Leonardo Boff: “Dentro do sistema capitalista, não há salvação” – Por Débora Fogliatto
"Esse sistema não é bom para a
humanidade, não é bom para a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise
ecológica social com consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas
poderão morrer", diz o teólogo.
Um dos mais conhecidos teólogos
do Brasil, Leonardo Boff é um nome atualmente aclamado em todo o mundo, mas que
já foi muito marginalizado dentro da própria Igreja em que acredita.
Nos anos
1980, o então frade foi condenado pela Igreja Católica pelas ideias da Teologia
da Libertação, movimento que interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo como
manifesto contra as injustiças sociais e econômicas.
Aos 75 anos, Boff é um
intelectual, escritor e professor premiado e respeitado no país, cuja opinião é
ouvida por personalidades com o Papa Francisco e os presidentes Lula da Silva e
Dilma Rousseff.
Nesta entrevista ao Sul21, concedida durante sua vinda a Porto
Alegre, Boff fala do momento atual da Igreja Católica, critica os religiosos
que usam o evangelho para justificar ideias retrógradas ou tirar dinheiro dos
fiéis, tece comentários sobre a situação no Oriente Médio, aborto, violência e
sobre a crise ecológica e econômica mundial.
As duas estão profundamente
interligadas: como explica Boff, o capitalismo está fundado na exploração dos
povos e da natureza.
“Esse sistema não é bom para a humanidade, não é bom para
a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise ecológica social com
consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas poderão morrer por falta
de acesso à água e alimentação”, afirma ele, que é um grande estudioso das
questões ligadas ao meio ambiente.
Sul21 – Nos anos 1980, por causa
dos ideais defendidos pela Teologia da Libertação, o senhor foi condenado a um
ano de silêncio obsequioso e sofreu várias sanções, que acabaram sendo
amenizadas diante da pressão social sobre a Igreja Católica, mas que o fizeram
abandonar o hábito. O senhor acredita que atualmente a Igreja agiria da mesma
forma?
Leonardo Boff – Não. O atual
Papa diz coisas muito mais graves do que eu disse no meu livro “Igreja: carisma
e poder”, que foi objeto de condenação. Se ele tivesse escrito isso, teria sido
condenado. Eu disse coisas muito mais suaves, mas que afetavam a Igreja. Dizia
que a Igreja não respeitava os direitos humanos, que é machista, tem um
conceito de poder absolutista e absolutamente superado, sem limites.
Os tempos mudaram e a graças a
Deus temos um Papa que pela primeira vez, depois de 500 anos, responde à
reforma, responde a Lutero. Lutero lançou o que chamamos de Princípio
Protestante, que é o princípio de liberdade. E esse Papa vive isso. E vive o
cristianismo não como um feixe de verdade que você adere, mas como o encontro
vivo com Jesus. Ele distingue entre a tradição de Jesus, aquele conjunto de
ideais, tradições, e a religião cristã, que é igual a qualquer outra religião.
Ele diz: “eu sou do movimento de Jesus”, e não da religião católica. Tais
afirmações são escandalosas para cristãos tradicionais, mas são absolutamente
corretas no sentido da Teologia, daquilo que nós sempre dizíamos e éramos
perseguidos por isso.
E eu fico feliz que a Igreja não
é mais uma instância que nos envergonhe, mas sim uma instância que pode ajudar
a humanidade a fazer uma travessia difícil para outro tipo de sociedade que
respeite os direitos da natureza, da Terra, preocupada com o futuro da vida. Eu
mesmo tive contato com o Papa e o tema central dele é vida. Vida humana, da
terra, da natureza. E nós temos que salvá-la, porque temos todos os
instrumentos para destruí-la.
Sul21 – O senhor acredita que a
Igreja Católica, sob orientação do papa Francisco, vai efetivamente renunciar a
alguns temas tratados como tabu, como a união homossexual?
Leonardo Boff – Ainda não
sabemos bem a opinião dele. Ele diz: “quem sou eu para julgar?”, no fundo diz
para respeitar as pessoas. Ele vai deixar haver uma grande discussão na Igreja
sobre a questão do divórcio e dos homossexuais, sobretudo a moral sexual
cristã, que é extremamente rigorosa e restrita, em alguns casos é criminosa.
