'É perigoso colocar na legislação algo transmitido por religiões', diz jurista em direito penal - Por Cláudia Cardozo



O professor e jurista Manuel Monteiro Guedes Valente, de Portugal, esteve em Salvador no último mês de setembro para participar do Seminário do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Na capital baiana, Manuel Valente proferiu a conferência de abertura do evento sobre os desafios do processo penal no Estado Democrático de Direito em uma sociedade que vive na era digital. 

O jurista é doutor em direito pela Universidade Católica Português, diretor do Centro de Investigação, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, da Universidade Autônoma de Lisboa e investigador colaborador do Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar da Escola de Direito da Universidade de Minho, entre outros. 

Em sua passagem por Salvador, o jurista concedeu uma entrevista ao Bahia Notícias e falou sobre a discussão do processo penal no mundo. Manuel Valente afirma que o isolamento das pessoas, apesar de estarem conectadas pela rede mundial de computadores, e os comportamentos que ali insurgem, pode levar ao perigo de se ter um estado de “emergencial”, um “estado de exceção”. 

Para o professor, o grande desafio de hoje me dia é do “processo penal resistir a essa tentação, de desvirtualizar e desnudar o ser humano, para desvirtualizar o sistema”. 

“Nós temos que melhorar o sistema processual penal, cada vez mais, porque tem crescido o apelo à Justiça. Por que a democracia depende muito da justiça. Não há justiça sem democracia, não há democracia sem justiça. E isso é uma dialética” afirma o professor. 

Manuel Valente diz que a justiça apareceu “para afastar a violência, para afastar a vingança”. O jurista afirma que o Estado Democrático de Direito sofre diversas lesões quando o processo penal não é respeitado. 

Um dos problemas, segundo Valente, é o pensamento conservador e embasado em preceitos religiosos, que impedem garantias fundamentais do ser humano. 

"É altamente perigoso quando queremos colocar na legislação aquilo que nos é transmitido por determinadas religiões, por determinadas orientações religiosas". Leia a entrevista completa.

Bahia Notícias: O senhor foi convidado para realizar a conferência de abertura do Seminário do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) para falar sobre os desafios do processo penal no Estado Democrático de Direito na sociedade internético-personocêntrica. Poderia nos explicar como é essa discussão e importância no cenário mundial?

Manuel Valente: Falo sobre o processo penal no Estado de Direito Democrático e os problemas que acontecem hoje com a internet, principalmente na área de redes sociais. O que eu pretendi foi apenas desvirtualizar ou tentar criar subsistemas de processo penal que ponham em causa o Estado Democrático de Direito. Assim também como abordar os perigos da auto-codificação e auto-isolamento do ser humano, mesmo que as pessoas tenham uma noção de que estejam em redes de amigos, redes de ligações, mas elas estão muito sozinhas. Elas precisam estar atentar aos perigos desta mutualidade hoje em dia, que é de ocorrer a teoria de ensinar para implementar o estado chamado de emergência, o estado de exceção em que as garantias processuais penais de direitos e outras garantias fundamentais pessoais. Eu verifiquei várias legislações processuais penais, a nível mundial, e vários países em que estes direitos legais e de garantias processuais penais são restringidos, alguns para determinados cidadãos e para quem comete determinados tipos de crimes, como terrorismo, tráfico de seres humanos, de órgãos, de armas, corrupção e lavagem de dinheiro. Para alguns defensores, estas pessoas não podem ter as garantias processuais nem os direitos que qualquer outro ser humano que comete outro tipo de crime tem. Eu considero que todos são seres humanos e, como todos são seres humanos, todos estão tem os mesmos direitos, as mesmas igualdades e as mesmas garantias. E o grande desafio que se coloca hoje, é o processo penal resistir a essa tentação, de desvirtualizar e desnudar o ser humano, para desvirtualizar o sistema. Nós temos que melhorar o sistema processual penal, cada vez mais, porque tem crescido o apelo à Justiça. Por que a democracia depende muito da justiça. Não há justiça sem democracia, não há democracia sem justiça. E isso é uma dialética. Mas há sempre um ponto fundamental: a justiça apareceu para afastar a violência, para afastar a vingança. E os novos subsistemas ou os novos ventos doutrinares e científicos vão ao sentido de opor uma violência estatal. O processo penal funciona como um limite do poder, do poder arbitrário discricionário.

