Religião reflexiva – Por Frei Bento Domingues
As sociedades
modernas foram fundadas sobre a excomunhão política de qualquer referência
religiosa. Embora com vários desenhos, o cenário está identificado.
A institucionalização da
autonomia da esfera secular fez-se para suspender a intolerância e a violência
associadas às guerras de religião e ao poder absoluto em nome de Deus. A
intervenção política ficaria, em princípio, entregue à responsabilidade de
todos os cidadãos. Pertencia-lhes escolher as instituições em que desejavam
viver.
Os indivíduos poderiam ter convicções religiosas, mas estas deveriam
cingir-se ao domínio privado e não poderiam ser invocadas na configuração das
instituições próprias do agir político ou militar. Era urgente mandar para a
reforma o “Deus dos Exércitos” do Antigo Testamento, do regime de Cristandade e
do Islão.
Nesse terreno brotaram várias
expressões de crenças ateístas, invocando a desalienação religiosa. Diz-se
que o patrocínio de alguns conhecidos “mestres da suspeita” lhes emprestou
credibilidade. Deus morria para se poder assistir ao nascimento de uma
humanidade confiante nas suas próprias capacidades, sem muletas. A investigação
da natureza e das suas leis não precisava da hipótese Deus.
O resultado não foi, em tudo,
glorioso. Em nome de um futuro sem heranças obscurantistas, desatenderam-se
dimensões essenciais da vida humana.
As consequências dessa miopia foi
a perda de muita memória cultural criadora e o esquecimento da origem cristã de
muitos conceitos e valores fulcrais da modernidade. Precisavam, certamente, de
ser libertados da dominação das Igrejas e de se tornarem parte de uma saudável
laicidade do espaço público livre. Mas um espaço público que recusa a
participação no debate democrático, das diferentes correntes culturais,
filosóficas, éticas e religiosas, esquece a complexidade da condição humana e
arrisca-se a cair nas piores armadilhas fundamentalistas político-religiosas,
como está à vista.
A recente e presente debilidade
cultural de muitos dirigentes e decisores europeus favorece o que deveria
evitar e não fez nem faz o que é da sua responsabilidade. A falta de sabedoria
e de ética política e social mata a vocação
europeia.
J.-M. Ferry, depois de um longo
percurso filosófico, marcado pela tradução para francês da obra do filósofo
alemão, Jürgen Habermas e de contributos essenciais para configurar e repensar
o projecto europeu, desenhou o tripé ético e espiritual para a
respiração cultural da política numa sociedade contemporânea: recuperou a noção
decivilidade, como princípio de socialização mediatizado pelo reconhecimento
das diferentes sensibilidades; conjugou-a com a delegalidade, isto é, com a
limitação da violência social ou política pela mediação do direito e pela publicidade,
concebida como comunicação de experiências sociais e das decisões na discussão
argumentada.
As noções deste tripé precisavam
de ser esmiuçadas para testar o seu alcance prático. Neste momento,
interessa-me sobretudo a sua última proposta, a religião reflexiva [1].
A preocupação de J.-M-Ferry é uma
ética para as relações internacionais. É alarmante a situação política do mundo
actual e do estado primitivo das relações diplomáticas. Trabalha na construção
de uma ética reconstrutiva da reconciliação que complete a ética
argumentativa do entendimento mútuo que tem desenvolvido, pois é urgente abrir
uma nova época na história dos povos e das suas recíprocas relações.
A religião reflexiva procura
reformular os imperativos mais universais da moral kantiana, à luz do que lhe é
mais íntimo, mas ainda pouco explicitado: a proposta de uma filosofia da
actualidade histórica.
Para o conseguir desenvolve uma questão decisiva para o judeo-cristianismo
e para a modernidade europeia: o laço da filosofia, da teologia e da
história. Filosofia e teologia não são objectos de conhecimento só para
eruditos. São instrumentos de conhecimento para todos. A ética reconstrutiva é
uma ética da responsabilidade que lança os fundamentos de uma filosofia da
história.
Temos de procurar apreender e
reconstruir o sentido na história universal, sem procurar nem postular um
sentido da história universal.
Se, neste momento, a voz de um
papa se libertou, de forma clara e explícita, do espírito de dominação
eclesiástica e assume a causa dos oprimidos, deve haver liberdade para, no
espaço público, escutar e debater esta voz, para que ninguém a tente anexar ou
manipular. Os temas não são apenas de interesse mundial e local. O que
Bergoglio anda a fazer é uma convocatória de todos os seres humanos de boa
vontade, sejam ateus, laicos ou religiosos, para o que a todos diz respeito: um
futuro de paz e cooperação de onde ninguém seja excluído. Não havendo, nesta convocatória,
nada que seja para proveito próprio ou de grupo, talvez mereça mais atenção do
que uma assembleia de negócios.
O prémio Nobel da Paz perdeu-se
na guerra. Se quiser reencontrar a sua missão, talvez tenha, com o Papa
Francisco, uma bela oportunidade de se reabilitar.
[1] J. – M. Ferry, La
religion réflexive, Paris, Cerf, 2010.
Fonte: http://www.publico.pt
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