Baseado em relatos pessoais, livro resgata história da imigração judaica no Brasil - Por José Tadeu Arantes
A presença judaica no Brasil é tão antiga quanto a colonização
europeia do território brasileiro.
Dois judeus teriam participado da expedição
de Pedro Álvares Cabral: João Faras, médico, astrônomo e astrólogo, que deu
nome à constelação do Cruzeiro do Sul (já conhecida, mas ainda sem
denominação), e Gaspar da Gama, apelidado “Gaspar de las Indias”, navegador,
aventureiro e poliglota, que, antes de vir à América, fora piloto de Vasco da
Gama.
Nos primeiros tempos do domínio
português, o território foi arrendado por um consórcio de cristãos-novos
(judeus convertidos ao cristianismo), liderado por Fernando de Noronha, que se
dedicou à exploração do pau-brasil. Posteriormente, premidas pelas perseguições
da Inquisição ou pelas difíceis condições de vida no Velho Mundo, sucessivas
gerações de judeus imigraram para o Brasil. (*).
Um expressivo recorte dessa longa
saga compõe o livro: O Brasil como destino: raízes da imigração judaica
contemporânea para São Paulo, da socióloga Eva Alterman Blay, professora
titular sênior da Universidade de São Paulo. A obra foi publicada com apoio
da FAPESP.
Autora e organizadora de vários
livros, Blay colocou neste um pouco de sua história pessoal, como filha de
imigrantes judeus (o pai nascido na Polônia, a mãe nascida na antiga
Bessarábia, hoje República Moldova). “Todos nós, imigrantes e filhos de
imigrantes, temos uma memória que se estende além de nossas próprias vivências.
É a memória das experiências narradas por aqueles com quem convivemos”,
escreveu.
Blay conta que começou essa
pesquisa muitos anos atrás. E, durante bastante tempo, não soube que forma dar
ao material pesquisado. “Sem associar uma coisa com a outra, eu tinha, nessa
época, sonhos recorrentes, nos quais ia para algum lugar e me perdia, não encontrando
mais o caminho de volta. Um dia, depois de ter escrito e reescrito o livro
muitas vezes, encontrei, finalmente, a forma que procurava. E nunca mais tive
aquele sonho”, disse à Agência FAPESP.
A forma encontrada pela autora
foi dar voz aos entrevistados, destacando seus depoimentos na primeira pessoa,
e valorizando a “bagagem” de cada um, uma “bagagem” peculiar, pois composta
não apenas pelas memórias da existência vivida nos países de origem, mas também
pela lembrança da vida construída aqui.
Seus 92 entrevistados provieram
de 16 países diferentes: Alemanha, Argentina, Áustria, Bielorrússia, Egito,
França, Hungria, Itália, Líbano, Lituânia, Palestina, Polônia, Romênia, Rússia,
Ucrânia, Uruguai. Ou nasceram no Brasil, filhos de pais estrangeiros. Mas, a
despeito das muitas diferenças, apresentavam três características em comum:
eram judeus, idosos e estavam aqui “para ficar”.
Destino definitivo
“Todos os imigrantes que eu havia
estudado no Brasil tinham a fantasia de, um dia, voltar para suas terras de origem.
Constatei tal fantasia nostálgica entre os italianos, os portugueses,
espanhóis. Mas não entre os judeus. E isso devido às próprias condições que os
fizeram vir para cá. A volta não estava em seu ideário. Até porque, para muitos
deles, simplesmente não havia para onde voltar. Guerras e acordos de paz de
duração temporária tinham retraçado fronteiras e redefinido o estatuto político
das regiões de origem. Para esses judeus, o Brasil era visto como o destino
definitivo”, afirmou Blay.
Muitos deles, nascidos nos
shtetlach (plural de shtetl), as pequenas aldeias de população
predominantemente judaica da Europa Oriental, com sua vida sem perspectivas,
viam no Brasil a promessa de um Eldorado. E mesmo aqueles que vieram de cidades
grandes e cultas, como Berlim ou Varsóvia, puderam desfrutar aqui de uma
liberdade muito mais evidente.
