Padre, pai de santo, espírita e pastor falam sobre verba pública gasta em shows – Por Elverson Cardozo

A polêmica em torno da Quinta Gospel, evento da Prefeitura de Campo Grande, realizado por meio da Fundac (Fundação Municipal de Cultura), “deu pano para manga”, chegou a outros Estados, fez o Ministério Público entrar na história, gerou debate, revolta e muita citação ao Estado Laico, que preconiza um país de posição neutra no campo religioso e que prevê, acima de tudo, liberdade de crença religiosa aos cidadãos, além de proteção e respeito às manifestações religiosas.

Na interpretação de muita gente, os vetos da Fundac às solicitações de artistas espíritas e seguidores da umbanda, por exemplo, configuram um erro grave e representam uma violação a essa garantia constitucional. O certo, dizem alguns em seus argumentos, seria “repartir o pão”, investindo em shows evangélicos, católicos, de artistas espíritas e por aí vai.

Outros, no entanto, pregam que dinheiro público não deve, de maneira alguma, ser aplicado em nenhum evento religioso porque converter contribuintes não é, e nunca foi, função do município. As opiniões são divergentes e, por isso, o Lado B, resolveu ampliar o debate procurando representes de alguns segmentos religiosos em Campo Grande.

No entendimento da presidente da Fundação Espírita de Mato Grosso do Sul, Maria Túlia, é errado destinar verba pública a qualquer religião e a explicação dela é simples e didática:

“Evento cultural religioso deva ser levado à população, de forma a difundir sua fé, sua mensagem de congraçamento e paz, porém, isso deve se dar as expensas do promotor, tal como o fazemos. A Prefeitura, por ser parte executiva de um Poder que constitucionalmente deve se manter laico, não deve custear eventos desse tipo, mesmo porque, devemos respeitar os munícipes que não professam qualquer denominação religiosa e, tanto quanto os religiosos, pagam seus impostos”.

Eventos culturais religiosos, ela prossegue, “podem até merecer apoio estrutural do poder público, desde que sejam de caráter ecumênico e sem exclusivismo dessa ou daquela corrente religiosa.” Isso não ocorre na Quinta Gospel, já que cachês são pagos aos artistas com verbas da prefeitura.

O presidente da Tenda de Umbanda Pai Joaquim de Angola, Elson Borges, que tentou (e não conseguiu) trazer a cantora de Tecnomacumba Rita Benneditto à Campo Grande, tem postura semelhante. 

Na avaliação dele, religião não deve ser incentivo de governo porque cada pessoa tem a liberdade de escolher sua crença e não pode ser envolvida pelo governo para assumir ou se converter à mesma religião de seu governante.

“Se for para usar dinheiro público em eventos, que todas religiões sejam beneficiadas, sem discriminação ou intolerância. O governante foi eleito por eleitores de diversas religiões para representar o povo e não apenas os seguidores de sua religião”, declara.

Ele não concorda porque, argumenta, “existem outras prioridades como saúde, educação, segurança e infraestrutura urbana, que necessitam de melhorias e investimento do dinheiro publico”.

O oposto

O diretor da Clieb (Convenção de Lideres das Igrejas Evangélicas do Brasil), Bispo Antônio Carlos Ferreira, que representa, na função a ele atribuída, cerca de 120 igrejas evangélicas em Mato Grosso do Sul, pensa de maneira completamente diferente.

Ele acredita que a Prefeitura deve investir, sim, na arte e cultura, ainda que de cunho religioso, mas não pode beneficiar nenhuma igreja ou denominação, porque aí sim estariam ferindo a Constituição. Seria, na interpretação dele, mal uso do dinheiro público.

“A prefeitura não pode beneficiar uma igreja no sentido de denominação religiosa, mas a arte e a cultura que expressam a religiosidade, no sentido amplo, sem que seja focada a igreja, mas no caso da dança, música, teatro, pintura, livros, cinema, vídeo, tudo que se refere a cultura, a expressão da fé de uma pessoa ou sociedade, isso nada tem a ver com a igreja e o fato do Estado ser laico”, completa.

Representando a Igreja Católica, Padre Dirson Gonçalves, Reitor do Santuário da Nossa Senhora Aparecida, em Campo Grande, também acredita que o poder público, a Prefeitura no caso, deve investir em eventos culturais religiosos porque a população é carente desses tipos de ações de massa que, na interpretação dele, levam mensagem de paz, harmonia e fé.

"Em geral, todos estão sedentos de algo que lhes dê sentido. Se existem estes espaços e estas oportunidades, acho ótimo. Todas as igrejas (evangélicas, católicas...) tem excelentes expressões culturais, musicais, artísticas que merecem ser apresentadas à população. A arte nasceu nas Igrejas e delas se expandiu para o meio 'laico', esclarece.

Padre Dirson concorda com investimentos públicos nessa área porque, na avaliação dele, independente de religião ou igreja, todos pagam impostos e, portanto, tem o direito de ver estes impostos voltando em forma de benefícios. 

"Todos somos contribuintes, todos somos cidadãos, todos temos sede de Deus e merecemos apresentações culturais religiosas bem organizadas, bem produzidas, com uma estrutura que propicie o envolvimento e o encontro de todas as manifestações culturais".

Lado B aproveitou para questionar se, com toda essa polêmica envolvendo a Quinta Gospel, os representantes dessas denominações sentiram-se, de alguma forma, perseguidos ou desprestigiados.

