“A Igreja sempre fez política, porém, uma política de direita” – Por Beatriz Borges

Leonardo Boff, teólogo e escritor, fala sobre o perdão do papa Francisco aos que, como ele, seguem a Teologia da Libertação.

O movimento católico da Teologia da Libertação, que defende uma Igreja para os pobres e ideais de justiça social, nunca foi bem visto pela Santa Sé. Vários sacerdotes foram inabilitados por seguir essa doutrina de dimensão sociopolítica, principalmente na América Latina durante os anos 70. 

O papa Francisco, para tentar desfazer este mal-estar histórico, deu o primeiro passo. Nesta semana, retirou a punição e solicitou a reintegração do sacerdote nicaraguense Miguel d’Escoto, de 81 anos, suspenso em 1985 por seu envolvimento com a Frente Sandinista, movimento político de seu país, de viés socialista.

No Brasil, o teólogo Leonardo Boff, de 75 anos, foi outra vítima do conservadorismo da Igreja nos anos 70. Tudo porque ele apoiava a ideia de que a instituição precisava resgatar a origem e a vida de Jesus, que nasceu pobre e morreu por pregar seus ideais libertários.

Boff foi renegado pela Santa Sé de suas funções sacerdotais em 1984. Na época, a decisão foi do então cardeal Joseph Ratzinger, responsável pela Congregação da Doutrina da Fé, um órgão criado para fiscalizar e punir os padres que não seguiam os preceitos mais tradicionais da Igreja. 

Ratzinger, que ironicamente veio a ser o papa da abertura da Igreja, chegou a condenar mais de 100 teólogos, principalmente latino-americanos, continente onde a Teologia ganhou força, contestando as ditaduras dos anos 70 na região e as injustiças sociais. 

A doutrina, que existe há pouco mais de 40 anos, é considerada por muitos uma contaminação do evangelho pelo marxismo. Boff explica com uma frase porque esta corrente não conseguiu se firmar na Europa, mas sim na América Latina, onde há mais desigualdades: “A pessoa pensa a partir de onde os pés pisam. Assim vale também para as Igrejas”. 

Boff é otimista e acredita que a reabilitação de seguidores da Teologia da Libertação está apenas no começo. Ele mesmo diz que voltaria a exercer seu papel eclesiástico, caso fosse reabilitado. “Mas estou casado. E a Igreja não aceita padres casados.”

Pergunta. Esta semana o papa Francisco aceitou o pedido do sacerdote nicaraguense Miguel D’Escoto, suspenso pelo papa João Paulo II em 1985. O senhor acredita que haverá mais reabilitações dos seguidores da Teologia da Libertação?

Resposta. O Papa está reabilitando os teólogos perseguidos. Assim que recebeu em audiência particular o fundador da Teologia da Libertação, o peruano Gustavo Gutiérrez. Eu mesmo tenho um convite de um eventual encontro. D'Escoto foi sempre fiel à Igreja e defendia as posições sociais da Igreja quando Presidente da ONU. Mereceu ser reabilitado.

P. O senhor acredita que esta e outras condenações similares aconteceram pelo medo da Igreja de ter padres-políticos?

R. A acusação de marxismo na Teologia da Libertação vinha da direita e dos militares. Lamentavelmente, Roma, especialmente o Papa João Paulo II, deu ouvidos a estes, pois era obcecado contra o marxismo que conheceu na Polônia. Isso escandalizou os pobres, pois se sentiam incompreendidos: o Papa estava do lado de seus opressores.

P. Por que readmitir esses sacerdotes agora, o que mudou para que essa rejeição à Teologia da Libertação fosse superada?

R. O Papa Francisco vem da Teologia da Libertação de vertente argentina, que tem o nome de "teologia do povo" ou "teologia da cultura oprimida". Seu mestre, o Pe. Juan Carlos Scanonne, testemunhou o entusiasmo do Pe. Bergoglio por esta teologia. Daí fez voto de pobreza e de privilegiar o mundo das favelas. Seu discurso e seus gestos vem do caldo eclesial criado na Igreja na América Latina, diferente daquele da velha cristandade europeia em agonia.

