Quando Deus pauta a política - Por Glauco Faria
A ascensão e o fortalecimento dos
evangélicos na arena política se relacionam mais com a defesa de interesses
corporativos de algumas igrejas do que a valores propriamente religiosos.
Nos últimos meses, os
evangélicos têm aparecido cada vez mais no cenário político e nas
manchetes dos noticiários, ostentando grande capacidade de interferir
nas decisões políticas e causando arrepios a muitos que consideram o
Estado laico ameaçado.
As vitórias do segmento ficaram evidentes em
episódios como o recuo do Ministério da Educação na distribuição de kits
para combater a homofobia nas escolas, a não veiculação de um vídeo
de combate à aids voltado para o público LGBT, os inúmeros
obstáculos interpostos ao PLC 122, que criminaliza a homofobia, no
Congresso Nacional e mesmo a rocambolesca postura do governo e
de seus representantes no Parlamento no item da Lei Geral da Copa,
que previa a liberação de bebidas nos estádios.
Outro momento constrangedor para
o governo federal se deu quando Gilberto Carvalho, secretário-geral
da Presidência, se reuniu com representantes da Frente
Parlamentar Evangélica para, entre outros pontos, pedir desculpas por
declarações em que teria criticado os religiosos durante o Fórum
Social Temático de Porto Alegre.
A impressão geral, e que
inteligentemente os próprios líderes evangélicos fazem questão de
reforçar, é que o governo e grande parte do Congresso se
dobram diante das pressões do setor. Mas qual a natureza desse poder
dos evangélicos? Trata-se de uma força superestimada ou é fruto
de uma articulação de interesses que vem se tornando mais sólida nos
últimos anos?
Para entender o papel
desempenhado pelos evangélicos na política, é preciso resgatar as
eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, em 1986. Até aquele
ponto, pentecostais e neopentecostais não se organizavam para
garantir sua participação na política institucional.
Alguns chegavam a
repelir tal possibilidade: foi o caso dos dirigentes da Assembleia de Deus,
que desencorajavam seus fieis ao pregar que eles não deveriam se
envolver com partidos, movimentos sociais, sindicatos e organizações
similares. Mas, para garantir seu espaço na elaboração da nova
Constituição, lideranças da própria Assembleia de Deus, do Evangelho
Quadrangular e da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD, que
nunca sustentou o discurso antipolítico) passaram a se organizar com
fins eleitorais.
Paul Freston, em seu livro: Evangélicos
na política brasileira: história ambígua e desafio ético, conta que,
em janeiro de 1985, na Convenção Geral das Assembleias de Deus
do Brasil, políticos evangélicos de outras igrejas, como Íris
Rezende, pediram à instituição que se envolvesse nas eleições para o novo
Congresso. Naquele mesmo ano, em um encontro realizado em abril, os
assembleianos apresentaram candidatos recrutados em suas
fileiras, sendo que, em quatro estados, apoiaram outros candidatos
pentecostais.
A tática eleitoral, hoje muito conhecida dos brasileiros em geral,
foi a do medo, como descreve Freston, que entrevistou o presidente da
Convenção Geral das Assembleias de Deus do Brasil, José Wellington
Bezerra da Costa. Segundo o religioso, a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) “estava com um esquema armado para
estabelecer a religião católica como a única religião oficial”.
As
lideranças da Assembleia de Deus também faziam questão de lembrar que a
nova Constituição poderia estabelecer pontos como a legalização do aborto,
a liberação das drogas e o casamento de homossexuais.
Ali, já se notava o potencial
eleitoral da igreja: dos 18 indicados, 13 foram eleitos, além de um
suplente. Na legislatura anterior, a igreja tinha apenas um deputado. No
total, os evangélicos chegaram a ocupar 33 cadeiras no Congresso
Nacional, pautando debates de cunho moral na Casa, como
ressaltam Alvaro de O. Senra e Denise S. Rodrigues no artigo: “Irmão
vota em Irmão!”, publicado na revista Espaço Acadêmico.
“Nessa
conjuntura, criaram-se condições para que uma agenda política
conservadora, de inspiração religiosa, pusesse na pauta dos debates e
votações do Legislativo temas controversos, como a possibilidade de
financiamento público para o ‘tratamento’ de homossexuais que
desejassem ‘reverter’ para a condição de heterossexualidade.”
