Igrejas: resistência e colaboração durante a ditadura militar – Por Carolina Benevides e Marcelo Remígio

Cinco anos após o golpe militar de 1964, o padre italiano Bruno Costanzo desembarcou no Rio de Janeiro. 

Assumiu a paróquia de Vila Aliança, na Zona Oeste, recebeu ordem para rezar missa pelo aniversário do golpe e ignorou. Meses mais tarde, nova carta de militares foi entregue. Dessa vez, para que celebrasse missa pela Independência do Brasil.

“O Brasil não era livre, não tinha por que celebrar missa em comemoração ao Dia da Independência. Nem no aniversário do golpe", lembra padre Bruno, hoje com 71 anos: 
"Outros religiosos também fingiam não ter recebido as cartas e nunca rezaram as missas. Agora, a gente agia sem pensar muito. Se pensasse, não ia agir assim”.

Durante a ditadura, por todo o Brasil, alguns religiosos criaram grupos de resistência, deixaram de aceitar imposições do governo, denunciaram torturas, foram perseguidos e até ajudaram a tirar pessoas do país. Essa parte da História vem sendo contada há anos. 

Difícil, segundo pesquisadores, é reunir material sobre o colaboracionismo das igrejas Católica e protestantes. Por conta disso, na Comissão Nacional da Verdade (CNV), um grupo específico sobre esse papel reúne histórias sobre a resistência e tenta identificar os religiosos que colaboraram com os governos militares, ficaram em silêncio ou se omitiram.

“Naquela época, prevaleceram o silêncio e a omissão das igrejas, mas mesmo hoje as pessoas têm dificuldade de falar sobre colaboracionismo”, diz Magali Nascimento Cunha, pesquisadora que faz parte do grupo da CNV, lembrando que as igrejas repetiam o que acontecia no Brasil:

“Elas absorveram a tendência da sociedade em geral, que se omitia e se negava a se preocupar com o que ocorria. Os evangélicos, em geral, preocupavam-se em ir para o céu, como se a igreja estivesse fora do mundo. Os católicos, por conta da ligação que sempre tiveram com o poder, preferiram a cautela, mesmo depois dos questionamentos sobre o que acontecia. Já os que ajudavam, muitas vezes, nem tinham afinidade ideológica. Faziam por ter consciência das vidas em risco”.

Coordenador do grupo da CNV, Anivaldo Padilha explica que a comissão tem encontrado documentos que comprovam o que já se sabia em relação à oposição ao regime, mas que, em relação ao colaboracionismo, conta principalmente com o testemunho de algumas pessoas. Mesmo ele, preso em 1970, quando, além de fazer parte da Aliança Popular, era diretor do Departamento Nacional da Juventude da Igreja Metodista, levou mais de 30 anos para ter a confirmação de que um bispo e um pastor deram seu nome aos militares.

“Os dois que me delataram, os irmãos Isaías Sucasas, que era bispo, e José Sucasas, pastor, já mortos, eram pessoas que eu conhecia. Numa das primeiras sessões de tortura, eu neguei ser comunista, e o torturador gritou: você quer que acredite em você ou no pastor? Achei que era um jogo, que era para quebrar minha moral. Como eram pastores, eu achava que isso (o cargo) exigia deles outra postura”.

Padilha reúne casos sobre a época, mas reconhece a dificuldade de ter provas.

“Ainda há uma cortina de silêncio. Mesmo quando encontramos indícios fortes, há tentativa de negação. Entre o clero, há quase uma relação mística, uma barreira muito difícil de ser superada. Em relação aos protestantes, a barreira é menor”, diz Padilha, lembrando que documentos sobre colaboracionismo foram encontrados no Centro de Informação do Exército:

“Um deles traz dados sobre um padre infiltrado, que esteve em reuniões no Rio e em São Paulo. E relata que, por conta da expectativa da expulsão de Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns faria uma minibiografia sobre ele. E a comissão ouviu o relato de uma família que buscou ajuda no Convento dos Dominicanos, no Rio, e de lá foi encaminhada para a Nunciatura, uma espécie de embaixada. No entanto, ouviu que devia sair imediatamente porque a polícia seria chamada”.