Bispo Carlos achou a pergunta interessante e disse que, enquanto evangélico, professor de teologia e defensor da arte e cultura evangélica (gospel, ele faz questão de ressaltar), percebe que “são gastos milhões em manifestações culturais populares e afro”.

“E nós evangélicos já não temos espaço. Somos discriminados sim, mas é uma questão de mentalidade do poder publico que confundem orientação religiosa, que é papel da igreja, com cultura religiosa que é um patrimônio da humanidade”, protesta.

Padre Dirson responde com segurança: "Não. Jamais. Os católicos são incluídos sempre. Nossa cidade tem demonstrado uma capacidade grande de interação, respeito, ecumenismo e fraternidade religiosa. Aqui no santuário de nossa Senhora do Perpétuo Socorro acontecem dezenas de 'cultos ecumênicos' por ocasião das formaturas. Sempre recebemos com alegria, carinho e respeito os pastores e pastoras. Fazemos tudo juntos. A mensagem é a mesma, de um mesmo Deus, apenas de formas diferentes. Somos uma sociedade madura, graças a Deus".

Elson Borges, o presidente da Tenda de Umbanda Pai Joaquim de Angola, aproveitou a pergunta para deixar um relato: “Durante meus 24 anos de Umbanda nunca havia sentido o desgosto do preconceito ou da intolerância. Nunca escondi minha religião e também nunca desmereci qualquer outra religião. Já fui funcionário em uma rede ensino de outra religião e sempre fui muito respeitado […] e elogiado por pertencer a uma religião e saber respeitar meu local de trabalho sem querer interferir ou criticar a religião dos outros”.

Maria Túlia, da Fundação Espírita de Mato Grosso do Sul, preferiu falar, especificamente, sobre o evento que gerou toda essa discussão. 

“No momento em que a diretora-presidente argumenta sua negativa sob a alegação de que a Quinta Gospel é para os 'cristãos', advoga seu pensamento equivocado e unicista, pois, cristãos nós, os espíritas, o somos. Mas, digamos que deste evento queira participar denominações filosófico-religiosas como o budismo. Estariam também descriminadas? Retrocesso absoluto de ideologia em um momento em que mesmo o Papa Francisco busca a união e propaga o respeito às diversas manifestações de crenças religiosas. O Espíritas são antes de tudo cristãos. Seguem Jesus como o Mestre dos mestres e busca pautar sua conduta a luz do seu Evangelho”.

Diante de tanta divergência de opinião, o canal pediu, para fechar essa discussão, que os entrevistados dissessem que relação que o poder público deve ter com os segmentos religiosos.

Bispo Carlos, da Clieb, afirma que a relação deveria ser focada na melhor fiscalização da forma como as igrejas estão trabalhando, se legais ou não, para que, nas palavras dele, “os corretos não sejam sufocados pelos mal intencionados”. Por outro lago, continua, “o poder publico deveria respeitar mais as autoridades eclesiásticas legalmente constituídas pelas igrejas legalizadas e comprovadamente em dia com as obrigações dentro das normas estatutárias e as leis do país”.

Pede, também, que os líderes sejam ouvidos quanto a seus projetos sociais e, depois, orientou: “Vamos separar. Religião e igreja é uma coisa. “Cultura religiosa independe de igreja e reflete a cultura de um povo, uma comunidade. E isso deve ser incentivado e o poder publico deve, sim, investir, sem distinção de credo”.

O Reitor do Santuário Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Padre Dirson, acredita que a relação deve ser de respeito e busca por integração.

"O poder público deve buscar certa 'parceria' com os seguimentos religiosos para que numa grande 'corrente do bem', possamos construir uma sociedade melhor, mais humana, mais fraterna, com menos pessoas abandonadas, tristes e perdidas", sugere, ao dizer que a união de forças pode gerar a transformação que pode salvar e transformar o mundo em um lugar bem melhor. "Não são os políticos e os governos sozinhos, mas a união de todos em busca do bem comum e da paz. O Papa Francisco tem insistido nisso e eu concordo plenamente com ele".

Elson Borges, da Tenda de umbanda foi, mais uma vez, na contramão. “Creio que o estado laico não deve incentivar, acatar ou pregar nenhuma religião ou filosofia religiosa na gestão pública. O poder público deve proporcionar condições para que todas as religiões tenham perfeita convivência e respeito uma pela outra. Apoiar apenas uma religião é deixar de ser laico e desrespeitar a Constituição Brasileira”.

A presidente da Fundação Espírita argumentou que “o poder público deve manter uma relação abrangente com os segmentos religiosos, mas não tem o direito de investir recursos municipais em manifestações que privilegiem um segmento e segreguem os demais. O prefeito e os demais gestores não têm o direito de impingir suas crenças à população”.

De novo, falou sobre a Quinta Gospel. “Somos a favor de que este evento seja eliminado do calendário oficial de nossa cidade, pois, mesmo que o poder público declare que atenderá a todos os movimentos religiosos, entendemos que os recursos da cultura não devam ser investidos nesses segmentos”. Pediu, por último, que cumpra-se a Constituição Federal em seu artigo quinto.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, lei máxima do país, que limita os poderes e define direitos e deveres dos cidadãos, determina, em seu artigo 5º, parágrafo VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Diz, no VII, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.

No artigo 19, parágrafo I, está registrado que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.






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