Ateu em Wall Street, crente entre os últimos – Por Andrea Galli
Os média amplificaram a voz
daqueles que nos Estados Unidos levaram a mal os excertos da exortação "A
alegria do Evangelho" em que o papa critica a teoria da “recaída favorável”,
pela qual “todo o crescimento económico, favorecido pelo livre mercado,
consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo”, e na
qual denuncia a “cultura do bem-estar” que nos anestesia, que nos torna
incapazes de experimentar a compaixão diante do grito de dor dos outros. Mas há
quem, vindo do coração do capitalismo, Wall Street, tenha encontrado estas e
outras palavras de Bergoglio acertadíssimas.
Chris Arnade, depois de um
doutoramento em física na Universidade John Hopkins, trabalhou durante 20 anos
como comprador e vendedor de aplicações financeiras para a Salomon Brothers, a
banca de investimento que mais tarde foi integrada no colosso Citigroup. Em
2012 decidiu deixar o mundo da finança, uma carreira com salários de seis
algarismos, exaurido a nível existencial e cansado de um mundo que deixou de
sentir como seu.
Permaneceu em Nova Iorque, mas mudou de atividade,
dedicando-se à fotografia. E em Manhattan voltou às atenções para Hunts Point,
no bairro do Bronx, um dos cantos mais degradados da América, onde mais de
metade dos 50 mil habitantes vive abaixo do nível de pobreza, onde a taxa de
criminalidade é a mais elevada de toda a região de Nova Iorque, e onde a
heroína e o crack são omnipresentes, entre tráfico e toxicodependência.
Arnade começou a documentar este
mundo de rejeitados, de vidas à margem da sociedade, e começou a contar num
jornal do outro lado do Atlântico, o "Guardian", aquilo que estava a
aprender dia após dia. A 11 de dezembro comentou a escolha feita pela revista
"Time" de nomear Bergoglio homem do ano e apresentou "A alegria
do Evangelho" como uma leitura imprescindível para católicos e não
católicos. A peça comparava as denúncias feitas por outra personagem do ano,
Edward Snowden, com o papel idêntico desempenhado pelo papa em relação aos
pobres.
“Quando eu trabalhava em Wall
Street nos anos 90, viajei a negócios para o país natal do papa Francisco, a
Argentina. Eu era um dos muitos estrangeiros que lhes dizia como precisavam de
profundas reformas no país, abrindo-o ao mercado livres. E eles abraçaram o
mercado livro. Isso resultou bem até deixar de funcionar, terminando num enorme
"crash" em 2001. As taxas de pobreza subiram durante esse período”,
escreveu nesse artigo.
“Nós, os banqueiros, andávamos de
táxi, passando ao largo das barracas que circundavam o centro de Buenos Aires.
Nenhum banqueiro lá punha os pés. Dizia-se que era demasiado perigoso. Em vez
disso, mexíamo-nos entre os números das folhas de cálculo, números que
representavam pessoas. O papa Francisco ia realmente às barracas. Regularmente.
Viu aquilo que nós não vimos. Como escreveu na sua exortação apostólica: os
seres humanos são considerados bens de consumo para serem usados e depois
descartados.”
“A vitória do mercado livre,
continuava o texto, tornou a "empatia" um palavrão. É-o seguramente
em Wall Street. Não se consegue fazer dinheiro se começarmos a perguntar como é
que ele é feito, quem é ferido e quem fica para trás”.
Mas as maiores atenções
voltaram-se para o artigo que Arnade assinou na véspera de Natal, que até hoje
recolheu mais de 2300 comentários de leitores: “As pessoas que mais desafiaram
o meu ateísmo foram drogados e prostitutas”.
Definindo-se ateu desde os 16
anos, desde sempre admirador da prosa cáustica de Richard Dawkins, Arnade
reconsiderou a sua posição, impelido pela fé que encontrou entre os "left
behind", os últimos. Aqueles que na sua perspetiva deveriam ser os mais
convictos defensores da não existência de Deus, dado o inferno em que se
encontravam. E no entanto...
“Sarah, 15 anos passados na rua,
traz sempre uma cruz ao pescoço. Sempre. Michael, 30 anos nas ruas, traz um
terço no bolso. Sempre. E em cada casa de consumidores de crack, no prédio mais
abjeto e desolado, pode encontrar-se uma Bíblia aberta entre seringas,
isqueiros e cachimbos de crack”.
Takeesha, uma infância de abusos
e uma vida que acabou no mercado do sexo, pediu ao seu entrevistador para ser
apresentada assim: “Prostituta, mãe de seis filhos e filha de Deus”. Escreve
Arnade: “Somos todos pecadores. Nas ruas os viciados, os últimos, com as suas
batalhas e a proximidade com a morte diárias, compreenderam-no visceralmente.
Muitas pessoas de sucesso não. O seu sentido de si e a sua frieza emotiva
anestesiaram a perceção da sua falibilidade”.
Muito depressa o ateísmo passa a
ser visto pelo ex-agente de Wall Street como uma posição intelectual acessível
principalmente àqueles que tiveram sucesso na vida. Disse adeus ao
"seu" Richard Dawkins, que olha agora com outra perspectiva:
“Orgulhoso
da sua inteligência, incapaz de compreender porque é que alguém acreditaria ou
pensaria de maneira diferente da dele”, “distante da humanidade e da
ambiguidade da vida”. “Vejo alguém que faz o que diz odiar nos outros. Pregando
a partir de uma posição de vantagem egoísta”.
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