Portugal: um mercado religioso



A grande novidade destes últimos quarenta anos em democracia foi o aparecimento das denominações neo-pentecostais (Maná e IURD) que alteraram o equilíbrio de forças no campo protestante

EM 1904, foi inaugurada em Lisboa, no nº 54 da Rua Alexandre Herculano, a sinagoga Shaaré Tikva (Portões da Esperança, em hebraico). Naquela época, a lei proibia que as fachadas dos templos não católicos dessem para a rua. Era permitida a existência de outras religiões desde que aceitassem um lugar de subalternidade na sociedade portuguesa. Hoje, mais de cem anos depois, os locais de culto das mais variadas denominações estão em todo o lado. 

Os edifícios não têm de ser discretos e, muitas vezes, os cultos anunciam-se em enormes lonas publicitárias, painéis coloridos ou telas que cobrem os vidros. De um sistema que era, na prática, de monopólio confessional, passámos para o limiar de numa nova época; como afirmou a socióloga Helena Vilaça, Portugal está a transformar-se num mercado religioso.

A grande novidade destes últimos quarenta anos, quarenta anos vividos em democracia, foi o aparecimento das denominações neo-pentecostais (Maná e IURD) que alteraram significativamente o equilíbrio de forças no campo protestante e, sobretudo no caso da IURD, optaram inicialmente por uma estratégia de confronto com os poderes instituídos, políticos e religiosos. 

Ao mesmo tempo, cresceram exponencialmente, perto dos grandes centros urbanos, captando fiéis de outras denominações e chegando a outros que estavam afastados de qualquer forma de religião organizada. Há quem considere que este tipo de movimentos foi bastante prejudicial para as outras igrejas cristãs devido à falta de bases teológicas e doutrinárias. 

Mas esse é apenas um dos olhares possíveis sobre este fenómeno. Com o país a transformar-se num mercado religioso de livre concorrência, estas igrejas, de acordo também com Helena Vilaça, demonstraram “uma grande capacidade de adaptação aos tempos actuais”, estando “muito atentas às necessidades locais, construindo templos próximos das populações que mais necessitam”. Entre 1991 a 2011, o número de portugueses que se identificam com outras religiões que não a católica passou de 150 mil para 350 mil.

No entanto, ao crescimento e visibilidade destes movimentos não tem correspondido um conhecimento mais profundo sobre os mesmos. Persistem muitos lugares-comuns, preconceitos e rótulos, alimentados pelas igrejas que se sentiram ameaçadas pelo impacto de uma nova concorrência, pelo fechamento destas comunidades que encontram na vitimização uma forma de justificação perante os seus próprios fiéis e pelo normal desinteresse que o cidadão comum tem por grupos que não sejam fonte de problemas. 

Neste livro, procurei conhecer e dar a conhecer aos outros um pouco deste novo panorama religioso, em que não se verifica apenas uma proliferação de igrejas e denominações, mas também uma maior autonomia espiritual dos indivíduos para “criarem” soluções à medida das suas necessidades. 

Sendo um campo tão vasto, optei por seguir dois trajectos pessoais que, não sendo representativos de uma parte significativa da população (são, de certa forma, crentes incomuns), nem sequer das minorias religiosas, funcionam como prova das profundas mudanças que se registaram em Portugal no campo da religião nos últimos anos.

 Apesar de me interessar mais a dimensão humana destas histórias, considero muito positiva esta evolução para uma espécie de mercado religioso, em que cada denominação é livre de oferecer os seus “produtos” e são os “consumidores”, e não qualquer entidade externa, a certificá-los. 

A diversidade de oferta religiosa também é fundamental para o equilíbrio de poderes, obrigando a que o Estado seja cada vez mais imparcial e equidistante nesta matéria, não privilegiando nenhuma igreja em detrimento das outras. 

Essa equidistância do Estado, um Estado verdadeiramente laico, que não deve ser confundido com um Estado anti-religioso, é garante do pluralismo que é, por sua vez, um dos pilares de uma sociedade livre em que cada um pode optar pela sua confissão religiosa (ou por não ter nenhuma) sem que, em resultado da sua escolha, tenha de se sentir um cidadão de segunda.




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