P. Temos sacerdotes para reabilitar no Brasil? O senhor mesmo voltaria?

R. Eu fui condenado, bem como a Irmã Ivone Gebara, o Monge Marcelo Barros e outros. E todos tivemos apoio da maioria de nossos bispos de forma que temos podido continuar nosso trabalho teológico. Eu preguei retiro até para bispos, sem falar de encontros com freiras e padres. Continuei teólogo, embora Roma preferisse que fosse sub-diretor da Coca-Cola no Rio. Eu voltaria a exercer, caso fosse reabilitado. Mas estou casado. E a Igreja não aceita padres casados.

P. No Brasil temos mais pastores que padres concorrendo a cargos públicos. Além de contar com uma bancada evangélica mais representativa que o próprio catolicismo, religião que a maioria dos brasileiros segue. Como interpretamos esta incongruência?

R. A Igreja sempre fez política, pois está na sociedade. Mas fez política de direita. Quando começou a apoiar os pobres, o Movimento dos Sem Terra, dos índios, dos afrodescendentes e dos sem-teto e outros, acusaram-na de fazer política. Mas essa é a boa política pois defende os mais vulneráveis, objeto do amor privilegiado de Jesus e dos Apóstolos. Não devemos esquecer que somos herdeiros de alguém, Jesus de Nazaré, que foi preso, torturado e pregado na cruz por causa de seu compromisso com os últimos nos quais via a presença do Reino de Deus. Boa parte do grupo evangélico no Congresso não está defendendo os interesses gerais do povo, mas seus privilégios. Fazem do evangelho da prosperidade uma forma de ganhar dinheiro. É uma violência contra a democracia e uma ofensa à tradição de Jesus. Não é sem razão que quase não usam o Novo Testamento, mas o Antigo, mais ligado às coisas do mundo, embora tenha uma grandeza religiosa como os salmos e a mensagem dos profetas que conservam permanente atualidade.

P. É possível uma bancada católica?

R. Sou contra uma bancada católica. Somos um Estado laico e pluralista. Uma bancada católica defenderia as ideias católicas e não os interesses gerais do povo. Ser católico em política é perseguir o ideal de Jesus, dando visibilidade aos invisíveis, conferindo centralidade aos pobres, fazendo boas políticas públicas. Cristo não veio para criar cristãos, mas para que haja pessoas solidárias, compassivas, comprometidas com a ética e os valores humano-espirituais que dignificam uma sociedade. Por aí passa a vontade de Deus e os bens do Reino que Jesus quis e anunciou.

P. Em alguns países europeus, como a Espanha e a Itália, o clero colaborou com os regimes ditatoriais, enquanto na América Latina a Teologia da Libertação mobilizou muitos padres a ajudarem os perseguidos políticos. Como interpretar essa disparidade de comportamento da mesma Igreja?

R. A pessoa pensa a partir de onde os pés pisam. Assim vale também para as Igrejas. Igrejas que estão, como as europeias, pisando no solo burguês, do bem-estar social, construído não só pelo trabalho do povo, mas pela exploração das multinacionais alemãs, norte-americanas, italianas e outras, acabam defendendo os ideais burgueses. Mas devemos reconhecer que há muitas instituições europeias voltadas aos desamparados do Terceiro Mundo e ajudam poderosamente projetos de libertação social e dos direitos humanos aqui na periferia do mundo. Estes são nossos companheiros e companheiras de caminhada e salvam as Igrejas do cinismo de verem a miséria generalizada do mundo e não denunciarem o sistema econômico-financeiro de exploração que a produz.

P. A ala mais conservadora do Vaticano está, aparentemente, perdendo força desde que Bergoglio assumiu o posto na Santa Sede: crianças de pais casados no civil e de casais gays foram batizadas e casos de pedofilia revelados e punidos. O que o senhor acha que a Igreja quer dizer com essas mensagens de aceitação e perdão?

R. O que a Igreja faz é uma obra de justiça para com as vítimas. Ela deveria publicamente dizer que está envergonhada pois prega uma coisa e faz outra; que a pedofilia não é apenas um pecado mas um crime a ser levado aos tribunais. Toda a pretensão que a Igreja Católica tinha de exclusividade e de ser a referência moral da humanidade e "experta em humanidade" foi por água abaixo. Ela é feita de homens e de mulheres, com os defeitos e as virtudes que carregam. Finalmente, ela se deu conta da desmoralização que causou e lhe custa muito trabalho recuperar respeito e confiabilidade pública. Pelo menos o famoso farisaísmo oficial da Cúria Romana foi desmascarado por seus crimes financeiros e peloslobbies de homoafetivos que infestavam a Cúria.

