A família entre utopia e realidade: uma reflexão teológica - Por Leonardo Boff
Antes de abordarmos, sucintamente, a questão complexa da família (1), faz-se mister conscientizar
uma verificação sem a qual toda nossa reflexão se apresentaria viciada ou
condenada ao irrealismo.
É o fato de que a família, mais que qualquer outra
realidade, participa da ambiguidade inerente à condição humana que nos faz
simultaneamente dementes e sapientes, sim-bólicos e dia-bólicos, numa
palavra, nos revela a coexistência da luz e da sombre e de intrincadas de
contradições que existem em cada um de nós.
Por isso, por um lado, a família
encerra altíssimos valores e, por outro, contem deformações
lamentáveis. Dai viver em permanente crise, com chances de acrisolamento (donde
vem a palavra crise) e de crescimento ou também com riscos de decadência e de
deterioramento de sua situação.
1. Família: utopia e
realidade
Não obstante esse dado primeiro,
não desaparece em nós dimensão utópica, vale dizer, aquele horizonte
de sentido que nos chama sempre a melhorar e a não nos resignar à realidade
dada. Recusamo-nos aceitar passivamente a situação decadente. Queremos
superá-la. Não secundamos um pragmatismo preguiçoso, sem sonhos e destituído de
vontade de aperfeiçoamento, que simplesmente administra a crise, tirando
vantagens onde pode, mas sem um projeto de criação de novos modelos de
convivência. Infelizmente, esta é a tendência dominante, particularmente, no
quadro da pós-modernidade para a qual qualquer coisa vale (anything goes) ou só
vale o que está na moda.
Entretanto, uma pessoa ou uma
sociedade que já não sonha e que não se orienta por utopias, escolheu o
caminhou de sua decadência e de seu desaparecimento. Sem utopia não se alimenta
a esperança. Sem esperança não há mais razões para viver e o desfecho fatal é a
auto-destruição. Por isso é de fundamental importância a dimensão utópica em
tudo o que empreendemos, também com referência à família, mesmo com a
consciência de que jamais alcançaremos a utopia. Não obstante isso, esta
desempenha função insubstituível, pois a ela relativiza as
realizações históricas concretas e mantém o processo sempre aberto a novas
incorporações. Numa palavra, a utopia nos fazer andar. Jamais alcançaremos as
estrelas. Mas que seriam nossas noites sem elas? São elas que espantam os
fantasmas da escuridão e nos enchem de reverência face à “grandeur” e à
majestade de um céu estrelado. Porque temos estrelas, não tememos a
escuridão.
Precisamos, portanto, de uma
utopia para a família, para que continue humana, lugar de realização a dois no
amor e na confiança, digna de procriar novas vidas para esse mundo e para Deus.
Quando confrontamos, entretanto,
a família humana com a Família divina que é a SS. Trindade, o Pai, o Filho e o
Espírito Santo e a sagrada família de Nazaré, de Jesus, Maria e José, estas
contradições que referimos saltam aos olhos. O risco é a produção de um
discurso paralelo: exaltar, por um lado, as excelências da Família divina e da
sagrada Família de Nazaré e apontar e, por outro, as mazelas da família humana,
sem um real confronto entre elas.
Outro risco, mais frequente na
produção escrita e falada dos cristãos é apresentar, por cima das cabeças, a
utopia cristã da família, sem tomar a sério os desafios que vêm da família
atual, sob a pressão violenta de transformações de toda ordem que ocorrem na
sociedade, nas formas dos relacionamentos humanos e de coabitação entre pessoas
que querem viver juntas. O discurso cristão, então, soa irrealista, sem
responder às demandas reais dos cristãos.
Nossa reflexão procura
manter a dialética entre o utópico e o real contraditório. Partiremos dos
desafios do real para, então, confrontá-lo com utópico. Desta forma,
esperamos fazer justiça às duas dimensões e estaremos em condição de
criar espaço para inspirações que incentivam a criatividade face à
realidade histórico-social que nos toca sofrer e viver.
2. A família e as
transformações histórico-sociais
A família padece pesadamente
das influências da cultura dominante, hoje mundializada. Esta se caracteriza
por processos sociais que colocam a economia como eixo estruturador de tudo.
