Marcada por conflito com minorias, Rússia tem região que reúne pacificamente etnias e religiões – Por Sandro Fernandes
Coloque no mesmo território diferentes
etnias, culturas e religiões. A fórmula, tantas vezes explosiva, resultou
harmônica em uma das regiões da Rússia, país com histórico de conflitos com
imigrantes e minorias.
No Bascortostão (comumente chamada Bashkiria), que fica
a cerca de 1.500 km a leste de Moscou, entre o rio Volga e os montes Urais, a
multiculturalidade e as diferentes crenças são motivo de orgulho entre os
residentes.
“Eu sou russo [étnico] e
frequento a Igreja Ortodoxa Russa, mas minha vizinha é muçulmana. Nunca penso
nisso quando falo com ela. Nunca. Eu não entendo quando falam da boa
convivência que temos aqui [na Bashkiria], porque eu não consigo imaginar o
contrário. Não gostar da minha vizinha só por causa da crença pessoal dela?”,
pergunta um taxista da cidade de Ufa (lê-se “ufá”), capital da região.
“E a
comida que eles (muçulmanos) fazem todos os dias à noite, durante o Ramadã, é
uma delícia. Sempre me convidam. Seria burrice perder por qualquer razão”,
brinca o taxista.
A Bashkiria é uma das entidades
federativas russas e, etnicamente, muito heterogênea: 36,1% da população é
formada por russos (étnicos), 29,5%, por bashkirs, 25,4%, por tatars, além de
outras três minorias representativas (chuvash, mari e ucraniana).
Os bashkirs e
tatars são majoritariamente muçulmanos sunitas, denominação que corresponde a
30% da população da região. Já os russos, chuvash e ucranianos se identificam
com a Igreja Ortodoxa Russa, compondo 25,2% da população. Se a confusão entre
etnias e religiões não fosse suficiente, há ainda cristãos, pagãos, tengriistas
e até mesmo uma pequena (porém, cada vez maior) comunidade judaica.
Em todo o país, 41% dos russos se
declaram ortodoxos e 6,5%, muçulmanos. As outras denominações religiosas
consideradas “importantes na história russa” não chegam a 1% de fiéis. Além
disso, 25% se consideram espirituais (sem religião) e 13%, ateus.
“A gente cresce aqui na Bashkiria
com tanta diferença cultural que acabamos não vendo o outro, o diferente como
uma ameaça. Pelas feições e pelas roupas, a gente consegue identificar de que
grupo esta ou aquela pessoa pertence, mas isso não nos colocou em guetos”,
explica o jovem universitário Misha Rybakov.
“A minha namorada é muçulmana e
isso nunca foi um problema para nós. Quando tivermos filhos, eles vão aprender
valores gerais, a ser pessoas boas. A religião, bem, eles vão escolher quando
crescerem”.
O padre ortodoxo Stanislav
Dimitrievich faz eco à boa convivência na região. “Temos no mesmo território o
Islã, o Judaísmo, a Igreja Ortodoxa Russa e outras religiões. A nossa região
serve de exemplo de como as religiões, sem exceção, podem viver lado a lado, em
paz e em harmonia”.
Para o rabino-chefe de Ufa, Dan
Krichevsky, as disputas entre as religiões tanto na Rússia como em outros
lugares, são questões políticas, de propaganda e de dinheiro. “Somos uma mesma
família. Temos mais coisas em comum do que diferenças. O verdadeiro judeu,
cristão, muçulmano, budista... é aquele que acredita que é possível chegar a um
acordo. Onde está escrito que deus quer conflitos?”, questiona o líder da
comunidade judaica da Bashkiria.
Centro judaico
Em 2008, foi inaugurado em Ufa o
maior centro judaico da Rússia, com uma sinagoga, um jardim-de-infância, uma
escola dominical e um museu dedicado às vítimas do holocausto.
A cerimônia de
abertura contou com a presença de lideranças políticas e religiosas, incluindo
o mufti supremo Tajuddin Talgat Safa, presidente da Administração Central Espiritual
dos Muçulmanos da Rússia. Para o rabino-chefe da Rússia, Berl Lazar, “ninguém
poderia imaginar há 20 anos que uma sinagoga tão grande seria construída em
Ufa, predominantemente muçulmana”.
Em entrevista a jornalistas na
capital da Bashkiria, Safa citou a importância de que haja liberdade de culto,
independentemente da religião.
“O nosso país está passando por um reavivamento
religioso e moral. Estão sendo construídas igrejas e mesquitas e as pessoas de
outras religiões também têm que poder construir seus templos”, explicou.
Ele
recebeu a Ordem de Honra e a Ordem de Amizade na Rússia por sua “contribuição
para o fortalecimento da amizade e cooperação entre os povos”. Em 2008, recebeu
a Ordem do Santo Príncipe Danilo Moskovsky, concedido pela Igreja Ortodoxa
Russa “aos que colaboram pela paz e harmonia inter-religiosa”.
Reavivamento da fé ou uso
político da religião?
A aproximação entre o Kremlin e a
Igreja Ortodoxa Russa, orquestrada na última década pelo presidente Vladimir
Putin, parece assentar cada vez mais suas bases em um avanço da religiosidade
popular.
Este reavivamento da religião na Rússia se apresenta fundamentado em
um discurso que associa a identidade russa à religião ortodoxa, em uma clara
guinada conservadora do poder central do país.
Em Setembro deste ano, durante os
encontros para discutir a identidade russa, Putin afirmou que a Rússia não pode
avançar sem uma autodeterminação cultural e nacional. Caso contrário, “o país
não poderá responder aos desafios internos e externos, não terá êxito na
competição global”.
Putin disse que a Rússia deve
evitar o exemplo de países europeus que, segundo ele, estão se afastando das
suas raízes, incluindo os valores cristãos.
“As pessoas de muitos países na
Europa estão envergonhados e têm medo de falar sobre suas convicções
religiosas. Feriados religiosos estão sendo eliminados ou recebendo outro
nome”.
Em 2010, o governo de Moscou
lançou, junto com a Igreja Ortodoxa Russa, o “Programa 200 Templos”, que prevê
a construção de duas centenas de igrejas em todos os bairros da capital da
Rússia, com exceção do centro.
Estima-se que o custo de cada templo seja de
aproximadamente 250 milhões de rublos (R$ 17 milhões). A crescente comunidade
muçulmana em Moscou, que já chega a 2 milhões de pessoas, ganhará apenas uma
nova mesquita.
Apesar da aproximação com a
Igreja Ortodoxa Russa, a Constituição do país diz que “a Federação Russa é um
estado secular (laico)” e “nenhuma religião obrigatória ou de Estado deve ser
estabelecida”.
O documento diz ainda que as “associações religiosas devem estar
separadas do Estado e devem ser iguais perante a lei”. Uma lei de 1997, no
entanto, nomeou o cristianismo, o islamismo, o budismo e o judaísmo como
“importantes na história russa”, e uma lei do mesmo ano coloca o cristianismo
ortodoxo como parte da “herança russa”.
Fonte: http://operamundi.uol.com.br
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