Por exemplo, pregar na África que é pecado usar a camisinha, em lugares onde
metade da população sofre de Aids, é cometer um crime contra a humanidade. Foi
o que o papa Bento XVI disse várias vezes. Eu acho que o Francisco é mais que
um Papa, é um projeto de mundo, projeto de Igreja, ele se dá conta de que a
humanidade é uma, está sob risco e temos que nos unir nas diferenças para
superar a crise.
Acho que a grandeza desse Papa
não será ele definir as coisas, mas deixar que se discutam. E eu acho que ele
vai respeitar as pessoas, porque a maioria não é homossexual, ou homoafetivo,
por opção. As pessoas se descobrem homoafetivas. E ele vai dizer: “ande dentro
de Deus, não se sinta excluído”. Vai dizer que (os homossexuais) são tão filhos
de Deus quanto os outros. E daí respeitar. Talvez ele diga “não chame
matrimônio, que é um conceito canônico”. Mas uma união responsável, que merece
a benção de Deus, e que tenha uma proteção jurídica, que tenha seu lugar na
Igreja, que possam frequentar os sacramentos. Esse seguramente vai ser o
caminho dele.
Sul21 – E com essas posições do
Papa Francisco, o senhor acha que Igreja Católica talvez consiga recuperar
fiéis diante do avanço das igrejas evangélicas?
Leonardo Boff – Esse Papa
não é proselitista e diz claramente que o evangelho deve atrair pela sua
beleza, seu conteúdo humanitário. Ele não está interessado em aumentar o número
de cristãos, em fazê-los voltar. Está interessado em que as pessoas, com a
situação confessional que têm, se coloquem à disposição do serviço da
humanidade, das coisas boas que a humanidade precisa.
É aquilo que nós chamamos de
“ecumenismo de missão”. Estamos divididos, é um fato histórico, mas não é uma
divisão dolorosa. Porque cada um tem seus antros, profetas e mestres. Mas como
nós juntos nos reconhecemos nas diferenças e como juntos vamos apoiar os sem
terras, os sem tetos, os marginalizados, as prostitutas. Esse serviço nós
podemos fazer juntos.
Sul21 – Muitas pessoas usam a
religião para justificar opiniões conservadoras, machistas e homofóbicas. Qual
a sua opinião sobre essas posições?
Leonardo Boff – Há o exemplo
concreto do aborto nas últimas eleições. Isso mobilizou as igrejas, foram até o
Papa, fizeram pressão sobre os fiéis. Eu acho que é uma falsa utilização da
religião. A religião não foi feita para isso. E todos devem reconhecer, e são
obrigados a reconhecer pela Constituição, que há um Estado que é laico. Então
essas pessoas pecam contra o princípio fundamental da democracia, não são
democratas. Eles podem ter a opinião deles, mas não podem impô-la.
É muito fácil a posição deles, é
salvar a criancinha. E depois que salvou ela está na rua, abandonada, passando
fome e morrendo. E nem têm compaixão pelas mais de cem mil mulheres que morrem
por ano por causa de abortos malfeitos. São pessoas que pecam contra a
democracia e contra a humanidade, o senso humanitário. Ninguém é a favor do
aborto em si, as mulheres que fazem aborto não pediram por isso. Mas muitas
vezes passam por situações tão delicadas que precisam tomar essa decisão.
O que eu aconselho e o que muitos
países fizeram, inclusive Espanha e Itália, que são cristianíssimas e
permitiram o aborto, pediram que houvesse um grupo de acompanhamento, que
converse com a mulher e explique o que significa. E deixar a decisão a ela, se
ela decidir vamos respeitar a decisão. Mas ela faz com consciência. Isso eu
acho que seria democrático e seria responsável diante da fé, você não renuncia
à tua fé, mas respeita a consciência, que é a instância última a que responde
diante de Deus.
“Então eles têm um país que foi
vítima do nazismo e utiliza os métodos do nazismo para criar vítimas. Essa é a
grande contradição.”
Sul21 – Algumas igrejas aqui
cobram dízimo dos fiéis, muitas vezes dizem que para agradecer a Deus as
pessoas têm que pagar as igrejas. Qual a sua opinião e como a teologia da
libertação vê essa prática?
