VII Encontro Continental de Teologia Índia: do Estado Neoliberal ao Estado do Bem Viver – Por Paulo Suess
Na construção do "bem viver”, dois eixos são sumamente importantes:
- o "bem viver” para todos,
quer dizer, o combate contra uma sociedade de classes e privilégios, e
- o
"bem viver” para sempre, que é o "bem viver” com memória histórica, o
bem viver não apenas dos sobreviventes e vencedores, mas o bem viver que dá voz
e ouvido aos vencidos.
Portanto, o bem viver tem uma
dimensão que perpassa o tempo, uma dimensão trans-histórica, e uma dimensão
contemporânea e simultânea, que enfoca o aqui e agora do indivíduo e da
sociedade. O bem viver não é construído em Spa nem em estúdio de wellnes, mas num
laboratório no qual se entrelaçam memória histórica, ação política e
gratuidade.
Não reduzimos a felicidade ao
bem-estar material nem separamos o bem estar material do bem-estar espiritual.
Praticamente todas as lutas
sociais representam tentativas de equilibrar felicidade individual e moral
social, ou, como se diz no mundo andino, são buscas de harmonia, de harmonia
sociocultural entre o indivíduo e o coletivo, e harmonia entre os seres humanos
e a natureza da qual são parte integrante.
Essa busca de harmonia se
transformou em lutas políticas. A harmonia não é dada. Ela é uma conquista que
exige vigilância permanente.
Hoje, o capitalismo, essa nova
colonização pelo capital, pela ideologia do desenvolvimento, pelo consumo e
pela competição, procuramos curar as patologias do desequilíbrio que se
manifesta pela acumulação, pelo crescimento desenfreado e pela aceleração.
Procuramos novos conceitos de propriedade e desenvolvimento para construir
novas realidades.
No meio de lutas pela
redistribuição dos bens (terra, água, ar) e pelo reconhecimento do outro
procuramos desvincular o bem-estar do crescimento predatório (agrotóxicos,
expansão sobre a propriedade dos outros, consumo autodestrutivo). Percebemos
que o capitalismo não tem patologias. Ele é a patologia.
1. Desafios ao "bem viver”
hoje
O sistema capitalista é incapaz
de produzir o bem viver de todos os cidadãos. Consumismo e fome são expressões
desse desequilíbrio na distribuição dos bens da terra. Crescimento, expansão e
aceleração se tornaram palavras mágicas, apoiadas por tecnologias cada vez mais
sofisticadas a serviço da substituição de trabalhadores.
No atual projeto, na
aceleração da produção e na acumulação do capital, não se trata apenas de uma
manipulação de objetos mortos. Capital e produção representam relações sociais
mediadas por exploração, alienação e coisificação. A relação utilitarista
"custo-benefício” não é uma mera relação comercial com sua lógica própria.
Nela está embutida uma relação social.
Quem produz mais barato é aquele
que se submete a condições de um trabalho penoso. Consequência desta nova
configuração do trabalho são os mal empregados, os desempregados, os migrantes
em busca de melhores condições de sobrevivência.
O que está em questão é coesão e
solidariedade social interna das sociedades. Essa solidariedade é atropelada
pela concorrência do mercado globalizado que vive da exclusão e não da
integração dos cidadãos. Redistribuição, integração social pelo trabalho e
participação do lucro se tornaram direitos humanos. O poder judiciário está
despreparado para garantir esses direitos.
A exploração irracional atinge
não só operários, indígenas ou migrantes, mas também a nossa irmã natureza. A
devastação de florestas e da biodiversidade, "coloca em perigo a vida de
milhões de pessoas”, em especial a vida dos "camponeses e indígenas, que
são expulsos para as terras improdutivas e para as grandes cidades para viverem
amontoados nos cinturões de miséria” (DAp 473).
O que está em questão é o
"atual modelo econômico, que privilegia o desmedido afã pela riqueza,
acima da vida das pessoas e dos povos” (DAp 473).
O "bem viver” está ameaçado
por uma crise cultural profunda que se manifesta como crise de sentido, como
fundamentalismo político-religioso e como consumismo. A dissolução do sentido
da história humana numa mera história natural e a afirmação da verdade única
como negação do reconhecimento do outro e do pensamento diferente representam
um potencial permanente de guerra e violência, inclusive no interior das
religiões.
Depois de guerras para a
implantação da democracia, hoje essa democracia liberal está numa profunda
crise estrutural pela confusão dos poderes (executivo, legislativo e
judiciário) e pela ética. A democracia liberal não permite a participação
satisfatória do povo, sobretudo dos pobres, dos excluídos e dos povos
indígenas, especialmente quando são minoria.
A justiça em nossos países
tornou-se uma justiça formal, morosa e caríssima, que atua, muitas vezes, longe
dos lugares onde acontecem as injustiças, e não serve aos povos indígenas e
pobres, que desconhecem os trâmites legais e não conseguem pagar advogados
competentes para garantir seus direitos básicos. O aparato policial não traz
segurança à população e as condições inumanas das nossas cadeias fazem delas
verdadeiras escolas do crime.