BN: Quais são as principais lesões que a democracia pode sofrer quando o processo penal não é respeitado?

MV: Sofre por várias razões. Sofre porque os princípios e as regras em um Estado Democrático são colocados em causa, o próprio estado é colocado em causa, e é colocado em causa não só quando não há justiça, quando não se realiza justiça, mas é tão ou mais colocado em causa quando para se realizar esta ida a justiça, se admite os recursos a todos os meios, todas as técnicas e mais algumas e restringir os direitos a garantias dos seres humanos. Outro ponto é por uma causa ética e os direitos fundamentais do Estado. O Estado tem um contrato social que aparece para substituir a vingança privada, para substituir o conflito entre os privados, e se assume como o grande guardião de toda a comunidade e como aquela que está pronta para realizar a justiça dentro do quadro dos princípios, ações e regras do Estado de Direito. Mas mais do que isso, não só do Estado de Direito, Estado de Direito material, social e democrático que sofre de duas formas: sofre quando não há resolução da justiça - e muitas das vezes não há resolução da justiça, porque os atores judiciários atuaram mal, porque atuaram de forma ilegal, atuaram de forma ilícita - e ai a democracia é totalmente colocada em causa. E sofre também quando se quer, para combater essas deficiências, e diminuir determinados direitos, legitimar essa atuação por parte dos atores judiciários. E também através da promulgação de leis especiais, chamadas de leis de exceção ou emergência, que legitimam esta atuação. E a democracia não aceita esse quadro normativo funcionalista e finalista que alguns querem implementar e põe em causa o que é fundamental hoje, que são as relações, e as relações humanas são o centro da confiança.

BN: Como é a discussão em nível mundial e internacional do direito do processo penal? Qual seria o maior problema hoje que a comunidade internacional discute sobre esse tema?

MV: O principal problema é a confusão que existe, em primeiro lugar entre os normas conceituais e epistemológicos. Em segundo lugar, outro grande problema que nós temos, é querer resolver através do processo penal deficiências que existem no quadro da formação dos magistrados, do Ministério Público, promotores, dos policiais. Outro grande problema que nós temos é o Poder Político na forma de utilizarem a legislação processual penal, em especial, no sentido de governança, para alcançarem votos e terentarem demonstrar que quando mais ferramentas, instrumentos e meios de investigação, prevenção e execução criminal, menos crimes vamos ter e mais democracia vamos ter. Os estudos mostram totalmente o contrário. O caminho não é esse. Primeiro: é a questão conceitual, que é preciso resolver. Segundo: é resistir a esta tentação de um caminho fácil que é alterar a lei, dando as polícias ou juízes poder ilimitados e não controláveis - que é altamente perigoso- assim como tentar diminuir este discurso retórico palpiteiro, tipicamente utilizado pelos chamados de “formadores de opinião”, que tem uma intenção por traz de, aos poucos, repor um Estado, que é tudo, menos Estado Democrático.

BN: No Brasil, nosso Código do Processo Penal é de 1941, da época do fascismo que, até então, não foi revisto. Há uma tendência que no mundo os códigos sejam revistos, que eles sejam mais nas linhas de garantia dos direitos humanos?

