“A felicidade egoísta está condenada ao fracasso” - Por Maria de Lurdes Vale
Podemos ser felizes com pouco e
infelizes com muito. Quem o diz é Matthieu Ricard, monge budista que, no início
de maio, vem a Portugal falar sobre altruísmo e felicidade. Nesta conversa
deixa um desafio: «ouse» fazer o bem aos outros sem esperar nada em troca.
Foi reconhecido, de acordo
com estudos científicos, como o homem mais feliz do mundo. Como é o seu
quotidiano?
Os seus colegas jornalistas gostam muito da história de acordo com a qual a minha humilde pessoa seria «o homem mais feliz do mundo». Foi um rumor, sem nenhuma base científica, que surgiu há uns anos num documentário sobre a felicidade apresentado pela cadeia de televisão australiana ABC, e que dizia que «talvez tenhamos aqui o homem mais feliz do mundo». Toda a gente pode encontrar a felicidade desde que a procure onde ela se encontra. Quanto ao meu dia-a-dia, faço todo o possível para partilhar o meu tempo entre retiros meditativos e os projetos humanitários que tenho a cargo nos Himalaias.
Gosta muito de fotografia e coloca
as imagens que faz num blogue com o seu nome…
Para mim a fotografia é um hino à
beleza. Comecei a fotografar aos 15 anos com um amigo fotógrafo de animais e
apaixonado pela natureza. Após ter ido para os Himalaias, em 1972, fotografei
os meus mestres espirituais e o seu mundo. De acordo com os ensinamentos
budistas, todos os seres detêm a natureza de Buda. Através da fotografia quis
mostrar a beleza dessa natureza humana, a beleza e a dignidade, que podem
coexistir com o sofrimento mais intenso e a esperança pode sobreviver mesmo à
destruição e à perseguição. O povo tibetano dá-nos essa prova, pois soube
conservar essa alegria, a força interior e confiança enquanto sofria um
genocídio humano e cultural. As imagens de sofrimento, de desespero e
ignomínia abundam. Nunca consegui tirar fotografias dessas. Para mim, é
essencial inspirar a esperança e a confiança, é aquilo que mais nos falta e de
que mais precisamos.
Vários estudos indicam que as
redes sociais podem levar a uma maior solidão do ser humano. Está de acordo?
Com efeito, segundo a socióloga americana Sherry Turkle, os canais ditos «sociais» são, na realidade, um meio de estar só, estando conetado a muita gente. Um jovem de 16 anos que comunica principalmente através de mensagens fazia notar com uma certa amargura: «Um dia, um dia, mas de certeza não agora, gostaria de aprender a ter uma conversa.» Os jovens passaram da conversação à conexão. Quando se tem três mil amigos no Facebook não podemos evidentemente ter qualquer tipo de verdadeira conversa. Apenas nos conetamos para falar de nós próprios para um auditório garantido. As conversas eletrónicas são lapidares, rápidas e por vezes brutais. As conversações humanas, face a face, têm uma natureza diferente: evoluem lentamente, têm muitas nuances e ensinam-nos a paciência. Numa conversa somos chamados a ver as coisas de um outro ponto de vista, uma condição necessária à empatia e ao altruísmo.
Vem a Lisboa falar sobre O
Altruísmo e a Felicidade. Qual a principal mensagem que traz?
Um dos maiores desafios da atualidade consiste em conciliar os imperativos da economia, da procura da felicidade e do respeito pelo ambiente. A economia e a finança evoluem a um ritmo cada vez mais rápido; a satisfação de vida mede-se com base num projeto assente numa carreira, numa família, numa geração; e o ambiente, que tradicionalmente se media em eras geológicas, está, hoje, devido aos transtornos ecológicos provocados pelas atividades humanas, em rápida mudança. Precisamos de um fio de Ariana que nos permita encontrar o caminho neste labirinto de preocupações graves e complexas. O altruísmo é o fio que nos pode permitir ligar naturalmente as três escalas de tempo – curto, médio e longo prazo – harmonizando as suas exigências.