Acreditamos que outro mundo e
outro Estado são possíveis, porque o atual tripé crescimento econômico,
segurança social e democracia política não oferecem perspectivas do bem viver
universal. Não entramos no jogo de alternativas perversas: democracia com fome
e miséria, ou bem-estar material sem participação, sem liberdade política e sem
horizonte de sentido, ou prosperidade econômica do país com ditadura e fome.
A construção do Estado do bem
viver é uma construção cultural (não natural). Construir o bem viver, é
contracultural. Essa construção significa:
- descolonizar as instituições
políticas,
- desmercantilizar os saberes, a fé, a escola, saúde,
- desprivatizar o que deve ser de domínio público,
- frear a patologia da aceleração: somos o freio de emergência.
- desmercantilizar os saberes, a fé, a escola, saúde,
- desprivatizar o que deve ser de domínio público,
- frear a patologia da aceleração: somos o freio de emergência.
2. Construção do "bem viver”
como crítica, ascese e solidariedade
Enquanto nossos países estão
competindo com os países com economias fortes, nas discussões constitucionais
da Bolívia e do Equador irrompeu uma proposta que procura superar as políticas
subordinadas aos projetos de hegemonia competitiva. Essa proposta, de origem
kechwa, se articula em torno de um novo paradigma do "bem viver”, em
kechwa, "sumak kawsay”.
O "sumak kawsay” é uma
utopia política não muito distante da utopia do Reino. Ambos são precedidos ou
representam um pachakuti, uma reviravolta social. O pachakuti restabelece o
equilíbrio perdido e abre o caminho para "viver em plenitude”.
Como cristãos podemos compreender
o bem viver como vida em plenitude e como sabedoria do reino, sem privilégios,
sem prestígio. O bem viver no horizonte da solidariedade não é para nós, é para
os outros: "A outros Ele ajudou, para si mesmo não sabe fazer nada”.
Lutamos como servos para que ninguém precise ser servo.
O nosso bem viver é resultado do
bem viver do outro, e não como compensação transcendental, mas no aqui e agora.
Os respingos da felicidade do outro podem iluminar nossa vida, como as dores do
outro nos mantém no caminho e na luta.
O contexto político-cultural de
hoje dificulta assumir publicamente o conflito social como motor para a
construção do bem viver. Quem fala em luta de classe parece não ter
compreendido as mudanças de época. Mas um novo modelo de sociedade e
desenvolvimento não vai emergir gratuitamente. Por causa dos pobres somos
obrigados de nos fazer presentes nessas lutas, evangelicamente responsáveis e
socialmente relevantes.
Através de pequenas compensações
e através de uma legalidade formal, o capital conseguiu impor um contentamento
superficial. Lideranças dos movimentos sociais foram cooptados por cestas
básicas de comida e medidas de mitigação que representam o prato enfeitado
daquele que é levado à forca.
A "ação afirmativa”
substituiu a "ação crítica”. Num contexto de alienação generalizada e de
silêncios comprados, temos a tarefa de "desafinar o coro dos contentes”
(Torquato Neto) e desgovernar a nau dos adaptados que se contentam com o pouco
que o gozo regressivo à fase oral e anal oferece de maneira destrutiva via
consumo e acumulação. O bem viver para todos e sempre significa puxar o freio
de emergência do projeto acelerado e desgovernado em curso e propor outro
projeto civilizatório.
A vida dos cristãos é atravessada
pela cruz que assumimos por causa do bem viver dos outros e pela gratuidade.
Anunciamos o Reino de Deus como libertação da servidão. A radicalidade da
encarnação (e inculturação) tem o nome de solidariedade (cf. Gaudium et spes,
32).
Solidariedade, hoje, significa
despojamento e ascese. Ascese para nós é libertação do supérfluo, para que
todos possam ter o necessário para o bem viver. A ascese é o protesto contra
nossa humilhação como consumidores. O bom é o inimigo do melhor e do mais.
Precisamos aprender a viver melhor com menos.
No horizonte evangélico de uma
igualdade radical não existe lugar para a apropriação privada da vida boa, nem
da fé, da esperança e do amor. A fé nos foi dada por causa dos desacreditados.
A esperança nos foi dada por causa dos desesperados. O amor nos foi dado por
causa dos desprezados. Tudo que recebemos pertence aos necessitados.
Vida boa para todos e para
sempre! A dimensão da cruz é a dimensão da ruptura. Ela nos coloca no meio dos
grandes conflitos. Nosso equilíbrio está na articulação entre luta e
contemplação. O bem viver, no horizonte de todos e para sempre, existe somente
no horizonte da ressurreição, que é justiça definitiva para todos e insurreição
contra o absurdo histórico!
Fonte: http://site.adital.com.br
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