Sem
fazer qualquer separação entre a esfera política e a moralidade privada,
os parlamentares se entrincheiraram em trabalhos como os da
subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, manifestando-se contra a
igualdade de direitos para homossexuais, o aborto,
a descriminalização das drogas, e defendendo a censura nos meios de
comunicação.
Mas a atuação não se limitava a
temas relativos à moral. Os interesses corporativos das igrejas foram
defendidos de uma forma bastante usual dentro das práticas do
Parlamento: a fisiologia.
Além de marcar presença na Subcomissão da
Ciência, Tecnologia e Comunicação, o grupo obteve benefícios:
em troca do apoio dado à emenda que concedia um ano a mais de mandato
ao presidente Sarney (de autoria do deputado Matheus Iensen, do
PMDB-PR, da Assembleia de Deus, que controlava emissoras de rádio
e uma gravadora evangélica); alguns membros parlamentares ligados às
igrejas foram agraciados com concessões de rádio e televisão.
Valdemar Figueiredo Filho, autor
de: Coronelismo Eletrônico Evangélico, destaca que, no período de
1985 a 1988, foram dadas 946 concessões de rádio e 82 concessões de
televisão, sendo que 539 (52%) foram distribuídas entre janeiro e
outubro de 1988, últimos meses da Constituinte, quando se
debatia a duração do mandato do presidente José Sarney. Na
prática, a área de comunicação seria a principal área de
atuação dos parlamentares evangélicos.
“Os interesses na
representação política estão relacionados às estruturas midiáticas de que
os grupos religiosos dispõem. É o que de fato justifica a formação de
uma bancada parlamentar”, argumenta Figueiredo Filho.
A Assembleia Constituinte
representou um verdadeiro divisor de águas na representação política
evangélica. Segundo Leonildo Silveira Campos, foi ali que houve
uma diferenciação entre “políticos evangélicos” e “políticos de
Cristo”.
O primeiro grupo, disperso, cuja origem remete à República
Velha, não era composto por representantes dos interesses
corporativos de suas igrejas e se inspirava nos ideais liberais dos norte-americanos. Já
o segundo grupo passa ao largo de ideologias ou programas partidários,
representando, prioritariamente, as demandas de suas organizações
religiosas.
Nesse sentido, a fraqueza do
sistema partidário brasileiro favorece a inserção dos “políticos de
Cristo”, que se distribuem por diferentes partidos, de acordo com as
negociações com dirigentes e maiores possibilidades eleitorais em
cada local. Um advento recente, o surgimento de uma nova classe média,
seria também mais uma oportunidade para algumas instituições
religiosas ganharem poder político.
“Temos a emergência, no Brasil,
de uma classe C, que é conservadora e vinculada ao consumo e à
família. A palavra de ordem é sucesso, e não mobilização social. O perfil
de liderança que se alimenta dessa situação é um líder carismático,
que fala ‘Deus está comigo’, e é esse tipo de liderança que está
surgindo, é o discurso do sucesso do indivíduo aumentando sua
eficácia”, sustenta o sociólogo Rudá Ricci.
“Como não temos um sistema de
representação que se enraíza nessa classe C, tais lideranças ganham
força. Vem aumentando a relação daqueles que professam alguma fé com
a materialidade, usando a religião como fator de ascensão social.”
O sociólogo Pedro Ribeiro de
Oliveira também observa que a fragilidade dos partidos é um fator que
favorece o fortalecimento desses grupos religiosos na arena política.
“O
Estado é o campo próprio das políticas públicas, e é legítimo que
igrejas e outros organismos da sociedade queiram influenciar o rumo
dessas políticas. O problema é quando as igrejas e outros organismos
da sociedade, se comportam como se fossem partidos políticos e usam
sua capacidade de influir nas eleições para reivindicar privilégios diante
do Estado”, argumenta.
“Um Estado respaldado por partidos políticos
fortes, como pretende o projeto cidadão de Reforma do Estado, pode
resistir a tais pressões. Um Estado despolitizado, porém, é frágil
diante de pressões indevidas. Infelizmente, é este o nosso caso.”
