser mais frequente que a cor forte
e fortemente definida. A identidade constrói-se em meio às contradições da
existência, dilacerada por medos, traumas e dúvidas. Nas palavras do Evangelho,
o joio e o trigo crescem juntos.
A pressa em separá-los pode deitar a perder o
trigo juntamente com o joio. "Na vida, tudo é muito misturado,
lusco-fusco”, lamenta-se o personagem Tartarana da obra de Guimarães Rosa, Grande
Sertão, Veredas. Os filósofos E. Lévinás e H. G. Gadamer, ao contrário de
Sartre, afirmam respectivamente que "o outro é o caminho para chegar a mim
mesmo” e que "o outro tem mais a dizer sobre mim mesmo que sobre ele”.
Em termos mais concretos e
sintéticos, qualquer opinião, argumentação ou postura político-ideológica, bem
como qualquer religião, deve ter sim seus fundamentos, sua identidade, sua
forma étnica e ética. De acordo com uma intuição de Hans Kung, em sua clássica
trilogia sobre Ebraísmo, Cristianismo e Islam, o fundamento não se
confunde com o fanatismo cego e surdo, o qual, guiado por princípios rígidos e
ossificados, a ponto de tornar-se a-histórico, devasta tudo e todos. Identidade
não se confunde com o nacionalismo exclusivista, preconceituoso, xenófobo e
discriminatório, que faz do outro/diferente um inimigo a ser varrido do mapa
com todas as forças.
A ética, feita de balizas e estrelas que nos orientam no
comportamento diário, não se confunde com o moralismo petrificado no tempo e no
espaço, o qual não tem lugar nos ouvidos e na alma dos jovens, por exemplo.
Numa palavra, fundamento,
identidade e ética não podem constituir-se em dogmas cerrados sobre si mesmos.
Ao contrário, devem permanecer abertos a um aprendizado contínuo, de acordo com
as circunstâncias e os desafios que cotidianamente nos batem à porta. Isso não
significa, evidentemente, pular para o outro extremo do cinismo, do relativismo
e do niilismo, hoje em moda na sociedade pós-moderna.
A "sociedade
líquida” (Zygmunt Bauman) não é sinônimo de ausência de critérios ou
princípios, e sim adaptação racional e consciente destes à realidade que nos
cerca e que se encontra em constante metamorfose. Vale aqui o pensamento de J.
B. Scalabrini, chamado "pai e apóstolo dos migrantes”: a história muda,
avança, corre com velocidade cada vez maior, e nós não podemos ficar para trás.
Por isso, dizia ele, "a novos desafios, novos métodos”.
Fundamento, identidade e ética,
se e quando se mantêm abertos ao diálogo, instalam uma circularidade de
crescimento recíproco com as interrogações levantadas pela história em movimento.
Ao mesmo tempo que iluminam os projetos, caminhos e passos de determinadas
pessoas, grupos ou nações, deixam-se iluminar pela "irrupção de Deus na
carne do mundo”, para usar uma linguagem teológica cara ao teólogo italiano
Bruno Forte.
Ao invés de agarrar-se a um passado fossilizado ou a um presente
cego e marcadamente hedonista, abrem a janela para as possibilidades do futuro,
os "sinais dos tempos” escritos no pergaminho da história. Abrir-se aos
riscos do "novo” é vencer um saudosismo doentio, mórbido que muitas vezes
faz da vida um verdadeiro museu.
Roma, 25 de Setembro de 2013.
fonte: http://site.adital.com.br
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