Resistência de protestantes à ditadura civil-militar no Brasil foi varrida para debaixo do tapete
No imaginário nacional
contemporâneo, o golpe militar de 1964 no Brasil marca um mergulho no período
conhecido (inclusive nos livros didáticos de hoje) como "os anos de
chumbo”.
Contrariando essa percepção atualmente mais dominante, mas nem por
isso livre de ameaças, à época, muitos foram os setores da sociedade
brasileira a saudar o golpe como uma espécie de salvação para o país.
Entre
estes estiveram diversos grupos religiosos como os protestantes, cujos líderes
conservadores propagavam a ideia de que o regime autoritário seria, na verdade,
"uma intervenção divina para salvar o Brasil do comunismo”.
É o que
explica o pastor emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil, o mineiro
Zwinglio Dias, 73 anos.
Além de liderança religiosa,
Zwinglio é teólogo, professor de Ciências da Religião, na Universidade Federal
de Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, associado da Koinonia e editor da
revista eletrônica: "Tempo & Presença Digital”.
É também o organizador
de: "Memórias Ecumênicas Protestantes”, livro com lançamento marcado para
esta quinta-feira, 11 de dezembro, no Rio de Janeiro, contando histórias da
resistência, mas também da colaboração destes religiosos durante a ditadura.
Zwinglio é ainda o principal entrevistador no documentário: "Muros e
Pontes: o Protestantismo na Ditadura”, dirigido por Juliana Radler, a ser
lançado também no dia 11/12.
O pastor escreve com conhecimento
de causa: foi preso no Doi-Codi, viveu no exílio em países como Alemanha e
Uruguai e teve seu irmão, o jovem Ivan Mota Dias, assassinado pela repressão no
início dos anos 1970.
Zwinglio destaca que tanto a resistência quanto a
colaboração foram motivadas por diferentes visões sobre como praticar a fé.
Para ele, a salvação de almas tinha, necessariamente, a ver com a transformação
social, o que lhe rendeu a expulsão do Seminário Presbiteriano, em 1962.
O
contraponto ao conservadorismo encontrou apoio no Movimento Ecumênico, no qual
os envolvidos "repudiaram a quebra da ordem democrática e se opuseram, de
variadas formas, ao regime autoritário”, conta.
Zwinglio tem certeza de que novas
gerações de diferentes igrejas e que pouco sabem sobre a história da
resistência dos jovens protestantes de ontem se sentirão sensibilizadas com as
revelações trazidas por "Muros e Pontes” e "Memórias Ecumênicas
Protestantes”.
O pastor não tem dúvidas de que tanto o filme quanto o livro
ajudam a construir novos imaginários não só sobre o passado dos protestantes
brasileiros, mas também sobre o presente e o futuro.
Confira a entrevista:
Você imagina que os próprios
protestantes, em geral, tenham ideia de que membros de suas igrejas um dia se
engajaram de forma tão visceral na luta pela democracia no país?
Posso afirmar, com segurança, que
a maioria dos protestantes/evangélicos quase nada sabe a respeito. Isso por uma
razão muito simples: a imensa maioria das igrejas evangélicas, conduzidas à
época por representantes de seus setores mais conservadores, saudou o golpe
civil-militar como uma "intervenção divina” para "salvar o Brasil do
comunismo”. Do ponto de vista institucional a história do envolvimento de
setores evangélicos, especialmente a juventude, na luta em favor da democracia,
foi "varrida para baixo do tapete” e ocultada das novas gerações. A
permanência, por cerca de duas décadas, de lideranças autoritárias no
"comando” das igrejas não permitiu nem a circulação de notícias a respeito
e muito menos a discussão livre sobre os acontecimentos sociopolíticos que
marcaram esse período no país.
Há relação entre a postura
ecumênica de determinadas figuras e a atitude de resistência contra a ditadura?