Impérios midiáticos
“Essas igrejas nascem no espaço
da comunicação, a liturgia é de comunicação de massa, seja eletrônica ou
televisiva, tem um timing que é distinto das igrejas protestante e católica
tradicionais.” Valdemar Figueiredo Filho se refere às igrejas pentecostais e
neopentecostais, que representariam, na classificação proposta por Campos, os
“políticos de Cristo”.
Aliás, é necessário que se faça uma diferenciação: a
participação dos evangélicos na população vem crescendo, de 9%, em 1990, para
15,4%, em 2000, segundo o Censo do IBGE. Mas quem alavanca o crescimento são os
pentecostais e neopentecostais, enquanto denominações tradicionais do
protestantismo se encontram estagnadas ou em declínio. E, para crescer e se
consolidar, o investimento, econômico e político, na área de comunicação é
crucial.
Levantamento feito por Figueiredo
Filho com dados da Anatel e da Abert, em março de 2006, mostra que 25,18% das
emissoras de rádio FM das capitais brasileiras são evangélicas, sendo que
69,11% destas pertencem ao campo pentecostal, com domínio da Igreja Universal
do Reino de Deus, que detém 24 emissoras. Já entre as AM, a proporção é de
20,55%, sendo que a Assembleia de Deus possui nove emissoras.
Segundo o
cientista político, “o rádio configura o dizer e o fazer dos atores políticos
que representam esses grupos evangélicos”. E há mais dados sistematizados por
ele para confirmar isso.
Em 2003, a Comissão de Ciência, Tecnologia,
Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara tinha 51 membros titulares, sendo
que 16 contrariavam a norma que proibia parlamentares de serem sócios ou diretores
de empresas concessionárias.
Esses 16 representavam 37 empresas
concessionárias: 31 emissoras de rádio e seis de televisão, sendo que quatro
faziam parte da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), instalada oficialmente em
2003, e eram concessionários de 21 das 37 emissoras.
Dentre os grupos
midiático-religiosos, sem dúvida o que mais se destaca é a Universal do Reino de Deus. Nem tanto pelo número de fieis, já que, conforme o Censo de 2000 do IBGE, ela tem nas
suas fileiras 1,23% da população, ficando muito atrás da Assembleia de Deus
(4,95%), da Igreja Batista (1,86%), da Congregação Cristã do Brasil (1,46%) e
mesmo dos espíritas (1,33%). Mas é da sua característica empresarial, com
ênfase na comunicação, que emana sua força. “Levando-se em conta os grupos de
comunicação, a Universal é a mais forte, e com isso tem um poder político que
se sobrepõe a outros grupos”, comenta Figueiredo Filho.
“A Universal é uma grande empresa
que usa o imaginário da população e tem uma alta elaboração. Ela não se
instalou nos moldes tradicionais, é um teatro e um mercado, que trabalha com
produtos. Cada semana ela lança um produto novo, como qualquer empresa que sabe
qual é seu público-alvo; existe uma corrente dos 70 pastores, outra para os
empresários, para quem tem problemas financeiros…”, enumera Saulo de Tarso
Cerqueira Baptista, autor de: Cultura política brasileira, práticas
pentecostais e neopentecostais.
Ele ressalta que a igreja, assim como outras
vertentes religiosas, não atrai apenas os seus fieis, mas, justamente por conta
desses “produtos”, também chama a atenção de pessoas que professam outra fé e
eventualmente frequentam um templo da IURD ou assistem a seus programas
televisivos e radiofônicos em busca de cura ou de uma graça.
A organização
religiosa, proprietária da Rede Record, uma das maiores redes de comunicação do
País, sabe diferenciar os objetivos de cada um de seus negócios. Enquanto na
sua grade de programação restringe os programas religiosos à madrugada, aluga
espaços no horário nobre em outras redes.
O exemplo de sucesso da
organização comandada por Edir Macedo ainda teria estimulado outras
denominações pentecostais a seguir o seu exemplo de inserção na política
institucional, algo em que foi pioneira.
“Algumas igrejas, como a Assembleia de
Deus, foram praticamente arrastadas para esse campo, porque estavam perdendo
terreno. Entrevistei um dirigente da Assembleia, que foi eleito vereador, e ele
dizia: ‘Não sou político, mas é uma exigência dos pastores novos porque
estávamos perdendo para a Universal’”, conta Cerqueira Baptista.
