Biblioteca sagrada – Por Giselle Ferreira
Do candomblé ao budismo, das
cristãs ao sikh dharma: religiões ganham livros em versões infanto-juvenis.
Se Lucas aprendeu sobre a morte
e, aos 8 anos, consolou seus pais a partir do que entendeu sobre a vida eterna
com o “Bhagavad-Gita para Crianças”, Davi, que só completa 5 anos daqui a dois
meses, pôde tranquilizar sua turma de escola num dia de tempestade com o que
absorveu do “Meu Livro de Histórias Bíblicas” (ed. Torre de Vigia, 2006).
“Por
causa da chuva forte, as crianças começaram a chorar com medo e o Davi, então,
disse que elas não precisavam se preocupar porque foi Jeová quem mandou a chuva
para o bem dos homens”, conta Porfírio Santos, pai de Davi e Testemunha de
Jeová.
“Ele adora o livro e sempre me pede para ler antes de dormir.
Principalmente depois que descobriu a origem do nome dele com a história de
Davi e Golias”.
Foi através de livros infantis
que abordam a religiosidade que Lucas e Davi foram introduzidos a fundamentos e
estão aprendendo a responder a questões muitas vezes difíceis aos pais como ‘de
onde viemos?’, ‘para onde vamos?’, ‘como surgiram o céu e a terra?’ e ‘quem foi
Jesus?’.
Crenças, costumes, origens,
simbologias e até mesmo hábitos alimentares e códigos de vestimentas estão
entre as explicações que os livrinhos oferecem. Em linguagem simples e
ilustrações atraentes, histórias milenares ganham contornos lúdicos e
divertidos, o que só contribui para o aprendizado e a aproximação dos pequenos
com o sagrado, já que, de acordo com a pesquisadora e antropóloga Flávia Pires,
a mera participação nos rituais religiosos não garante entendimento às crianças
quanto aos “porquês”.
Segundo Flávia, a religião, na
maioria das vezes, é definida pelas crianças como intrinsecamente ligada ao ato
de “ir à igreja”. Por isso, pode ser bem mais interessante e significativo para
os pequenos que as religiões sejam contextualizadas e ilustradas com ajuda das
publicações, diz ela em seu artigo: “Tornando-se Adulto: Uma Abordagem
Antropológica Sobre Crianças e Religião”.
Ferramenta
Sri Krishna Murti Das, pai de
Lucas, 12, e presidente do templo hare krishna Iskcon, Sociedade Internacional
da Consciência de Krishna, defende que, até para escolher qual caminho
espiritual deseja trilhar, a criança deve conhecer um pouco de cada um dos
outros. E, para isso, a literatura é uma ótima ferramenta.
Para ele, a ideia
plural de espiritualidade é fundamental, tanto que, com Lucas, ele discute,
além do “Bhagavad-Gita para Crianças” (ed. Bhaktivedanta Book Trust, 1996),
mitologias e divindades celtas, gregas, romanas, egípcias, nórdicas, histórias
bíblicas e tudo o mais, sempre ancorado nos mais de 50 livros infantis ligados
à religião que possui.
“As religiões estão muito
queimadas pelo proselitismo, mas no momento em que a gente vê com os olhos do
outro, eis a riqueza. Temos que ensinar às crianças a questão religiosa não
pela perspectiva aprisionadora e dogmática, mas, sim, libertadora. O
fundamentalismo é a fraqueza da fé: quem tem discernimento e sabe que as coisas
vêm de dentro jamais vai apontar dedo para ninguém”, afirma Krishna Murti,
sobre o quanto a literatura pode ensinar às crianças sobre tolerância.
As mães Ludmila Albernaz e
Daniela Mata Machado colocam em prática o que o monge hare krishna considera
como ideal. A jornalista Daniela, 41, mãe de Dora, 7, e de Rosa, 4, mesmo sem
se considerar seguidora de nenhuma religião, já ofereceu livros sobre a
umbanda, o budismo, além da Bíblia, para as filhas.