Uma família com o pai e a mãe
desempregados pode ser feliz?
As circunstâncias da vida podem ser muito difíceis, mas é preciso lembrarmo-nos de que há mil maneiras de viver a adversidade. Quando somos confrontados com situações que não escolhemos, o modo como vivemos as coisas pode agravá-las consideravelmente, ou aligeirá-las. A nossa mente pode ser o nosso melhor amigo ou o nosso pior inimigo. Por muito influentes que possam ser as condições externas, o mal-estar, tal como o bem-estar, é essencialmente um estado interior. Devemos assim fazer todos os possíveis para melhorar as condições exteriores e a qualidade de vida, para enfrentar as desigualdades salariais e de riqueza que vão crescendo na maior parte dos países da OCDE e que são particularmente visíveis em Portugal, mas é importante não colocar todas as nossas esperanças fora de nós. É que podemos ser muito infelizes quando aparentemente temos tudo para ser felizes e, ao contrário, sermos serenos na adversidade.
Existe uma receita para alcançar
a felicidade?
Uma receita não, mas uma visão e métodos sim. A felicidade é, antes de mais, uma maneira de ser, um estado adquirido de plenitude subjacente a cada instante da existência e que perdura através das inevitáveis incertezas que vivemos. No budismo, a palavra soukhadesigna um estado de bem-estar que nasce de uma mente excecionalmente saudável e serena. É uma qualidade que impregna cada experiência, cada comportamento, que abraça todas as alegrias e todas as mágoas. É igualmente um estado de sabedoria e de conhecimento, liberto de venenos mentais e da cegueira sobre a verdadeira natureza das coisas. Soukha está estreitamente ligado à compreensão da forma como funciona a nossa mente e depende da nossa forma de interpretar o mundo. É difícil mudar este último, mas é possível transformar a maneira como o percecionamos.
Ser feliz tem que ver com o «eu»
ou com os «outros»?
Contribuir para a realização do bem dos outros é não só a mais desejável das atividades, mas também a melhor forma de realizar indiretamente o nosso próprio bem. A perseguição de uma felicidade egoísta está condenada ao fracasso, mas o contributo para o bem do outro constitui um dos principais fatores de estabilidade e, em última instância, de progresso em direção ao Despertar.
O altruísmo não é uma forma de
apaziguar o ego? Quando fazemos bem aos outros não estamos, em primeiro lugar,
a tratar de nós próprios?
A autoestima – o facto de sentir contentamento quando as nossas aspirações são satisfeitas – é compatível com a benevolência para com o outro, em oposição ao amor-próprio, que coloca os nossos interesses à frente dos do outro e exige que o mundo inteiro tenha em consideração os nossos desejos. No entanto, a realização do bem dos outros não implica o sacrifício da nossa própria felicidade, bem pelo contrário. Se nos movemos por uma motivação altruísta, sincera e determinada, contribuir para o bem do outro é uma situação vivida como uma vitória e não como um falhanço, um ganho e não uma perda, uma alegria e não uma mortificação. «O amor é a única coisa que duplica de cada vez que a damos», dizia Albert Schweitzer. Nunca poderemos, assim, falar de sacrifício, uma vez que, subjetivamente, o ato cumprido, longe de ter sido sentido como um sofrimento ou perda, trouxe-nos satisfação de ter agido de maneira justa, desejável e necessária. O mundo do ego é como um pequeno copo de água: umas pitadas de sal chegam para o tornar intragável. Mas o que faz estoirar a bolha do ego é comparado a um grande lago: um punhado de sal não muda em nada o sabor. Em conclusão, o egoísmo só faz perdedores: torna-nos infelizes e leva-nos a fazer infelizes os que nos rodeiam. O amor altruísta é a mais positiva de todas as emoções positivas.
Vai estar também no Porto numa
conferência sobre Meditação e Ciência. Qual é a ligação entre uma coisa e
outra?