“Considero que
o fortalecimento político [dos evangélicos] se deu mais pela presença mais
significativa e intensa nos partidos. Hoje, o PRB e o PSC têm grupos
evangélicos/pentecostais em suas lideranças e em cargos-chave do partido. Há
uns 20 anos que o bispo Rodrigues, ex-líder político da IURD, entendeu a
importância da estrutura partidária e, de dentro, passou a atuar, no PL naquela
época. Para ele, esse era um ponto central”, explica Alexandre Brasil Fonseca,
doutor em Sociologia pela USP.
“A TV, chamada de quarto poder no Brasil,
representa uma série de elementos e ocupa papel importante no processo de
legitimação de grupos evangélicos. A propriedade de emissoras de rádio e TV é
um ponto importante, principalmente quando vão além da pregação religiosa, caso
em que a IURD tem sido exemplar. Fora isso, o fato de alguém ter muito tempo de
TV para pregações religiosas não representa, a priori, garantia de eleição para
nada. O R.R. Soares [líder da Igreja da Graça] é um bom exemplo, ele foi
candidato várias vezes a deputado e nunca se elegeu. Recentemente, conseguiu
emplacar o irmão como deputado.”
O poder exercido de forma
centralizada na Universal do Reino de Deus não a favoreceu apenas no mundo dos negócios de
comunicação, mas também lhe dá um cacife eleitoral que não é proporcional à sua
representação entre os evangélicos, superando as demais igrejas do segmento.
Conforme Cerqueira Baptista, a igreja mantém seus representantes no Parlamento
como “qualquer outro empregado da corporação”.
Os fiéis das igrejas evangélicas,
em geral, têm um grau de exposição à autoridade religiosa muito maior do que
aqueles que seguem outras religiões, como destaca o sociólogo Eduardo Lopes
Cabral Maia, autor do artigo: “Os evangélicos e a política”, publicado na
Revista dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC.
De acordo com ele,
aproximadamente 82,65% dos evangélicos vão ao culto uma ou mais vezes por
semana, enquanto entre os católicos apenas 35,71% têm esse alto grau de
exposição. Também entre eles há o menor número de fieis com baixo grau de
exposição (9,69%). Essa maior participação dos evangélicos em cultos e
atividades pode sugerir uma maior influência do discurso apresentado pelas
igrejas e suas lideranças, incluindo-se aí os destinados a demonstrar que o
voto no candidato da igreja é o melhor voto para o fiel/eleitor.
A relação com os governos
Na primeira eleição presidencial
em que os “políticos de Cristo” já eram um grupo com força relevante, em 1989,
Fernando Collor de Mello foi o ungido por muitos segmentos evangélicos,
contando com manifestações públicas de apoio de líderes da Igreja do Evangelho Quadrangular,
Assembleia de Deus Igreja Universal do Reino de Deus.
No segundo turno, Lula, o então
candidato petista, foi “demonizado” pelo jornal da igreja de Edir Macedo. Como
afirma Cerqueira Baptista, boatos davam conta de que o “comunista ateu”
proibiria cultos em espaços públicos, e os templos seriam transformados em
escolas. Outros reclamavam da proximidade do PT com os católicos e viam em
Collor uma oportunidade de “equilibrar o jogo”. A diferença que definiu a
eleição em favor do postulante do PRN ficou em torno de 4 milhões de votos.
“O
Robinson Cavalcanti, bispo anglicano, era amigo do Frei Betto, e apareceu uma
vez no horário eleitoral. Na época, o [Luiz] Gushiken era responsável pelo
diálogo com o setor religioso, e ele sabe tanto de campo religioso como eu sei
de sânscrito. Foi feita uma frente evangélica aqui [Pará], mas havia grandes
dificuldades, porque quando ia conversar com o pessoal da campanha, eles não
tinham a mínima noção de conversar. Se o PT tivesse humildade…”, conta.
Mas Collor deu muito menos do que
se esperava, e logo os evangélicos começaram a reclamar. Ainda assim, foram os
parlamentares que mais hesitaram a votar a favor do impeachment do
presidente, como anotou o jornalista Jânio de Freitas na Folha de S. Paulo,
um dia após o impedimento de Collor, deixando mostras de uma relação pouco
republicana com o governo.