Esta economia e seu maior instrumento, o mercado, se regem por uma feroz
competição deixando totalmente à margem a cooperação e os valores da
solidariedade, fundamentais para a vida humana e para a família. Ela trouxe
inegáveis benefícios para a condição humana, especialmente as comodidades da
vida cotidiana, a medicina, os transportes, a comunicação e tantas outras mas
também a agravou porque está mais interessada em oferecer bens materiais do que
qualquer outra coisa. Os valores não materiais, ligados à gratuidade, ao amor,
à solidariedade, à fraternidade, à troca e à espiritualidade ocupam um lugar
irrelevante quando não são feitos também mercadorias, colocadas na banca do
mercado e exploradas por conhecidos pregadores televisivos ou por todo um mercado
de literatura de auto-ajuda que mais ilude que ilumina.
Ora, destes valores altamente
positivos vive fundamentalmente a família. Lamentavelmente constatamos que nossa
cultura não oferece as condições concretas e adequadas para a família viver com
normalidade tais valores e alimentar seu sonho. Antes, destrói, para a grande
maioria das famílias, a infra-estrutura que lhes permite subsistir, viver o
amor e exercer o cuidado para com os filhos/filhas. Isso porque a riqueza é
pessimamente distribuída. Esta injustiça social globalizada dá origem a milhões
e milhões de famílias empobrecidas, marginalizadas e excluídas. Separações e
divórcios campeiam de forma assustadora. As maiores vítimas são as crianças a
quem se negam as condições fundamentais que ocorrem nos três primeiros anos, de
elaborar, em contato com a mãe e em seguida com o pai, as disposições básicas
que vão orientar toda a vida: o sentimento de pertença, a percepção de cuidado,
de proteção, o sentido dos limites e da partilha, valores fundamentais que
orientam todo o percurso da vida.
Como se depreende, nosso tipo de
organização social não prima pelo cultivo de valores nem se submete a critérios
éticos coletivos que ultrapassam interesses individuais. A dimensão espiritual
é privatizada ou se apresenta extremamente anêmica. Tal atmosfera não propicia
ambiente favorável a uma família bem integrada e sadia nem lhe subministra
motivações para resistir aos apelos da erotização generalizada dos meios de
comunicação inclusive os chats eróticos e de namoros virtuais via internet, que
tanto debilitam os laços da fidelidade e do afeto conjugal, nem lhe oferece
auxílios em momentos de crise.
A este cenário familiar dramático
somam-se ainda as profundas transformações sociais e tecnológicas que
afetam pesadamente o estatuto da família como a precarização do trabalho,
os horários e as longas horas de transporte. As formas tradicionais
de família estão ameaçadas de desaparecimento.
A família clássica patricentrada que
distribuía os papéis consoante o gênero, privilegiando o pai e o esposo está
cedendo lugar à família participativa, onde marido e mulher assumem todas
as tarefas num sentido cooperativo, aspecto esse que deve ser
positivamente valorizado.
O que está se impondo hoje
por causa da urbanização acelerada do mundo é a família nuclear: pai/mãe e
filhos/filhas. Este tipo de família por força do regime de trabalho do casal
(ambos trabalham fora), terceiriza funções que antes eram próprias da família:
o cuidado do bebê por uma babá ou empregada e depois pela creche, a arrumação
da casa, a preparação da comida, o cuidado pelos idosos e doentes. Tudo isso é
feito por pessoas pagas para realizarem estas tarefas. Ao casal restam as
relações intersubjetivas do afeto, da convivência e do companheirismo.
A família ampliada que
engloba a todos do mesmo laço de sangue, tende, especialmente nas metrópoles, a
se diluir. A grande família que encerrava a
todos os que viviam sob o mesmo teto, familiares, parentes, inquilinos e
empregados ficou reservada, praticamente, a alguns grandes latifundiários de
terras que vivem relações arcaicas.
A família dos ancestrais se
restringiu às famílias de notáveis, por algum título nobiliárquico ou outro
qualquer. Elas ainda cultivam tradições e memórias
genealógicas, mas geralmente o fazem num sentido socialmente conservador e
elitista. Não determinam mais o sentido da família original.