Leonardo Boff – São igrejas
do chamado “evangelho da prosperidade”, dizem que você dá e Deus te devolve. Eu
acho que é um abuso, porque religião não foi feita para fazer dinheiro. Foi
feita para atender as dimensões espirituais do ser humano e dar um horizonte de
esperança. Agora quando a igreja transforma a religião num poder econômico,
como a Igreja Universal do Reino de Deus, que em Belo Horizonte tem um shopping
ao lado, chamado de “o outro templo”, que é o templo do consumo, e depois do
culto as pessoas são instruídas a comprar. Para mim, é a perversão da religião.
Inclusive acho que é contra a Constituição utilizar a religião para fins não
naturais a ela. Eu combato isso, sou absolutamente contra. Porque isso é
enganar o povo, é desnaturar e tirar o caráter espiritual da religião. A
religião tem que trabalhar o capital espiritual, e não material.
Sul21 – E em relação a essa crise
violenta entre Israel e a Faixa de Gaza, em que o Estado de Israel já matou
centenas de pessoas, como o senhor acha que o resto do mundo deveria agir em
relação a isso? O Papa poderia ser uma pessoa a mediar o conflito?
Leonardo Boff – Esse Papa é
absolutamente contemporâneo e necessário. Acho que é o único líder mundial que
tem audiência e eventualmente poderia mediar essa guerra de massacre criminosa
que Israel está movendo contra Gaza.
E eu acho que grande parte da
culpa é do Obama, que é um criminoso. Porque nenhum ataque com drones (avião
não tripulados) pode ser feito sem licença pessoal dele. Estão usando todo tipo
de armas de destruição, fecharam Gaza totalmente, ficou um campo de
concentração, e vão destruindo. Então eles têm um país que foi vítima do
nazismo e utiliza os métodos do nazismo para criar vítimas. Essa é a grande
contradição.
E os Estados Unidos apoia, o
Obama e todos os presidentes são vítimas do grande lobby judeu, que tem dois
braços: o braço dos grandes bancos e o braço da mídia. Eles têm um poder enorme
em cima dos presidentes, que não querem se indispor e seguem o que dizem esses
judeus radicais, extremistas e que se uniram à direita religiosa cristã. Isso
está aliado a um presidente como Obama que não tem senso humanitário mínimo,
compaixão para dizer “acabem a matança”.
Sul21 – Qual a sua avaliação da
atual disputa para a presidência da República?
Leonardo Boff – Notamos que
é uma disputa de interesses de poder. Não se discute o projeto Brasil, se
discute poder. O que eu acho lamentável porque não basta ter poder, o poder é
um meio. Eu vejo que há duas visões de futuro. Uma é mais progressista, que é
levada pelo atual governo. E eu torço que ele ganhe. Mas ganhar para avançar,
não reproduzir agenda. Ele atingiu uma agenda que é o primeiro passo, de
incluir milhões de pessoas que têm agora direito de consumir o mínimo, de
comida, ter geladeira, casa, luz. Isso é direito de todo cidadão. Essa etapa eu
acho que o governo cumpriu e bem. Mas agora vem uma nova etapa, porque o ser
humano não tem só fome de pão. Tem fome de escola, beleza, lazer, participação
na vida social, dos espaços públicos.
E há os que querem impor aquilo
que está sendo imposto e não está dando certo na Grécia, em Portugal, na
Itália, na Irlanda, que é o neoliberalismo mais radical. Que no fundo é uma
austeridade, é o arrocho salarial, aumentar o superávit primário, que é aquele
bolo com que se paga os rentistas. Há a visão de futuro que quer enquadrar o
Brasil nesse tipo de globalização que é boa para o capital, porque nunca os
capitalistas enriqueceram tanto. Tanto que nos Estados Unidos 1% tem o
equivalente a 99% da população, enquanto no Brasil 5 mil famílias controlam o
equivalente a 43% do PIB. São famílias da casa-grande, que vivem do capital
especulativo.
Acho que nós temos que vencer
esse projeto, porque não é bom para o povo. Mesmo com todos os defeitos e
violações de ética que houve, erros que o PT cometeu, ainda assim o projeto
deles é o mais adequado para levar adiante um avanço. Agora se for ganhar para
avançar, porque se for para reproduzir dá no mesmo do que outro ganhar.
Sul21 – O senhor mencionou a
crise econômica pela qual passam a Grécia, Espanha e países europeus que seguem
o neoliberalismo. Há maneiras de reverter a crise?
