“Terrorismo islâmico na Europa resulta de clivagem civilizacional” - Por Filipe d’Avillez


Em entrevista à Renascença, Manuel Braga da Cruz sustenta que pode e deve haver limite para a liberdade de expressão, uma vez que as ofensas à religião ferem “a afectividade mais íntima dos outros”.

O sociólogo Manuel Braga da Cruz considera, em entrevista à Renascença, que os acontecimentos de Paris "decorre de clivagens civilizacionais" e que a Europa e o Islão têm um problema de relacionamento, "um problema que não está resolvido".

Noutro plano, o antigo reitor da Universidade Católica Portuguesa sublinha que "a liberdade de expressão é uma liberdade fundamental, essencial, mas não é a única liberdade e tem de se compatibilizar com as outras", sendo uma delas "a liberdade religiosa". 

Pode e deve haver limite para a liberdade de expressão, uma vez que as ofensas à religião ferem “a afectividade mais íntima dos outros”, defende.

A Europa já passou antes por vagas de terrorismo, como das Brigadas Vermelhas, ETA, e muitas outas. Esta ameaça é diferente?

O que se passou em França representa uma novidade em relação ao terrorismo que a Europa tinha conhecido até hoje. O terrorismo que a Europa tinha conhecido era um terrorismo interno, que decorria de clivagens ideológicas e sociais.

Esta expressão do terrorismo que aconteceu em França decorre de clivagens civilizacionais, isto é, é um terrorismo perpetrado por pessoas que se reivindicam de uma civilização diferente e que atacam valores fundamentais da civilização que a Europa faz sua. É um atentado terrorista com um objectivo bem preciso, que é o visar a liberdade de expressão.

Isto acontece porque nós estamos a assistir, há muito, àquilo a que podemos chamar a desnacionalização dos Estados. Outrora, os estados eram nacionais: os alemães viviam na Alemanha, os japoneses no Japão... Hoje, o que acontece é que quem vive na Alemanha, quem vive em Espanha, Itália ou França não são apenas os povos que se identificaram com esses estados, não são apenas os alemães, espanhóis, italianos ou franceses.

As sociedades da Europa tornaram-se sociedades multinacionais, multiculturais e multi-civilizacionais. Portanto, há hoje novas clivagens nas sociedades europeias. Agora, são formas de terrorismo de clivagem civilizacional e que tendem a exprimir diferenças de civilização.

Este terrorismo pretendeu atingir valores fundamentais da civilização e cultura europeias, nomeadamente a liberdade de expressão. É um terrorismo que se reclama de uma religião, eu creio mesmo que há aqui uma instrumentalização da religião, para efeitos que são manifestamente políticos, muito mais que religiosos, mas há uma invocação de factores religiosos.

A Europa conseguiu ultrapassar essas ameaças antigas. Como é que se vence esta?

Este acto bárbaro veio evidenciar que a Europa tem um problema de tratamento com o Islão e o Islão tem, por sua vez, um problema de relacionamento com a Europa. Há aqui um problema que não está resolvido. As clivagens sociais foram razoavelmente ultrapassadas, as clivagens territoriais foram também razoavelmente ultrapassadas, este problema do conflito de civilizações, dentro dos próprios estados europeus, não foi ainda suficientemente considerado e resolvido. Está em aberto e é um problema que merece profunda reflexão.

Desde logo, há um problema do Islão com a Europa, que decorre de uma tentativa de “guetização” de algumas civilizações imigradas para a Europa. Isto é, uma recusa de integração e uma preocupação simultânea de preservação da identidade.

Por outro lado, por parte da Europa existe uma certa dificuldade em enquadrar essa imigração de outras civilizações, não só em relação ao Islão, mas, sobretudo, em relação ao Islão, que é o maior problema que, deste ponto de vista, tem a Europa hoje.

Disse que há um claro ataque aos valores fundamentais da Europa, como a liberdade de expressão. Mas ainda agora, na sua viagem ao Sri Lanka e Filipinas, o Papa disse, por exemplo, que "não se pode provocar ou insultar a fé dos outros", o que contraria aquilo que têm dito quase todos os líderes europeus em relação ao ataque do Charlie Hebdo. Há espaço para impor limites à liberdade de expressão no que diz respeito à religião?

A liberdade de expressão é uma liberdade fundamental, essencial, mas não é a única liberdade e tem de se compatibilizar com as outras. Uma delas é a liberdade religiosa.

Liberdade religiosa significa que ninguém é obrigado a professar uma confissão ou uma fé à força, mas ninguém deve ser impedido, simultaneamente, de professar uma fé, uma crença e viver uma religião, se o deseja. Isso pede um principio de tolerância, que significa que, no mesmo espaço público, tem de haver o respeito pelas convicções dos demais, para que haja uma sã convivência civil.

Desse ponto de vista, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa não podem deixar de respeitar a liberdade religiosa. Não está em causa a possibilidade da crítica. Está em causa o respeito, que é fundamental e que é compatível com a crítica, o respeito pelas convicções religiosas dos outros.

A adesão a uma fé não é uma adesão meramente cognoscitiva, é uma adesão emocional. Quando se acredita, não se acredita apenas com a cabeça ou com a inteligência, acredita-se com o coração. Ferir as convicções religiosas é ferir a afectividade mais íntima dos outros e, aqui, impõe-se que haja respeito recíproco e, portanto, é fundamental que o pensar a liberdade de expressão não possa deixar de ter em mente e considerar também o respeito pelas convicções religiosas de todos aqueles que vivem no mesmo espaço público. Desse ponto de vista, estou inteiramente de acordo com as considerações feitas pelo Papa.

Considera, então, que o Charlie Hebdo ia longe de mais nas caricaturas que fazia, não só relativas ao Islão, mas a outras religiões também?

Certamente que sim, mas nada justifica este ataque ao Charlie Hebdo, o que não quer dizer que o Charlie Hebdo tivesse um comportamento exemplar ou isento de críticas. Com certeza que não.

Agora, uma coisa é o facto de uma actuação de um órgão de comunicação ser merecedor de crítica, outra coisa é ser alvo deste bárbaro atentado que só pode merecer o repúdio inequívoco de todos os que amam a convivência e a democracia e o respeito mútuo.






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