3. Desafios das novas formas de
coabitação
Ao lado das famílias-matrimônio que
se constituem no marco jurídico-social e sacramental, mais e mais surgem as famílias-parceria (coabitação
e uniões-livres) que se formam consensualmente fora do marco institucional e
perduram enquanto houver a parceria, dando origem à família consensual não
conjugal.
A introdução do divórcio dá lugar
a famílias unipessoais (a mãe ou o pai com os filhos/filhas)
ou multiparentais (com filhos/filhas provenientes de
matrimônios anteriores) com conhecidos problemas de relacionamento entre pais e
filhos/filhas. Por fim, crescem no mundo todo as uniões entre homoafetivos (homens
e mulheres) que lutam pela constituição de um quadro jurídico que lhes garanta
estabilidade e reconhecimento social.
Não queremos emitir um juízo
ético sobre estas formas de coabitação. Precisamos antes entender o fenômeno.
Concretamente: como conceituar a família face às várias formas como ela está se
estruturando?
Um especialista brasileiro, Marco
Antônio Fetter, o primeiro entre nós a criar a Universidade da Família com
todos os graus acadêmicos, assim define:”a família é um conjunto de pessoas
com objetivos comuns e com laços e vínculos afetivos fortes, cada uma delas com
papel definido, onde naturalmente aparecem os papéis de pai, de mãe, de filhos
e de irmãos”(2).
Transformação maior, entretanto,
ocorreu na família com a introdução de preservativos e de anticoncepcionais,
hoje incorporados à cultura como algo normal, fazendo com que o discurso
contrário da Igreja hierárquica católica pareça a alguns críticos,
extemporâneo, e no caso da AIDS, até demasiadamente rigorista. Os próprios
cristãos, de resto fervorosos e determinados a acolher as prescrições oficiais,
têm dificuldades de assumi-los. Acresce ainda que com os preservativos e a
pílula, a sexualidade ficou separada da procriação e do amor estável.
Mais e mais a sexualidade bem
como o matrimônio são vistos como chance de realização pessoal, incluindo ou
não a procriação. A sexualidade conjugal ganha mais intimidade e
espontaneidade, pois, pelos meios contraceptivos e pelo planejamento familiar
fica liberada do imprevisto de uma gravidez não desejada. Os filhos/filhas deixam
de ser consequência fatal de uma relação sexual mas são queridos e
decididos de comum acordo. Esta perspectiva é libertadora não obstante o risco
do individualismo e do fechamento da família sobre si mesma.
A ênfase na sexualidade como
realização pessoal propiciou o surgimento de formas de coabitação que não são o
matrimônio. Expressão disso são as uniões consensuais e livres sem
outro compromisso que a mútua realização dos parceiros ou a coabitação de
homoafetivos, homens e mulheres.
Tais práticas, por novas que
sejam, devem incluir também uma perspectiva ética e espiritual. Importa zelar
para que sejam expressão de amor e de mútua confiança. Se houver amor, para uma
leitura cristã do fenômeno, ocorre algo que tem a ver com Deus, pois Deus é
amor (1Jo 4,12.16). Então, não cabem preconceitos e discriminações. Antes,
cumpre ter respeito e abertura para entender tais fatos e colocá-los
também diante de Deus, como insinuou o Papa Francisco em sua curta entrevista
no avião regressando da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Se o
casal homoafetivo vive um compromisso e assumir a relação com
responsabilidade não se lhe pode negar relevância religiosa e espiritual.
Cria-se uma atmosfera que ajuda superar a tentação da promiscuidade e
reforça-se a fidelidade e a estabilidade que são bens de toda relação entre
pessoas, seja por via do matrimônio ou de outra forma de coabitação. Então,
antes de moralizar, procurar compreender.
Se há sexo sem procriação, pode
haver procriação sem sexo. Trata-se do complexo problema da procriação in
vitro, da inseminação artificial e do “útero de aluguel”. Toda esta questão é
extremamente polêmica em termos éticos e espirituais e não parece que se tenha
chegado a um consenso seja na sociedade seja nos pronunciamento das Igrejas.