A partir do ano 2000, foram
lançados programas de investigação com um grupo de pessoas que tinha
consagrado uma vintena de anos ao desenvolvimento sistemático da compaixão, do
altruísmo e da paz interior. A análise de certos dados demonstrou diferenças
espetaculares entre os meditantes e os não praticantes. Os primeiros tinham a
faculdade de gerar estados mentais precisos, poderosos e duráveis. De acordo
com o investigador Richard Davidson, de Wisconsin, «foi possível demonstrar
que o cérebro pode ser treinado e modificado fisicamente de uma forma que
poucos imaginam». E quantas mais horas de prática, mais assinalável é a
transformação cerebral. Outros trabalhos demonstraram que as áreas do cérebro
ativadas pela empatia são distintas das que são ativadas pela compaixão e pelo
amor altruísta. Sabemos que a ressonância empática com a dor do outro pode
conduzir, se repetida muitas vezes, a uma exaustão emocional e à aflição. É
isto que vivem frequentemente os enfermeiros e médicos por estarem em contato
com doentes em grande sofrimento. Este fenómeno, conhecido em inglês
como burnout, é traduzível como «exaustão emocional» ou ainda «fadiga
da compaixão». Constatou-se que a compaixão e o amor altruísta estavam
associados às emoções positivas. E que o burnout é uma «fadiga da
empatia» e não da compaixão. Esta última, com efeito, longe de levar à aflição
ou ao desencorajamento, reforça o estado de alma, o equilíbrio interior e a
determinação corajosa de ajudar aqueles que sofrem. Assim, o amor e a compaixão
não geram nem fadiga nem desgaste, mas, pelo contrário, ajudam a
ultrapassá-los e a repará-los.
Os médicos acreditam nesse
«poder» da meditação para prevenir doenças?
Outras experiências científicas demonstraram que não é necessário ser um meditante muito treinado para beneficiar dos efeitos da meditação, e que vinte minutos de prática diária contribuem significativamente para a redução da ansiedade e do stress, da tendência a ficar colérico (cujos efeitos na saúde estão bem identificados) e do risco de recaída em caso de depressão grave. Oito semanas de meditação sobre a consciência plena, de cerca de trinta minutos diários, reforçam notavelmente o sistema imunitário. O que é indispensável, na prática, não é meditar durante longos períodos, mas fazê-lo regularmente. O estudo da influência dos estados mentais sobre a saúde, outrora classificados como fantasia, está cada vez mais na ordem do dia da investigação científica.
Deixou uma carreira científica
para abraçar o budismo. Qual foi o momento determinante para essa mudança?
O momento-chave foi o encontro com mestres espirituais tibetanos, na Índia. Tive uma imensa sorte de encontrar o meu mestre espiritual, Kangyur Rinpotché, em 1967, perto de Djarleeling, na Índia, e de passar, depois da sua morte, em 1975, alguns anos em retiro perto do mosteiro onde viveu. A partir de 1981, tive o privilégio de viver 13 anos junto de um outro grande mestre tibetano, Dilgo Khyentsé Rinpotché, e de receber os seus ensinamentos. Depois, tive numerosas ocasiões de servir o XIV Dalai Lama e de receber os seus ensinamentos. Um mestre espiritual autêntico é alguém que vos mostra aquilo que vocês poderiam ser. É alguém que está em perfeita sintonia com aquilo que ensina. O mensageiro torna–se a mensagem.
Meditar está ao alcance de todos?
Claro que sim! A meditação visa alcançar um melhor conhecimento da nossa mente e uma maior capacidade de gerir os nossos pensamentos. Estamos confrontados com a nossa mente de manhã à noite e é ela, afinal de contas, que determina a qualidade de cada momento da nossa existência. O facto de conhecer melhor a sua verdadeira natureza e de compreender os seus mecanismos vai influenciar de maneira crucial essa qualidade.
As emoções condicionam a nossa
mente. O que diria a quem sente raiva, ciúme, inveja…?