“Fugindo de situações adversas na
Europa, pogroms, serviço militar rude e escravizante, pobreza, proibição de
mobilidade geográfica, carência de direitos civis, encontraram no Brasil uma
situação incomparavelmente mais branda, porém cheia de armadilhas”, escreveu
Blay, referindo-se a um antissemitismo que, sem assumir as formas aberrantes
manifestadas no continente europeu, jamais deixou de existir no país.
A pesquisa de Blay concentrou-se
muito mais sobre a comunidade asquenazita (do hebraico ashquenazi), proveniente
da Europa, majoritariamente nas primeiras décadas do século XX, do que sobre a
comunidade sefardita (do hebraico sepharadhi), proveniente da Península Ibérica
e do Oriente Médio, cuja presença remonta aos tempos coloniais, mas que cresceu
no Brasil após a chamada “Crise do Canal de Suez”, em 1956.
Seu rol de entrevistados incluiu
figuras de todas as classes sociais, além de alguns notáveis, como o físico
Mario Schenberg (1914 – 1990), a escritora Tatiana Belinky (1919 – 2013) e a
filantropa Ema Gordon Klabin (1907 – 1994).
Filho de pais não religiosos,
Schenberg, que nasceu em Recife, iniciou seu depoimento, em 1982, dizendo não
possuir nenhum vínculo com o judaísmo e expressou preocupação com o surgimento
de uma nova “onda internacional de antissemitismo”, motivada, em sua opinião,
pela política do Estado de Israel em relação ao povo palestino.
Já Tatiana Belinky, natural de
São Petersburgo, Rússia, relatou, em 1983, o longo empenho de seu marido, o
médico psiquiatra Júlio Gouveia (1914 – 1988), um dos precursores da televisão
no Brasil, para se converter ao judaísmo. Em um evento talvez inédito no mundo,
Júlio, seu filho e seu neto fizeram juntos o Bar-Mitzvá, o ritual de entrada na
maioridade, que os meninos judeus cumprem normalmente depois de completar 13
anos (o Bat-Mitzvá, reservado para as meninas, é cumprido depois dos 12 anos).
Ema tem seu nome associado,
principalmente, à Fundação Cultural Ema Gordon Klabin, um museu com mais de
1.500 objetos de arte, e ao Hospital Israelita Albert Einstein, para cuja
construção sua contribuição financeira foi decisiva. Nascida no Rio de Janeiro,
em uma das famílias judias mais tradicionais do país, ela herdou de seu pai, Hessel,
nascido na Lituânia, sua participação na indústria de papel e celulose Klabin,
e se destacou como colecionadora de arte, mecenas e filantropa. Foi
entrevistada em 1982.
Micro História e a construção da
sociologia
Comentando estes e outros
depoimentos, Blay ressaltou o papel da história pessoal, da “micro-história”,
na construção da sociologia. “Eu prefiro isso do que fazer as grandes
generalizações. Foi um movimento que iniciamos nos anos 1980, a Maria Isaura
Pereira de Queiroz, o Aziz Simão e eu. Buscávamos valorizar o cotidiano, a vida
real, os comportamentos individuais, sempre respeitando os dados empíricos. E
fomos muito criticados na época.”
“Quando se trabalha com histórias
de vida, o cuidado a se tomar é considerar que as pessoas contam uma determinada
verdade, circunscrita ao momento em que estão relatando. Não existe a verdade.
Existe uma memória, em um determinado momento, e essa memória tem que ser
considerada no contexto”, ponderou a socióloga.
Notável como história pessoal foi
o longo depoimento de Rifca Gutnik, que, na época da entrevista, iniciada em
1982 e continuada por alguns anos, morava no Lar dos Velhos, mantido pela
Sociedade Israelita. Nascida na antiga Bessarábia, Rifca teve de abandonar os
estudos depois que Alexander Cuza (1857 – 1946), considerado o Hitler romeno,
proibiu o ensino de ídiche nas escolas.