Geralmente a posição oficial
católica, expressa, por exemplo, na encíclica de João Paulo II,Evangelium Vitae tende
a uma visão naturista, exigindo para a procriação a relação sexual direta dos
esposos, quando, é razoável se admitir a legitimidade da união de um óvulo da
esposa com um espermatozoide do marido de forma artificial e depois implantar óvulo fecundado no útero, desde que tal procedimento seja imbuído de amor e de
adesão à vida.
Para encurtarmos a reflexão sobre
esta questão tão complexa que não cabe aqui ser tratada, valemo-nos da opinião
de um especialista holandês católico:
“A tecnificação da procriação
humana não é sem problemas. A inseminação artificial em suas diferentes formas,
a fecundação in vitro e o transplante de embriões, todas estas
possibilidades técnicas nos permitem, por um lado, tratar o espermatozoide e o
óvulo como ‘material biológico’, e com eles fazer procedimentos técnicos e
tomá-los como objeto de pesquisas científicas, e, por outro, realizar uma
gravidez fora dos quadros seguros do casamento tradicional. Assim é possível
que uma mulher engravide por inseminação artificial com esperma de um doador
anônimo; pode-se reunir in vitro espermatozoides e óvulos e
implantá-los depois em uma mulher qualquer; pode-se ter um filho por meio de
uma ‘mãe de aluguel’. Estes meios técnicos não estão, de forma neutra, à nossa
disposição enquanto capacidade puramente instrumental”(3). Exigem um
discernimento ético e a criação de uma ambiência de amor, de mútuo apoio e de
calorosa acolhida da vida que vem.
Numa palavra: eles devem
permanecer como instrumentos a serviço do amor, da ajuda a esposos com problemas
e sempre no respeito à sacralidade da vida.
Não basta a procriação
artificial. O ser humano tem direito de nascer humanamente, de um pai e de uma
mãe que em seu amor o desejaram. Se por qualquer problema, recorre-se a uma
intervenção técnica, nunca pode-se perder a ambiência humana e o correto
propósito ético.
O filho/filha que daí procede
deve poder ter nome e sobrenome e ser recebido socialmente. A identidade
social, nestes casos, é mais importante, antropologicamente, que a identidade
biológica, como no caso de Jesus em sua relação com José. Este dando-lhe um
nome e inserindo-o em sua descendência davídica, garantiu a Jesus identidade
social. Ademais, é importante que a criança seja inserida num ambiente familiar
para que, em seu processo de individuação, possa realizar o complexo de Electra
em relação à mãe ou o de Édipo em relação ao pai, de forma bem sucedida. Desta
forma se evitam danos irreparáveis pelo resto da vida.
O que se deve, entretanto,
impedir é que a procriação humana seja entregue à instituições
tecnológicas com seus especialistas que manipulam “material genético” pois
seria a inauguração do terrificante “Admirável Mundo Novo”(1932) de Aldous
Huxley, violando a sacralidade da vida e dispensando o que há de mais excelso e
divino no ser humano que é sua capacidade de amar e pelo amor conjugal
transmitir a vida, a maior criação da complexidade do universo e o supremo dom
de Deus.
4. A Sagrada família e a
família moderna
Depois desta agenda de problemas,
alguém, seguramente, poderia perguntar: que tem a ver o arquétipo cristão de
família que é representada pela família de Nazaré de Jesus, Maria e José, com a
atual e contraditória família humana? Como ela nos pode iluminar e
inspirar?
Antes de qualquer resposta
possível, cumpre reconhecer a radical diferença de situações e de modelos de
família. Não há apenas uma distância temporal de mais de dois mil
anos, mas também uma distância cultural considerável. A família de Nazaré vivia
a cultura agrária e das pequenas vilas, ligada diretamente à relações
primárias. Nós viemos da cultura tecno-científica cheia de aparatos que nos
criam um mundo de segunda mão. Neste nível, Nazaré não nos poderá dizer, diretamente, nada. Habitamos em mundos diferentes.
Mas isso não é tudo o que se pode
dizer. Ela, ao contrário, nos tem muito a dizer. Mas o que nos tem a dizer, se
situa num outro nível e pode interessar a todos. Tanto lá como aqui, estamos às voltas com pessoas humanas que amam, que se angustiam, que tem
perplexidades, que buscam sentido, que trabalham, que cuidam, seguem as
tradições de seu povo e que são tementes de Deus. Todas
estas pessoas são habitadas por sonhos, valores e propósitos de felicidade e
paz. E também acometidas de angústias e medos como, segundo os evangelistas,
por ocasião da fuga da família de Nazaré para o Egito porque Herodes ameaçava
de morte o filho recém nascido.