Leonardo Boff – A Europa
está tão enfraquecida e envergonhada que nem mais aprecia a vida. Aquilo que
mais escuto em cada palestra que vou na Europa é pessoas me pedindo “por favor,
me dê esperança”. Quando um povo perde esperança, perde o sentido de viver.
Isso acontece porque alcançaram tudo que queriam, dominaram o mundo, exploraram
a natureza como quiseram, ganharam um bem-estar que nunca houve na História e
agora se dão conta que são infelizes. Porque o ser humano tem outras fomes.
Fome de amar e ser amado, de entender o outro, conviver, respeitar a natureza.
E tudo isso foi colocado à
margem. Só conta o PIB. Mas tudo que dá sentido humano não entra no PIB: o
amor, a solidariedade, a poesia, a arte, a mística, os sábios. Isso é aquilo
que nos faz humanos e felizes. E essa perspectiva em que só contam os bens
materiais poderá levar a humanidade a uma imensa tragédia. Dentro do sistema
capitalista, não há salvação. Por duas razões. Primeiro porque nós encostamos
nos limites da Terra. É um planeta pequeno, com a maioria dos recursos não
renováveis. O sistema tem dificuldade de se auto-reproduzir, porque não tem
mais o que explorar. E segundo porque os pobres, que antes da crise que
eram 860 milhões, pularam, segundo a FAO, para um bilhão e 200 milhões.
Então esse sistema não é bom para
a humanidade, não é bom para a ecologia e pode levar eventualmente a uma crise
ecológica social com consequências inimagináveis, em que milhões de pessoas
poderão morrer por falta de acesso à água e alimentação. Esse sistema, para
minha perversidade total, transformou tudo em mercadoria. De uma
sociedade com mercado para uma sociedade de mercado,
transformando alimentação em mercadoria. O pobre não tem dinheiro para pagar,
então ele passa fome e morre.
Sul21 – O senhor se preocupa
também com o avanço da extrema direita na Europa?
Leonardo Boff – É a reação
normal de quando há uma crise maior que alguns postulem soluções radicais. No
caso da Europa, é a xenofobia. Mas são todos países que têm problema de
crescimento negativo de população. A Alemanha tem que exportar 300 mil pessoas
por ano para manter o crescimento mínimo de população, e na França a situação é
parecida. Então estão em uma dificuldade enorme, porque precisam deles, mas
querem os expulsar. Mas há o risco de que haja um processo que gerou a Segunda
Guerra Mundial, que era fruto da crise de 1929 que nunca se resolvia, até que a
direita criou o nazifascismo. Mas hoje o mundo é diferente, é globalizado. Não
dá para resolver a questão de um país sem estar vinculado aos outros.
Sul21 – Os governos da América
Latina oferecem uma alternativa a esse modelo europeu que está em crise?
Leonardo Boff – Muitos veem,
como o (sociólogo português) Boaventura de Sousa Santos, que na América Latina
há um conjunto de valores vividos pelas culturas originárias que podem ajudar a
humanidade a sair da crise. Especialmente com a característica central do
bem-viver, que significa ter outra relação com a natureza, entender a Terra
como mãe, que nos dá tudo que precisamos ou podemos completar com o trabalho. E
inventaram a democracia comunitária, que não existe no mundo, é uma invenção
latino-americana, em que os grupos se reúnem e decidem o que é melhor para
eles, e o país é feito por redes de grupos de democracias comunitárias. Essa
nova relação com a natureza e o mundo é o que precisamos desenvolver para ter
uma relação que não seja destrutiva e possa fazer com que a humanidade
sobreviva.
Há uma revisitação das culturas
originárias, porque elas têm ainda respeito com a natureza, não conhecem a
acumulação. São valores já vividos pelas culturas andinas, sempre desprezadas e
hoje estudadas por grandes cientistas e sociólogos que percebem que aqui há
princípios que podem nos salvar. Em vez de falar de sustentabilidade, respeitar
os ritmos da natureza. Em vez de falar de PIB e crescimento, garantir a base
físico-química que sustenta a vida. Porque sem isso a vida vai definhando. E em
vez de crescimento, redistribuição. É tanta riqueza acumulada que se houvesse
0,1% de taxa sobre os capitais que estão rolando nas bolsas, estão na
especulação, daria um fundo de tal ordem que daria para a humanidade matar a
fome e garantir habitação. Porque o capital produtivo é de U$ 60 trilhões,
enquanto o especulativo é U$ 600 trilhões. Então é uma economia completamente
irracional e inimiga da vida e da natureza. E não tem futuro, caminha para a
morte. Ou nos levará todos para a morte, ou eles mesmos se afundarão.