“As crianças recebem tudo
muito bem. Elas não têm o estranhamento que a gente constrói com o passar dos
anos. Apresentar a diversidade e abrir o leque é bacana porque, se existem
escolhas a serem feitas, que elas então possam saber escolher e aprender, ao
mesmo tempo, com o que há de melhor em cada crença”, diz, ao que Ludmila faz
coro.
“Para além do rótulo religioso,
espiritualidade é acreditar que podemos ser melhores. Não sei o que a Manu vai
querer ser quando crescer, mas é importante colocá-la em contato com as
diversas formas de pensar e com os valores de cada crença”, explica a
fisioterapeuta e mãe de Manuela, 3, que já conhece as histórias de “Noites
Encantadas” (fábulas infantis sobre a tradição budista. ed. Publifolha, 2008) e
“Meu Pequeno Evangelho” (quadrinhos da Turma da Mônica sobre o espiritismo. ed.
Boa Nova, 2014).
Acerca deste, o autor das
ilustrações, Mauricio de Sousa, conta que o livro pode ser lido por leitores de
diversas religiões “porque trata do assunto que une todas, o encontro da paz e
a busca da purificação da alma. O sucesso do livro demonstra que a receita está
certa”, afirma.
Yoga kids
Mãe de dois meninos, um de 21,
outro de 12, Ditta Kaur (nome espiritual da belo-horizontina Cristiana
Giroletti) sentia falta de um livro em português que desse conta da tradição do
sikh dharma, religião popularizada pelo indiano Yogi Bhajan, à qual segue. Ela
resolveu, então, contar a trajetória dos 11 mestres sikhs e convidou a
escritora Marina Mariano a escrever o infantil: “Os Gurus Sikhs”. O livro terá
ilustrações do filho mais velho de Ditta, Fernando Giroletti, e será lançado na
cidade em setembro.
“Cada um dos gurus carrega uma frequência especial,
traduzida por uma virtude específica, como o amor, a compaixão e a coragem. Uma
coisa que buscamos reiterar é que as crianças sejam elas mesmas e que saibam
que Deus está em nós”, diz.
Literatura afro made in BH
Quem vê o Congado passando pelas
ruas, geralmente em meados de outubro, quase sempre se pergunta o que é aquela
festa. Embora seja centenária, a manifestação religiosa e cultural é pouco
conhecida e um tanto marginalizada. E tem como um de seus maiores desafios
manter-se viva.
Na busca de reverter esse cenário
e de suprir o déficit de material didático sobre a cultura afrobrasileira e sua
história, será lançado neste domingo (5), o livro infantojuvenil: “O Reinado da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá”, na sede da irmandade do mesmo
nome.
Um CD e um DVD com ritos, cânticos e
entrevistas que elucidam um pouco da história do cotidiano da congregação, que
já resiste no bairro Itaipu, na região do Barreiro, há mais de 130 anos, também
serão lançados, já que a tradição que une o catolicismo ao sagrado africano
está fundada sobre dois pilares: a religiosidade e a música.
Os registros vêm na esteira da
expansão do segmento religioso da literatura infantojuvenil e representam um
grande ganho para as religiões de matrizes africanas, que sempre tiveram suas
lendas propagadas majoritariamente pela tradição oral. O aumento dessa
bibliografia mirim é um passo rumo à tentativa de reduzir a intolerância
religiosa que assola as culturas afro.
A ação vem em conjunto com uma campanha
do Governo de Minas, que se comprometeu na semana passada a promover um
trabalho de enfrentamento ao racismo e à discriminação nas escolas públicas do
Estado, provendo subsídios e tornando obrigatório o estudo da história e da cultura
dos africanos e afro-brasileiros nos currículos dos ensinos fundamental e
médio.
Inserção
Produzido exatamente no intuito
de ser inserido no catálogo das escolas, a edição de: “O Reinado da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário do Jatobá” soma-se às recentes publicações infantis
belo-horizontinas sobre o reinado/congado: “Benedito”, do autor e ilustrador
Josias Gomes (ed. Caramelo, 2014), e “Festa Mestiça, O Congado na Sala
de Aula” (ed. UFMG, 2011), de Cecília França e Yuri Popoff.