Toda família ou toda forma de
coabitação e convivência entre humanos, seja de gêneros distintos ou do mesmo
gênero, por mais diferentes que sejam suas modalidades históricas,
vivem, não de técnicas nem de arranjos, mas da vontade de encontrar e viver
o amor, sonham em inserir-se bem na comunidade (era o que
significava “ser justo”, aplicado a José) e ser minimamente felizes. O núcleo
imutável da família é o afeto, o cuidado de um para com o outro e a vontade de
estar junto, também abertos à procriação de novas vidas. Este é o
lado permanente, dentro do lado cultural cambiante.
Se assim é, então, não
devemos, em primeiro lugar, considerar o caráter institucional da
família (a perspectiva dominante nos documentos eclesiásticos e nas reflexões
dos teólogos) mas seu caráter relacional. Importa ver o complexo jogo de
relações que se realiza entre os parceiros. Nestas relações é que está a vida,
funcionam os sonhos e as utopias de amor, fidelidade, encontro e felicidade,
numa palavra, aparece o lado permanente. O lado institucional é socialmente
legítimo, mas não é originário, ele é derivado, histórico e cambiente conforme
as diferentes tradições. Por isso pode assumir as mais diversas formas. Nele a
vida já vem enquadrada e normas presidem as relações. Mas tais
delimitações somente perduram com sentido quando são alimentadas pelo húmus do
sonho, do afeto terno e pela intercomunhão.
Aceitas estas premissas, o que
nos tem a dizer a família de Nazaré? Exatamente esse lado de relação, de amor,
de cuidado, de piedade e de fidelidade a três: entre Jesus, Maria e José. Eles
se transformaram em arquétipos cristãos que, num nível profundo e coletivo,
continuam a alimentar o imaginário dos fiéis e a suscitar valores que dão
sentido e trazem felicidade à família. É aquilo que chamamos modernamente de capital
social familiar.
Estudos transculturais revelaram
que a quantidade e a qualidade de tempo em que os membros da família passam
juntos vivendo relações de afeto e de pertença são determinantes para os
comportamentos individuais e para as opções sociais que serão tomadas. Se o
capital social familiar se apresenta alto e sadio dá origem a uma maior
confiança no próximo, há menos violência e corrupção. Em consequência, há mais
participação nas associações, nos movimentos sociais e no voluntariado. Os
conflitos familiares e o número de divórcios caem surpreendentemente. Quando o
capital social familiar vai se diluindo, lentamente emergem situações críticas
com desfechos muitas vezes dramáticos senão trágicos.
Podemos imaginar que o capital
social familiar de Jesus, Maria e José era altíssimo. Logicamente, sabemos
pouco do dia-a-dia da sagrada Família. A pesquisa histórica e exegética
levantou os dados sócio-históricos mais seguros especialmente nos últimos anos
com os métodos refinados da arqueologia e da antropologia da vida cotidiana
(cf. J. A. Pagola e J. H. Crossan entre outros). Mas Independente desta
pesquisa, ao analisarmos o José da história, que de profissão era artesão e camponês mediterrâneo, depois esposo, pai, educador e “homem justo” veremos que
ele é representante legítimo da família normal judaica, piedosa, ordeira e
trabalhadora.
Eu diria até que José inaugurou
uma forma de coabitação absolutamente nova e até escandalosa para a época: casa
com uma mulher grávida (Mt 1,18; Lc 1,27) que, depois é informado, ser grávida
pelo Espírito Santo (Mt 1,20; Lc 1,35). Tem a coragem de levá-la para sua casa
(Mt 1,24), quem sabe, tendo que enfrentar os comentários dos vizinhos e as
suspeitas dos parentes, como insinuam com razão os evangelhos apócrifos
Não precisamos detalhar os
valores que esta família teve que viver, como já referimos, ao fugir
do sanguinário Herodes, no desconforto do exílio, com a perplexidade face ao
menino que já desperta com consciência própria no Templo em Jerusalém e, que por
fim, segue seu próprio caminho, sem que Maria e os demais parentes o entendam
completamente (cf. Mc 3,23 quando querem pegar Jesus porque acham que ficou
louco).