Controvérsias

Ainda que tenha havido colaboracionismo, a História aponta que o pastor presbiteriano Jaime Wright e bispos como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Hélder Câmara, Dom Adriano Hypolito, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Clemente Isnard e Dom Waldyr Calheiros foram incansáveis na luta contra a ditadura.

Dom Eugênio, que viria a ser arcebispo do Rio de Janeiro, é, segundo pesquisadores, uma figura controversa. Conservador, apoiou o regime, mas em alguns momentos chegou a interceder por militantes de esquerda, a visitar presídios e até a receber perseguidos políticos do Brasil e de outras ditaduras da América Latina no Palácio São Joaquim, na Glória, conforme O GLOBO revelou em 2008.

Na Baixada Fluminense, na Região Serrana e no Sul Fluminense, um grupo de bispos debatia nas missas e nas pastorais ações do governo militar, violações dos direitos humanos e a luta pela terra. Chamados pelos militares de bispos vermelhos, eles foram perseguidos. Dom Adriano Hypolito, de Nova Iguaçu, foi sequestrado por agentes da repressão em setembro de 1976. Ele foi abandonado sem roupas e pintado de vermelho. Na Catedral de Santo Antônio, onde celebrava missas, um atentado destruiu o Santíssimo. 

O sequestro, que motivou uma passeata contra o regime, aconteceu três meses depois de o 1º Comando do Exército impedir a conferência sobre direitos humanos proposta por Dom Adriano. O evento aconteceria no Centro de Formação de Líderes da Igreja Católica, que foi cercado por militares. No mesmo dia seria criada a Comissão de Justiça e Paz, instituída no ano seguinte.

“Dom Adriano não era comunista, mas defensor dos direitos humanos. Deu abrigo e apoio a perseguidos políticos. O ministro-chefe da Casa Civil, Gilberto Carvalho, foi um deles”, conta o diretor do Acervo Dom Adriano Hypolito, Antônio Lacerda: “Ele usava como instrumento de luta o jornal “A Folha”, utilizado nas missas e que colocava em discussão o Brasil. Depois, foi adotado em arquidioceses contrárias à ditadura”.

Guardadas no Acervo Dom Adriano Hypolito, cartas inéditas às quais O GLOBO teve acesso comprovam a rotina de luta de bispos contra a ditadura. O material inédito inclui correspondência entre Dom Adriano e Dom Waldyr, na época em Volta Redonda, cidade com forte movimento operário. As cartas relatam ainda torturas, pedidos de ajuda e até trazem notícias sobre os padres e bispos que respondiam a inquérito policial militar.

“Aqui (em Volta Redonda) continua a fúria contra a denúncia de torturas que fizemos por alguns prisioneiros”, escreve Dom Waldyr em 15 de outubro de 1969. 

“Os primeiros dias que se sucederam ao Ato Institucional 5 foram acompanhados de várias detenções e prisões que as autoridades competentes julgaram que deviam fazer. (...) O coronel Armênio Pereira, comandante do 1º BIB, sediado em Barra Mansa, chama católicos e pessoas de minha confiança ao seu quartel para apresentar uma suposta documentação a fim de provar aquilo de que tenta se convencer a si mesmo: ser um comunista e agitador”, diz Dom Waldyr em 19 de janeiro de 1969.

O bispo colaborou com a fuga de perseguidos políticos e foi protagonista de um dos poucos casos de punição a militares envolvendo tortura na época. Seu relatório sobre a morte de quatro soldados levou à expulsão de quatro militares das Forças Armadas. “Mexer com bispo dá azar,” dizia o religioso.

“Dom Alberto Trevisan, capelão no Exército, nos defendia nos momentos mais difíceis. Ele tinha informações privilegiadas e sabia que eu e outros padres éramos visados”, lembra padre Bruno.


Ferrenho na luta contra o regime, Dom Hélder estava à frente da Arquidiocese de Olinda e Recife quando houve o golpe. Perseguido, foi chamado de “demagogo” e “comunista”. Em 1969, o padre Antônio Henrique, um de seus assessores mais próximos, foi torturado e morto. 

Na época, outros 20 colaboradores foram presos e torturados. Dom Hélder não se calou: em 1970, fez um discurso contundente em Paris sobre o que acontecia no Brasil.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Negociar e acomodar identidade religiosa na esfera pública"

Pesquisa científica comprova os benefícios do Johrei

Por que o Ocidente despreza o Islã