Como a ciência fica fantástica e se aproxima da religião



Apesar de a cultura racionalista e logocêntrica ocidental contrapor ciência e religião como formas antagônicas de conceber o mundo, o discurso da mídia constrói representações de ciência que se aproximam das representações de religião.

"O antagonismo na prática científica e religiosa é tomado como pressuposto não porque realmente existam diferenças que separem os dois campos, mas porque ambos têm a pretensão de deter a verdade," explica a pesquisadora Daniella Rubbo, que realizou um estudo detalhado sobre o assunto juntamente com a professora Maria José Coracini, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Daniella analisou como a mídia, principalmente a TV, trata a ciência de maneira meio mistificada, sacralizada. 

"O recorte temporal foi de um ano, em que colhi 104 reportagens. Como são muitas as matérias de ciências, eu decidi por um recorte mais específico, trabalhando apenas com as de medicina, que têm grande repercussão e são as mais comentadas pelo público leigo," contou ela, acrescentando que escolheu as matérias do programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, um dos programas de maior audiência e impacto na população.

Fé irrestrita na ciência

Daniella verificou diversos pontos de aproximação entre medicina e religião, que agrupou em três grandes eixos: "ascese", "promessa" e "sacralidade", todos eles unidos pela necessidade de "fé".

"Chamo de ascese o eixo em que o médico é colocado como alguém que precisa fazer sacrifícios pessoais, doar algo de si próprio para exercer esta profissão. Há o eixo da promessa de uma vida melhor, desde que o espectador confie e se entregue às regras da medicina. E vemos a marca fortíssima da sacralização, quando até mesmo para o mais desesperançado a medicina promete a salvação, através de um novo procedimento médico e do avanço da ciência," explica a pesquisadora.

Contrariamente ao que normalmente se apregoa sobre as "verdades científicas", a pesquisadora acrescenta que esses três eixos têm como exigência comum a fé irrestrita no conhecimento médico, o que representaria um quarto laço entre ciência e religião.

"Um aspecto curioso é que, embora a construção desta visão de fé seja a marca do Fantástico, ao observarmos cientificamente o corpus da pesquisa, percebemos que o próprio médico acredita muito naquilo que está falando," relata ela.

Médico sacerdote

Um colaborador fixo e que exerce grande influência sobre os telespectadores é o médico Dráuzio Varella que, na opinião da pesquisadora, ganha no programa de TV uma imagem abnegada, competente e esforçada.

"Sua figura remete à de um sacerdote oferecendo a salvação. Há uma matéria versando sobre pesquisas de novos medicamentos em que ele aparece num barco, atravessando o rio Amazonas, como um missionário que abandona todo o conforto da cidade e coloca muito de si para ir atrás dessas curas," comenta.

Daniella Rubbo acrescenta que a cena é do quadro: "É bom pra quê?", série limitada de reportagens produzidas sob o comando de Varella e que se propunha a discutir o uso de produtos caseiros, como plantas e chás, no tratamento de doenças. 

"O nome do quadro sugere que a reportagem promoverá uma reconciliação entre ciência e senso comum. Porém, essa reconciliação é aparente, já que o próprio apresentador veiculará a segurança do procedimento médico-científico, 'Do tubo de ensaio ao balcão da farmácia'. Ou seja, as plantas só serão úteis e seguras se passarem pelo crivo da ciência."

Segundo a autora da tese, ainda que o Fantástico conceda espaço inclusive para manifestações de resistência à hegemonia do conhecimento científico, seus dizeres acabam reafirmando a verdade científica em detrimento de outras possibilidades.


"Esse viés do programa está presente na maior parte do material que analisamos, mas se faz particularmente importante quando tratamos da participação de Dráuzio Varella. Por ocupar a dupla função de médico e de comunicador (fazendo-se por vezes de repórter), tende a diminuir a tensão entre o poder exercido pela ciência e o exercido pela mídia, emprestando ao cientista a visibilidade da mídia e ao jornalista, a credibilidade da ciência," conclui a pesquisadora.



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