Ora, estes valores foram vividos
outrora e são vividos do mesmo jeito, hoje em dia, por tantas famílias, por
parceiros de vida ou por outros que optaram viver juntos com coragem, com
fidelidade, com responsabilidade e, não raro, com uma dimensão religiosa e
espiritual.
A questão é superarmos certo
moralismo que não ajuda a ninguém, prejulga as várias formas de família ou de
coabitação e que nos faz perder os valores que podem estar ai presentes,
vividos com sinceridade pelas pessoas. Na verdade, são tais realidades que
contam numa perspectiva ética e valem diante de Deus.
O valor maior da doutrina da
Igreja sobre a família reside exatamente nisso: recordar sempre de
novo os valores perenes e trazer à consideração dos cristãos e às demais
pessoas de boa vontade a perspectiva utópica da família. Infelizmente nem
sempre a Igreja é compreendida, porque ela mesma não sabe esclarecer
o gênero literário da utopia e do mundo dos valores. Utiliza
demasiadamente o rigor da doutrina e menos a compreensão cordial, ”a revolução
da ternura” e a misericórdia, tão enfatizadas pelo Papa Francisco.
Seja como for, são inconsistentes
as críticas mais frequentes de que, via de regra, trata-se de uma doutrina
abstrata e irrealista. Se entendermos a função da utopia e de sua linguagem,
como esclarecemos acima, estamos em condições de valorizar positivamente a
função da doutrina eclesiástica, como poderoso reforço do capital social familiar.
Partindo das realidades que os
documentos dos Papas não desconhecem, o ensino a Igreja bebe sua inspiração
deste fundo utópico da sagrada Família de Jesus, Maria e José. A partir
dela, se alimenta uma visão altamente humana e esperançadora da vida
em família.
Não obstante todas as
contradições reais, desta iluminação podem surgir possíveis alternativas e
novos caminhos ao lado e junto a outras instâncias que na sociedade também se
empenham por resgatar a família e dar-lhe a centralidade que possui para a vida
em todas as suas etapas de realização.
Assim o faz, por exemplo, João
Paulo II. na Carta Apostólica Familiaris Consortio (1981) e na Carta
às Famílias (1994). Em ambos os documentos, enfaticamente se afirma que a
família é uma comunidade de pessoas, fundada sobre o amor e animada pelo amor,
cuja origem e meta é o divino Nós(4).
Na Familiaris Consortio predomina,
curiosamente, a dimensão de relação sobre a dimensão de instituição. Define-se
a família “por um complexo de relações interpessoais, relação conjugal,
paternidade-maternidade, filiação, fraternidade, mediante as quais cada pessoa
humana é introduzida na família humana”(5)
São estas relações interpessoais
que fazem dela uma comunidade de pessoas: ”A família, fundada e vivificada pelo
amor, é uma comunidade de pessoas: dos conjugues, dos pais e dos filhos, dos
parentes”(6). A comunhão caracteriza a família: “A lei do amor conjugal é
comunhão e participação, não a dominação”(7), valores que fazem da família,
como bem o diz o Catecismo da Igreja Católica “um símbolo e imagem da
comunidade do Pai e do Filho no Espírito Santo”(8), a “Igreja
doméstica”(9).
Que seria da família e dos
parceiros se não ardesse neles a utopia? Não é próprio do amor e das relações
intersubjetivas de afeto e de cuidado, a linguagem do sonho e da
exaltação? Não se chamam com frequência os esposos de “meu bem”, “meu amor”?
Sem esse motor que continuamente anima a caminhada, sem esse nicho de sentido,
ninguém suportaria as dificuldades inerentes a toda relação intersubjetiva, nem
as limitações da condição humana decadente e lábil. O capital social familiar
iria desaparecendo.
São estes valores que abrem a
família para além dela. O sonho mesmo é que a partir dos valores da família, em
suas diferentes formas, surja a família-escola, a família-empresa, a
família-comunidade, a família-nação e a família-humanidade, para se chegar
enfim, à família-Terra, trampolim derradeiro para a família-Deus-Trindade.