“O Planalto só notou que o impeachment passaria
à 1 hora de ontem, quando soube que a bancada dos evangélicos fechara com a
oposição.”
FHC também teve o apoio da
maioria dos líderes evangélicos para sua eleição em 1994, mas a relação não foi
tranquila, em especial com a Universal do Reino de Deus. Cerqueira Baptista resgata o fato de os membros da igreja acharem que o governo beneficiava a Rede Globo, que a
“perseguia”.
“A TV Globo ainda tem o poder de divulgação, mas nós temos o poder
de mobilização. Senhores políticos, não venham bater às nossas portas à época
das eleições, porque vocês vão ganhar também um verdadeiro não”, ameaçava pela
imprensa o pastor Ronaldo Didini.
Em 1994, Mario Covas, candidato a governador
de São Paulo, havia recebido apoio por escrito na Folha Universal, assim
como o candidato ao Senado José Serra, que, com Covas, chegou a participar de
uma cerimônia da Universal do Reino de Deus, em que ambos foram chamados ao púlpito por Didini e
apresentados como candidatos da Igreja Universal do Reino de Deus
As fiscalizações da Receita
Federal e da Previdência eram o que mais incomodava a IURD, elas ocorriam em
frequência bem maior do que ocorria com a Globo, segundo seus líderes, e ainda
seria beneficiada com aportes do BNDES, o que não ocorria com a Record.
Em
1998, FHC não teve o apoio da Universal do Reino de Deus, que, mais tarde, articulou com o PL a
aliança que levou Lula à Presidência em 2002.
“Bom, eu vim para cá, me
aproximei do PT, me aproximei do Genoino, do Zé Dirceu, de todos os líderes do
PT e… houve uma distensão, não é? Eles desconfiavam da gente, tinham ódio da
gente, a gente desconfiava e tinha ódio deles. Esse ódio acabou e começou a
haver uma aproximação”, relatou o bispo Carlos Rodrigues, uma das principais
lideranças da Igreja e do PL em depoimento a Cerqueira Baptista, em junho de
2004.
“Mas hoje os evangélicos como grupo, como segmento, não têm nenhuma
representação no governo Lula. Isso não tem, não é?”, reclamava Rodrigues,
acusando ainda a Igreja Católica de ter derrubado Benedita da Silva,
supostamente uma representante dos evangélicos (embora em sua ação parlamentar
nem sempre tivesse se alinhado nas questões morais) da pasta da Ação Social (antecessora
do Ministério do Desenvolvimento Social), para colocar Patrus Ananias.
Rodrigues, que liderava com mão de ferro a bancada da Universal do Reino de Deus no Congresso,
cairia após o escândalo do mensalão.
E hoje, como é a relação com o
governo Dilma? “Existem sinais de que [a Frente Parlamentar Evangélica] está
mais forte, mais próxima de influenciar o governo. A escolha do senador Marcelo
Crivella para o Ministério da Pesca é um sinal importante para se avaliar.
Apesar de pequena, não é uma pasta tão irrelevante, ainda mais se considerarmos
que foi ocupada no governo Lula por José Fritsch, militante da Pastoral
Católica”, destaca Cerqueira Baptista.
“Nesse sentido, ao se colocar o
Crivella, sinaliza-se uma perda de espaço católico e uma ampliação, ao menos
simbólica, de espaço para os neopentecostais. A Frente Parlamentar Evangélica
não considera que Crivella a represente, até pela própria natureza dos
evangélicos e por constituírem um conjunto de tradições e igrejas diferentes,
mas para eles é melhor um Crivella do que um católico.”
“O que temos atualmente se
relaciona mais por características do Estado brasileiro, em que temos uma
grande importância das relações pessoais nos processos (questão bem retratada
no trabalho de Marcos Otavio Bezerra). Vejo que isso tem um peso maior do que
propriamente o valor do religioso na sociedade contemporânea”, analisa
Alexandre Brasil Fonseca.
“A nomeação do Crivella como ministro só foi possível
em decorrência de um partido que atua com o governo do PT desde o primeiro
mandato de Lula e nesse sentido é que se concretiza a decisão. O simples fato
de ele ser ‘representante evangélico’ não seria suficiente para tanto e mesmo
os líderes da Frente Parlamentar Evangélica foram rápidos em afirmar a ‘não
representação’ de Crivella em relação ao segmento.”