É preciso, em primeiro lugar, que essa pessoa reconheça o caráter destrutivo dessas emoções. Quando falamos de emoções negativas, como no caso da raiva ou do ciúme, o termo «negativo» não tem valor moral, mas prático. Isto significa «menos» felicidade e mais sofrimento. Ouvimos dizer que o budismo em geral, e a meditação em particular, visam suprimir as emoções. Tudo depende daquilo que entendemos por «emoção». Se forem perturbações mentais como o ódio e a inveja, porque não desembaraçarmo-nos delas? Se for um sentimento de amor altruísta ou de compaixão para com os que sofrem, porque não desenvolver essas qualidades? Este é, em qualquer caso, o objetivo da meditação. Compreendamos que é a acumulação e encadeamento das emoções e dos pensamentos que geram os nossos humores, os quais duram alguns instantes ou alguns dias, e que formam, a longo prazo, as nossas tendências e traços de caráter. É por isso que se aprendermos a gerir as emoções, pouco a pouco, de emoção em emoção, de dia para dia, acabaremos por transformar a nossa maneira de ser.
O budismo é uma filosofia de
vida?
O budismo é uma religião, uma filosofia, uma sabedoria ou uma arte de viver? É uma questão frequentemente colocada ao Dalai Lama e à qual responde com humor: «Pobre budismo! Eis que é rejeitado pelos religiosos, que dizem que é uma filosofia ateia, uma ciência da mente, e pelos filósofos que o colocam na prateleira das religiões. Mas isto pode ser uma vantagem, pois permite-lhe construir uma ponte entre as religiões e filosofias». Diria que o budismo é uma tradição espiritual da qual emana uma sabedoria aplicável a todos os momentos da existência e em todas as circunstâncias.
E, em sua opinião, porque é que
vai conquistando cada vez mais seguidores no Ocidente?
Tem de lhes perguntar! Não posso falar por eles. Talvez seja devido ao facto de o budismo oferecer uma perspetiva muito pragmática em relação aos mecanismos da felicidade e do sofrimento.
Como vê o atual Papa Francisco?
Existe algum ponto em comum entre o catolicismo e o budismo?
Tenho grande admiração pelo Papa Francisco, pela sua simplicidade, pela sua humildade e bom senso. Estou convencido de que pode fazer muito pelo mundo. Fiquei particularmente surpreendido quando, pouco tempo depois da sua eleição, foi a uma prisão em Itália e lavou os pés a uma mulher muçulmana. O budismo e o cristianismo têm em comum a importância que dão ao amor ao próximo. É preciso que as religiões estejam ao serviço dos mais humildes e dos necessitados, o seu objetivo não deve ser o de converter as pessoas, mas sim ajudá-las e libertá-las dos seus sofrimentos.
O que «ganhou» em tornar-se um
monge budista?
A liberdade de me dedicar o mais possível – embora nunca o suficiente, devia, claro, praticar mais – à prática espiritual.
Quem é Matthieu Ricard?
Nasceu em Paris, em 1946, num meio privilegiado, filho do filósofo francês Jean François Revel e da pintora Yahne Le Tourmelin. Doutorado em Biologia Molecular pelo Instituto Pasteur, sob orientação do Prémio Nobel François Jacob, cedo se interessou pelo budismo. Decidiu então abandonar a carreira científica e tornar-se monge. Escreveu várias obras sobre a espiritualidade, sendo a mais conhecida: O Monge e o Filósofo – um diálogo com o seu pai sobre o sentido da vida. É um amante da fotografia, tendo cerca de uma dezena de livros publicados com imagens de rara beleza sobre a Índia, Nepal, Butão e Tibete, e um membro ativo do Mind and Life Institut, com sedes na Suíça e nos EUA. Desenvolveu a associação Karuna-Shechen, através da qual apoia projetos humanitários e construção de pontes, sobretudo nos Himalaias. É também conhecido como o «homem mais feliz do mundo».
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