Portanto, os valores e
inspirações que deram vida à família de Nazaré, continuam a sustentar as
relações conjugais, as parcerias humanas e todos os que celebram o sentido da
vida na relação de amor e de intimidade. O Deus-Trindade que penetrou
tão profundamente na condição familiar pela trindade de Nazaré, a ponto de ai
se personificar, continua assistindo os seres humanos em suas buscas. As formas
e os caminhos podem variar, não varia, entretanto, o amor e a comunhão que
movem os corações humanos na direção de um ao outro e na direção do grande
Outro que é Trindade de Pessoas, intercambiando eternamente vida, amor e
comunhão.
Estas esparsas reflexões querem
animar a discussão sobre o tema da família, proposto pelo Papa Francisco para
ser examinado por todo o povo de Deus, em todas as dioceses, paróquias e grupos
de base. Desta discussão tão vasta e diversificada nascerão, seguramente, perspectivas novas que nos ajudarão a entender a família que sempre existiu e
as novas formas de coabitação surgidas nos últimos tempos.
Notas
1) A bibliografia sobre a família
e o matrimônio é infindável. Como não pretendemos erudição sobre o assunto veja
os seguintes estudos a título de orientação: os dois números da revista
internacional Concilium, o nº 55 de 1970 e o nº 260 de 1995; Bach,
J. M., O futuro da família: tendências e perspectivas, Vozes, Petrópolis 1983;
Id., Evolução do amor conjugal, Vozes, Petrópolis 1980; Schillebeeckx, E., O
matrimônio- realidade terrestre e mistério de salvação, Vozes, Petrópolis 1969;
Vidal, M., Moral do matrimônio, Vozes, Petrópolis 1982; um casal de leigos
cristãos, Esther Brito Moreira de Azevedo e Luiz Marcello Moreira de Azevedo,
Matrimônio – para que serve este sacramento? Vozes, Petrópolis 1997; CNBB,
Casamento e família no mundo de hoje – textos seletos do magistério eclesial,
Vozes, Petrópolis 1994; Boff, L., O sacramento do matrimônio: símbolo do amor
de Deus para com os homens no mundo presente, em O Destino do homem e do mundo,
Vozes, Petrópolis 2002(10ª edição)pp. 137- 156; Id. São José, a personificação
do Pai, Vozes, Petrópolis 2012.
2) Veja Família: os desafios de
uma instituição em crise, em Correio Riograndensede 29 de outubro de 2003,
p.11. Diz ainda Fetter: ”Existem famílias idiossincráticas que, antigamente,
seriam consideradas absurdas: uma família formada por duas lésbicas, uma tem
um filho de um rapaz, outra tem o filho de outro, e elas formam uma família
muito organizada – uma funciona com o papel fálico e outra, mais como mãe….um
grupo de irmãos pode constituir uma família, desde que um deles assuma o papel
de pai, outro de mãe, enfim, que estejam presentes os três subsistemas básicos
que normalmente formam uma família: o conjugal, o filial e o fraternal. Onde
existem os papéis para esses subsistemas, posso afirmar que há uma família”
op.cit. p. 11. Para quem se interessar pela Universidade da Família veja o site
na internet: http://www.unifam.com.br e
o e-mail:mafetter@terra.com.br
3) Houdijk, R., Formas de
coabitação e procriação fora do matrimônio, em A família, revista internacional Concilium nº
260 (1995) pp. 30-38 aqui p.36.
4) Veja o Catecismo da
Igreja Católica, Vozes, Petrópolis 1993 que nos números 1655-1658 e 2201-2233
sistematiza a posição oficial da Igreja.
5) Familiaris Consortio, nº
15.
6) Ibid. nº18
7) Cf. Documento de Puebla dos
bispos latinoamericanos, 1979, nº 582.
8) Idem nº 2205
9) Lumen Gentium do
Vaticano II nº 11; veja também Catecismo op.cit. nn.1665-1666 e 2204.
Leonardo Boff, teólogo e por mais
de 20 anos professor de teologia sistemática e ecumênica no Instituto Teológico
Franciscano de Petrópolis, posteriormente professor de ética na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e em outras universidades no estrangeiro.
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