Tornou-se operária desde muito
cedo e, como tal, liderou uma greve contra as condições absolutamente desumanas
de trabalho, sem horário para refeição, sem remuneração adicional para serviço
noturno, sem direito nenhum. A greve resultou vitoriosa, mas Rifca foi
demitida. Desempregada, emigrou, depois de um tempo, para o Brasil, onde seu
namorado e futuro marido, Velvel, já estava.
Aqui, participou, no Rio de
Janeiro, do Arbeter Center, que promovia atividades educacionais e culturais e
mantinha um restaurante para trabalhadores. Depois da fracassada insurreição da
Aliança Nacional Libertadora, em 1935, Velvel foi preso como comunista. Após
horas expostas ao sol na porta do presídio, esperando pela permissão para
visitar o marido, Rifca perdeu sua filha, Clara, vítima de insolação. Perderia
também o marido, deportado para campo de concentração.
“A história de Rifca teve um
efeito profundo sobre mim”, escreveu Blay. “Depois de tê-la entrevistado no Lar
dos Velhos, passei a visitá-la regularmente”. Rifca participava ativamente da
vida no Lar. Costurava na máquina que ela mesma havia doado; lia livros em
português, russo, ídiche e alemão; organizava, com seus próprios discos,
audições de música erudita e folclórica para os demais moradores; mantinha-se
atualizada com a leitura diária de dois jornais. E ajudou Blay em sua pesquisa,
traduzindo um livro sobre a história de Britchon, o shtetl onde
nascera em 1905.
A ideia de fazer pelos outros,
que, a despeito de todas as vicissitudes, deu sentido à vida de Rifca, está
fortemente assentada no conceito judaico de tzedaká, que pode ser traduzido
como “justiça” ou “retidão”. Exemplo de tzedaká foi o intenso trabalho
voluntário desenvolvido pela professora Betty Lafer (1909 – 2006), nascida em
Schirvint, na Lituânia, e diplomada em Araraquara, no Brasil.
Depois de anos no magistério,
casada e com os filhos criados, Betty passou a atuar como voluntária na
Organização Feminina Israelita de Assistência Social (Ofidas), e,
posteriormente, na União Brasileiro-Israelita do Bem-Estar Social (Unibes), da
qual se tornou presidente de honra. Ela foi entrevistada em 1982.
O trabalho social foi, para
muitos desses imigrantes, a principal forma de praticar o judaísmo. “A geração
que entrevistei não era especialmente religiosa”, afirmou Blay.
“O máximo de
sua religiosidade se resumia à observância das três datas principais do
judaísmo: Rosh Hashaná (Ano Novo), Iom Kippur (Dia do Perdão) e Pessach
(Páscoa). A geração atual é muito mais voltada para a religião, inclusive para
a ortodoxia. Alguns filhos ou netos dos imigrantes daquela geração agora usam
roupas tradicionais, casam-se com pessoas que fazem parte do mesmo grupo e
aprofundam-se no estudo da religião. É uma nova tendência que deveria ser
estudada”, concluiu.
(*) Conforme Os judeus no
Brasil Colonial, de Arnold Wiznitzer (São Paulo, Livraria Pioneira
Editora, Editora da Universidade de São Paulo, 1966), e Breve história dos
judeus no Brasil, de Salomão Serebrenick (disponível emhttp://tryte.com.br/colecaojudaismo/livro10.htm).
Título: O Brasil como
destino: raízes da imigração judaica contemporânea para São Paulo
Autora: Eva Alterman Blay
Editora: Editora Unesp
Ano: 2013
Páginas: 424
Vendas e mais informações: www.editoraunesp.com.br/catalogo/9788539304912,brasil-como-destino-o
Fonte: http://agencia.fapesp.br
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