Religião na Cidade - Por Paulo Mendes Pinto e Fernando Catarino
O início deste ano de 2014 parece
estar a consolidar uma polémica que começara já no ano anterior em torno da
circuncisão por motivos religiosos.
A polémica estalara na Alemanha, mas também
parece correr na Dinamarca e noutros países escandinavos que já apresentaram
recomendações contra esta prática no Conselho da Europa.
A base das propostas que defendem
a proibição de tal prática reside na valorização dos direitos da criança em
relação à manutenção das práticas das tradições religiosas. Neste caso, o
Judaísmo e o Islão são os alvos desta onda.
Obviamente que esse campo do
Direito deve ser invocado. Depois de milhares de anos a menosprezar os menores,
tratando-os quase sempre de forma sub-humana, fica “bem” à Europa finalmente
colocar as crianças num lugar de direitos inquestionáveis.
Contudo, esta postura implica uma
certa inversão na responsabilidade educativa e de identidade das crianças.
Quais os direitos e os deveres da progenitura? Onde termina e como se define o
que de espiritual os pais podem transferir para os filhos como parte de uma
identidade colectiva, e quais os limites para as marcas que esses actos podem
implicar?
Para a tradição bíblica, seguida
por judeus e por muçulmanos, a circuncisão é a marca da primeira grande aliança
entre Deus e o seu povo, na pessoa de Abraão. Pode-se encarar, sem esforço, que
a circuncisão é a principal marca de identidade ritual nestas religiões. Mais
que identidade religiosa, é identidade cultural e sentido de irmanação com os
antepassados e o que eles representam.
De facto, ao retirar o prepúcio,
os pais estão a efectivar na criação, a repetir o gesto primordial, da aliança
que a sua religião representa. Daqui se percebe que a circuncisão é um acto
central e nunca se pode comparar com a mutilação genital feminina que em
nenhuma religião tem foro minimamente semelhante, além de a circuncisão não
minimizar ou retirar nenhuma capacidade ao homem, ao passo que o mesmo não se
aplica no caso feminino.
Para os pais, circuncidar é, sim,
tornar sagrado aquele bebé, integrando-o nos laços de uma aliança primordial. E
tornar sagrado, no sentido primeiro da expressão é sacrificar, sacre
facere. É um sacrifício porque torna sagrado.
É claro que a nossa sociedade
está numa deriva de protecção à criança que deve equacionar os limites da acção
dos pais a muitos níveis. Mas a eventual proibição de actos milenares que,
feitos segundo as regras estabelecidas há séculos, em nada fazem perigar a
saúde da criança, nem lhe retiram capacidades na vida adulta, é imagem de um
autoritarismo que nega em absoluto o papel e o lugar dos pais na passagem da
sua cultura e identidade.
Mais, neste universo de
proibições, as do campo religioso, acabam sempre por definir muito mais que o
simples acto que procuram banir. Neste caso concreto, são dois os grupos
religiosos abrangidos: judeus e muçulmanos.
Num tempo em que tantos
movimentos extremistas se revigoram na Europa com vitórias eleitorais que nos
devem deixar alarmados, proibir a circuncisão tem um nada leve tom a déjà
vu.
O que proibiremos a seguir?
Fonte: http://lifestyle.publico.pt
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