Nesse ambiente de fortalecimento
de alas conservadoras no Congresso Nacional, como ficariam discussões cruciais como a
igualdade de direitos para os homossexuais e o direito ao aborto, por exemplo?
“A bandeira moral, quando se torna uma bandeira política, quase sempre funciona
como uma camuflagem de interesses que não querem se explicitar, como são os
interesses corporativos (interesses particulares, da própria entidade) ou a
defesa de políticas sem respaldo social (isto é, políticas conservadoras que
mantêm privilégios de pequenos grupos)”, alerta Pedro Ribeiro de Oliveira.
“Veja dois casos típicos: a defesa do ensino religioso confessional nas escolas
públicas (garantia de emprego a professores indicados pelas autoridades
eclesiásticas) e a oposição à descriminalização do aborto (arma eleitoral
contra partidos liberais e de esquerda).”
Algo importante de se ressaltar é
que as bandeiras do conservadorismo não unem necessariamente todos os membros
da Frente Parlamentar Evangélica, mas conseguem agregar outros setores do
Parlamento e conta com a omissão (devidamente calculada em termos de risco
eleitoral) de outros.
“Algo que a imprensa nunca soube trabalhar é a ação de
uma ‘frente subterrânea’ católica. Subterrânea porque não mostra a cara dela, e
se trata de um grupo maior do que o evangélico. A Frente Parlamentar Evangélica
tem estatuto, se manifesta, é visível e é possível saber o partido de cada um e
o que ele faz. Mas, na frente parlamentar católica, é mais difícil, porque não
fazem questão de assumir, e em muitas causas, como nessas questões do kit
anti-homofobia, eles se unem”, aponta Cerqueira Baptista.
Para Rudá Ricci, o
processo eleitoral de 2010, quando temas morais vieram à tona no fim do
primeiro turno e no segundo do pleito presidencial, fortaleceu esses grupos.
“Na eleição presidencial, pela primeira vez os neopentecostais perceberam que
poderiam se aliar a alas ultraconservadoras da Igreja Católica, e essa
somatória dá um contingente muito razoável”, acredita.
A união entre evangélicos e
católicos em torno das questões morais, dobradinha que já se evidencia na
pré-campanha de algumas cidades do Brasil, combina dois tipos de estratégia
diferentes e pode potencializar ainda mais o seu alcance.
“Esse ponto é o mais
complicado, pois amplia em muito a escala dessas ações. A relação dos católicos
com o Estado se dá desde sempre, e os evangélicos têm se caracterizado por
fazer um barulho maior. Unir essas duas estratégias, como [Gilles] Kepel
salientou no livro A revanche de Deus, passa por ações ‘pelo alto’ e ‘por
baixo’, representando uma potencialização de ações e posturas”, reflete Brasil
Fonseca.
“Isso pode ser visto no episódio do ensino religioso no Rio de
Janeiro. O projeto de um parlamentar ligado à Renovação Carismática [da Igreja
Católica] atuou em consonância com o casal Garotinho”, lembra.
“Evidente que essas bandeiras
unem setores conservadores católicos e evangélicos, mas se trata de uma
coalizão de interesses, e não uma aliança estratégica diante de um imperativo
ético”, pondera Ribeiro de Oliveira.
Para ele, é necessário amplificar algumas
discussões para toda a sociedade, o que seria uma forma de superar os
obstáculos interpostos pelos mais conservadores.
“A estratégia das igrejas,
pelo menos no caso da Igreja Católica romana, consistia em definir esses temas
como essencialmente morais, de modo a impedir que fossem incluídos na pauta
política. Foi a pressão de movimentos sociais, notadamente feministas e gays,
que trouxe esses temas para a agenda política”, lembra.
“Agora, a estratégia é
outra: já que o debate é inevitável, trata-se de mantê-lo restrito ao âmbito
das autoridades eclesiásticas, como se elas de fato representassem o consenso
de suas igrejas. Trazer esses temas para um debate amplo e honesto, na
sociedade, só trará benefícios para o Estado e para as próprias igrejas, que
serão levadas a formar a convicção de seus adeptos.”
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