Com certeza! O ecumenismo
implica, antes de tudo, em respeito e acolhimento ao outro/a, ao seu direito de
ser e permanecer o diferente que ele/a é. Trata-se de uma postura que pressupõe
a democracia, a garantia do direito à cidadania para todos/as. Nesse sentido
todas as pessoas envolvidas com o movimento ecumênico no Brasil repudiaram a
quebra da ordem democrática e se opuseram, de variadas formas, ao regime
autoritário.
Você acha que as memórias
recuperadas pelo projeto podem contribuir para a criação de novos imaginários
sobre os protestantes nos dias de hoje? Ou seja, novos repertórios, novas
figuras de referência…
Quanto a isso não tenho dúvidas!
Penso que parcelas significativas das novas gerações, de diferentes igrejas, se
sentirão sensibilizadas com as revelações trazidas à luz tanto pelo
documentário quanto pelo livro, produtos desse projeto de recuperação da
memória da história dos protestantes brasileiros. Os testemunhos dos jovens
engajados nas lutas atuais mostram isso com clareza.
Os jovens protestantes e
ecumênicos de hoje também têm lá seus desafios, por exemplo, diante de um
Estado em que os avanços no campo da segurança são muito inferiores àqueles
promovidos nos últimos anos em outras áreas. A violência tem se expressado,
sobretudo, nos homicídios dos jovens. Como você vê as lutas atuais da
juventude? Como os jovens religiosos têm interferido nesse tipo de questão e
que campo encontram entre os religiosos, de forma geral?
Os desafios que os jovens, de
maneira geral, têm de enfrentar, hoje, são muitos e de não pequena monta. Um
dos eixos de atuação da Rede Ecumênica de Juventude é, precisamente, esse
relativo ao morticínio da juventude, especialmente da juventude pobre e negra.
Em algumas organizações religiosas, isso já se tornou um tema que articula e
organiza o trabalho da juventude. Mas é preciso lembrar, no entanto, que se
trata ainda de mobilização e ação de grupos minoritários. A grande maioria das
igrejas e dos movimentos religiosos massivos, sujeitos à manipulação midiática
por parte de lideranças comprometidas com o status quo reinante, não está
comprometida com essa triste realidade. A articulação de Rede de Juventude já
se deu conta de que não pode contar com a maioria das estruturas religiosas,
que estão mais voltadas para si mesmas do que para a sociedade e seus
problemas, a quem deveriam servir. Assim, se organizam enquanto jovens e
procuram sensibilizar a juventude desses segmentos a partir de seus problemas e
anseios, com relativo êxito.
A correspondência entre justiça
social e os princípios religiosos é ponto pacífico entre os personagens do
livro e do filme. O que falta, hoje, para que essa atitude diante da fé adquira
mais dominância?
Vivemos, hoje, num contexto muito
diferente daquele experimentado por esses personagens. Como naquele tempo,
também hoje, as igrejas e organizações religiosas refletem diretamente o clima
predominante na sociedade. A ausência de discussão sobre temas políticos e
sociais, a ênfase no individualismo, a crescente despolitização, a
desqualificação dos esforços de ação coletiva, a criminalização dos movimentos
sociais, tudo isso se refletiu, ao passar dos anos, na vida das igrejas,
reforçando uma vivência religiosa voltada apenas para os interesses individuais
das pessoas em flagrante contradição com os valores do Evangelho. A vivência da
fé, especialmente da fé cristã, perdeu sua dimensão essencial, que é viver com
e para os demais. Essa experiência de compartilhamento da vida, que só se
alcança na vivência comunitária, aos poucos foi desaparecendo. As igrejas,
pouco a pouco, foram perdendo suas características de serem espaços de
exercício da solidariedade e da comunhão. Cada vez mais os templos são maiores,
congregando multidões de indivíduos isolados uns dos outros, que buscam, na
solidão de suas incertezas, um suposto milagre para a solução de seus
problemas. O martelete midiático, repetindo em roupagem religiosa os valores do
mercado, reforça, permanentemente, que essa é a única solução. Somente a
recuperação da dimensão perdida da comunhão entre as pessoas, o exercício pleno
da solidariedade é que permitirá, novamente, uma vivência profunda da verdade
de toda fé.
Fonte: http://site.adital.com.br
Comentários