P. Os casos de pedofilia no clero sempre existiram, mas aparentemente estão sofrendo mais retaliações que antes. Quais medidas este crime, que ainda mancha as batinas no mundo todo, exige?

R. A Igreja Católica perdeu seu point d'honneur, que era a moralidade, a pretensão de ser a portadora da verdade. Com os casos de pedofilia em muitos países, envolvendo não apenas padres, mas também bispos e dois cardeais, tudo isso entrou em crise. Trata-se de uma completa desmoralização. Vergonhoso foi o fato de o Cardeal Joseph Ratzinger ter enviado uma carta, sob sigilo pontifício, obrigando os bispos a não denunciarem os padres pedófilos aos tribunais civis. Isso para salvaguardar o bom nome da Igreja. Atribuía as acusações aos secularistas, à imprensa laica e aos inimigos da Igreja. Quando se verificou que a pedofilia clerical era verdade, teve que voltar atrás e reconhecer o erro. Duas dioceses norte-americanas foram quase à falência pelas multas recebidas pelos processos contra os pedófilos. Mas creio que a Igreja não fez o suficiente. Ela não aceita que há um laço intrínseco entre um celibato mal vivido e integrado e a pedofilia. Não quer tocar no celibato, quando todas as Igrejas já abriram mão da lei do celibato, deixando-o à liberdade dos sacerdotes.

P. Tivemos este ano a notícia de mulheres que pediram ao Papa autorização para se relacionar com sacerdotes. O senhor acredita que essas pressões e atitudes pontuais dos fiéis resultarão em algo concreto?

R. Eu creio que haverá mudanças no sentido de se tornar facultativo o celibato e de se admitir padres casados ou pessoas já aposentadas com boa situação familiar tornarem-se sacerdotes e atenderem um conjunto de prédios onde moram, por exemplo. Mas não creio que o Vaticano vá permitir que padres continuem tendo relações afetivas com religiosas. Seria um contrassenso. Que peçam licença e se casem e não querer ter vantagens das duas situações.

P. Qual será a pauta do seu seu encontro com o papa Francisco?

R. O Papa está preparando uma encíclica [carta papal sobre uma doutrina católica] sobre a ecologia e a defesa da vida. Pediu-me materiais que eu enviei, pois é um tema sobre o qual trabalho há muitos anos. Especialmente pediu o documento que ajudei a elaborar no sentido de uma reforma da ONU, a parte mais central e teórica sobre uma Declaração do Bem Comum da Mãe Terra e da Humanidade. Enviei também a Carta da Terra, um texto oficial da UNESCO com excelentes sugestões para salvar a vida no planeta no qual também participei em sua redação junto com Gorbachev e outros.

P. Sua condenação foi mais política do que teológica. O que significa esta afirmação?


R. Minha condenação constitui um caso raro na história das condenações dentro da Igreja. Não se condena nenhuma doutrina minha, apenas se diz que minhas opções poderiam por em risco a fé dos fiéis. Quais eram as opções? A opção pelos pobres, a opção por uma Igreja despojada e ecumênica, a crítica à não observância dos direitos humanos dentro da Igreja, especialmente para com as mulheres e os divorciados. Estava em boa companhia, pois estas eram as opções de Jesus. O Papa Francisco hoje diz coisas muito mais pesadas do que aquelas que eu escrevi no livro condenado Igreja: carisma e poder. A condenação era mais política do que teológica. Roma queria atingir a CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], considerada demasiadamente progressista. E eu era um dos seus principais assessores. Como dizem os alemães num dito popular: você bate no saco mas pensa no burro que carrega o saco. Quer dizer: Roma batia em mim (o saco) mas pensava na Igreja do Brasil (o burro). Eu logo entendi isso, bem como a CNBB. Daí que aceitei as punições impostas. Estava mais interessado em salvaguardar o caminho da Igreja do que fazer um caminho pessoal de rebeldia.



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