MV: É sim, sempre que há uma constituição democrata, - como foi o caso de Portugal em 1976, o do Brasil em 1988 - não só o Código Penal assim como o Código de Processo Penal são atualizados para haver uma identificação entre o quadro infra-constitucional, penal e processual, penal-processual e a própria constituição. Tem de haver uma identificação das leis de valor infraconstitucional com a constituição. E esse é o caminho, é haver novos códigos. Em Portugal, em 1986, teve um código penal novo, um código penal mais humanista, sendo que mais no princípio humanista e no princípio da igualdade, no que diz respeito os direitos das garantias dos princípios da constitucionalidade também, isso é aspecto fundamental. Em 1987 teve um Código de Processo Penal novo. Não obstante a isso, em 1977 teve uma lei que alterou vários preceitos do processo penal de 1929, uma lei de 1945 e outra de 1974, no sentido de colocar as normas processuais penais de acordo com a constituição. Um dos perigos que existe é quando não se opta pelas reservas dos códigos, pelos códigos atualizados ou novos códigos, porque as realidades são muitas, a opção que tem existido é pela legislação avulsa. A legislação avulsa entra em contradição, muitas das vezes – a exemplo aqui no Brasil - que acontece de termos várias leis, criadas a partir de vários conceitos. Em uma lei, é um conceito, em outra lei, o conceito já é outro, e assim, os meios também começam a entrar em conflito. Como no caso do crime organizado, que pode ser formado por uma, três, quatro ou cinco pessoas, seguindo também um pouco a lógica das Nações Unidas. É preciso que se diga que isso não é só no Brasil. É mundial essa esquizofrenia legislativa, que também põe em causa o Estado Democrático, pois enfrenta um problema grave que é a violação do princípio da segurança jurídica. O problema do Brasil atualmente é de ter esta legislação avulsa. É pulverização da legislação avulsa processual penal é que altamente perigosa. A Europa também está sofrendo o mesmo. Os países europeus então optando não pela reserva do código, mas sim por criar cada vez mais ou aprovar determinados instrumentos, aprovar a intervenção penal através da legislação avulsa. Isso é um perigo muito grande porque vai criar conflitos entre as leis, conflitos entre as leis e os códigos, conflitos entre leis, códigos e a constituição. Ter muitas leis não quer dizer que temos leis melhores, o fato de termos muitas leis não quer dizer que temos um direito melhor, o fato de termos muitas leis não quer dizer que temos mais justiça, que dizer que não temos democracia.

BN: O Brasil tem um parlamento composto por bancadas conservadoras e ligado a segmentos religiosos, e isso tem sido um entrave nas discussões de temas importantes e polêmicos. Quais são os reflexos desse conservadorismo no ato de legislar no processo penal?

MV: O grande problema é quando nos trazemos para ciência conceitos, ideias religiosas ou pensamentos religiosos. Os cientistas chamados para orientar o direito têm se despir da sua profissão. Se for policial, não pode ter um discurso policial, se é do ministério público, promotor público tem de despir da farda, se é juiz também tem de despir e tem que construir um código que seja bom, ou seja o melhor para a sociedade do Brasil, para o povo brasileiro. É altamente perigoso quando queremos colocar na legislação aquilo que nos é transmitido por determinadas religiões, por determinadas orientações religiosas. Eu costumo dizer que o direito tem de assumir uma postura ética. Claro que a postura ética tem por trás a moral, mas não pode a moral se transformar em moralismo, em fundamentalismo, e transformar este fundamentalismo em lei. Aí não só está em causa só o Estado Democrático e a democracia, está em causa toda à sociedade e qualquer sistema. Quando se traz para dentro do direito a moral, com interferência da religião, põe em causa não toda a comunidade, mas põe em causa a democracia no Estado. É uma confusão cientifica muito grande, temos que despir as nossas vestes e olharmos para a realidade, olhamos para o país que temos. O Brasil é um país continental, é um país enorme e não podemos querer colocar no Brasil, por exemplo, aquilo que se faz em Portugal, porque Portugal é menor que o estado da Bahia. Nós não podemos fazer isso, temos de olhar e colocar na lei uma resposta adequada aos problemas da sociedade. Cada um tem que saber qual é o seu papel. A partir do momento que trazemos a religião para o discurso jurídico, ou melhor, para o discurso cientifico jurídico, já não estamos mais falando do discurso científico, estamos falando do discurso que pretende ser científico, mas é mais religioso do que científico.

BN: E teria algum modelo de Código de Processo Penal que os países deveriam seguir?


MV: É o modelo do ser humano. Quando vamos discutir um novo código do processo penal, uma nova legislação penal ou processual tem de olhar em cima da mesa e colocar o ser humano, porque as leis são feitas por seres humanos, são aplicadas por seres humanos e aplicadas sobre seres humanos. Enquanto as decisões não colocarem isto nas suas mentes para trazerem uma legislação que respeite o ser humano, nós nunca teremos um modelo de processo penal que seja, não o mais perfeito, mas o melhor possível para sociedade.




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