Sul21 – E onde entra o papel
do Brasil no âmbito ecológico? Os governos têm conseguido lidar com as questões
ambientais?
Leonardo Boff – O Brasil é a
parte do planeta mais bem dotada ecologicamente. Tem as maiores florestas
úmidas, maior quantidade de água, maior porcentagem de terrenos agriculturáveis
no planeta. Mas não têm consciência de sua riqueza. E as políticas
públicas não têm nenhuma estratégia de como tratar a Amazônia, tratar os vários
ecossistemas. Sempre é em função da produção. Então estão avançando sobre a
floresta Amazônica e deflorestando para ter soja e gado.
E o Ministério do Meio Ambiente é
um dos mais fracos, assim como o dos Direitos Humanos. Isso significa que não
conta a vida, conta a economia. Eu acho lamentável isso. E essa crítica tem que
ser feita pelos cidadãos. Dizer que apoiamos um projeto de governo, mas nisso
discordamos. Porque é uma ignorância, uma irresponsabilidade, uma estupidez
governamental. Muita coisa do futuro da humanidade passa por nós, especialmente
água potável, que possivelmente será a crise mais grave, até mais do que
aquecimento global. E o Brasil tem capacidade de ser a mesa posta para o mundo
inteiro e fornecer água potável para o mundo inteiro. Acho que não temos
consciência da nossa responsabilidade. Os governantes são vítimas ainda de uma
visão economicista, obedecem as regras da macroeconomia. A nossa relação
com a natureza não é de cooperação, é de exploração.
Sul21 – Como o
Brasil pode lidar com o grave problema de violência urbana?
Leonardo Boff
– O problema que deve ser pensado de que já agora 63% da humanidade
vive nas cidades, no Brasil 85%. Não dá mais para pensar apenas na reforma
agrária, tem que pensar como vão viver as pessoas. Nós vivemos no Brasil a
vergonha de que todas as cidades têm um núcleo moderno cercado por uma ilha de
pobreza e miséria, que são as favelas. Esse é um problema não resolvido e para
mim central na campanha: como trabalhar os 85% que vivem nas cidades, já
perderam a tradição rural, de plantar e viver da natureza, e não assimilaram a
cultura urbana. Então são perdidos. Daí o aumento da criminalidade. E muitos
dizem que a sociedade têm um pacto social que rege o comportamento dos
cidadãos. Ou seja, “vocês nos excluíram, então não somos obrigados a aceitar as
leis de vocês, vamos criar as nossas”. As milícias do Rio criaram funções de
Estado paralelas, criam sua organização e distribuição e o governo é impotente.
E as UPPs não são a solução, porque cria ilhas e as drogas ficam nas margens. O
problema não é de polícia, é do tipo de sociedade que nós criamos, montada em
cima do colonialismo, escravagismo e etnocídio dos indígenas. Nós não “temos
violência” no Brasil, nós estamos sentados em cima de estruturas de violência.
É um estado de violência permanente.
Sul21 – E como o país pode fazer
para fugir disso?
Leonardo Boff – Aquilo
que já começou, parar de fazer políticas ricas para os ricos e pobres para os
pobres para fazer políticas de integração, inclusão, começando pela educação.
Porque onde há educação a pessoa se habilita a se autodefender, buscar novas
formas de sobrevivência. Um país que não investe em educação e saúde conta com
pessoas ignorantes e doentes. E com essas pessoas não têm como dar um salto de
qualidade. Para mim esse é o grande desafio e isso deveria ser discutido nas
campanhas, e não partidos. Desafiar todo mundo: “como vamos sair disso?”,
porque tende a piorar cada vez mais. Essa seria uma política ética, digna, onde
o bem comum estaria no centro e somaria forças, alianças de pessoas que se
propõem a mudar as estruturas que sustentam um Estado injusto, que tem a segunda
maior desigualdade do mundo. Desigualdade significa injustiça, que é um pecado
social estrutural mortal. E isso não é discutido.
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