O diferencial
é que o livro teve a contribuição direta das crianças da comunidade do Itaipu,
várias das ilustrações são de autoria delas. Para a coordenadora do livro,
Maria Cristina Troncarelli, o aspecto mais positivo da publicação, no entanto,
foi deixar claro para aquelas crianças o quanto elas são importantes para a
sobrevivência daquela cultura.
“As crianças dentro do ritual são
das coisas mais lindas que já vi na vida. Mas o mais legal mesmo é que na
feitura colaborativa do livro elas se deram conta da importância do papel que
desempenham e do quanto essa expressão cultural é bonita e rica. Além de
desvendar simbolismos, a princípio misteriosos para elas”, declara.
Umbanda para pequenos
Mariana Ramos de Morais e Adriano
Bitarães têm explicações bem parecidas sobre os livros infantis que publicaram
sobre a umbanda. “Um dia, me baixou a inspiração e saiu o livro”, diz a
primeira. “Exu me sugeriu e eu obedeci”, conta o segundo. Mariana, doutora em
Ciências Sociais pela PUC Minas, publicou em 2012 o festivo: “Banda de Cá, Banda
de Lá, Umbanda Para Crianças” (ed. Espaço Ampliar).
O livro conta, em cinco textos,
histórias de personagens como Exu, Pomba Gira, Preto Velho, Meninos de Angola e
Caboclo. Composto por versos livres, numa narrativa que lembra cantigas de
roda, “Banda de Cá...” evoca as sete linhas da umbanda e visa trazer para o
universo das crianças as origens e as crenças da religião.
“É uma crescente, mas a gente tem
pouca literatura voltada para crianças sobre as religiões afrobrasileiras.
Mesmo consideradas parte da nossa cultura, a umbanda, o candomblé, o batuque, a
jurema, o congado, o tambor de mina, dentre outras denominações religiosas,
muitas vezes, são tratadas como feitiço ou de forma pejorativa”, conta a
autora, que acredita que o contato com o diferente desde cedo, pela literatura,
pode mudar esse quadro e contribuir para construir uma sociedade mais justa e
igualitária.
Adriano, que escreveu: “A Era dos
Erês: Uma Era ao Culto da Natureza e dos Orixás” (ed. Mazza, 2011) a
partir de uma conversa com Exu, acredita que as crianças ficam encantadas ao
reconhecer nos arquétipos dos orixás, divindades do panteão africano presentes
nos rituais de candomblé e umbanda do Brasil, os elementos da natureza e até
da sua personalidade.
“O divertimento das crianças é perceber que o sagrado é o
encontro entre tudo isso. É ver que terra, fogo, ar, água e trovão são deuses e
que eles se manifestam em nós a partir das mais variadas emoções”,
conclui.
Para ler com os pequenos
“Agapinho” - Versão mirim do
best-seller “Ágape”, do padre Marcelo Rossi, o livro terminou 2014 na 5ª
posição entre os livros infantis mais vendidos e trata de valores segundo o
Evangelho de São João. Ed. Globo. (fnac.com.br).
“Contos Budistas” - A coletânea
ilustra vários aspectos do pensamento budista com contos que envolvem aventuras
emocionantes e dramáticas, entremeadas por pequenas e reflexivas histórias Zen.
Ed. Martins Fontes, 2003. (americanas.com.br)
“Meu Pequeno Evangelho” - A Turma
da Mônica, de Mauricio de Sousa, recebe a visita de André, que apresenta para
as crianças conceitos do Evangelho espírita que todos nós podemos usar no dia a
dia. Ed. Boa Nova, 2014. (livrariacultura.com.br).
O mundo diverso do sagrado nos
livros
“O Reinado da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário do Jatobá” - Lançamento do livro, CD e DVD. Sede da
Irmandade (r. Paulínia, 21, Itaipu). Neste domingo (5), a partir das 13h30. Ed.
Acervo Cachuera!
“O Islamismo Explicado às
Crianças”- Em uma obra didática, elucidativa e atual, o livro desfaz mitos e
narra a história, as doutrinas e os costumes do islamismo através de uma
conversa com uma criança. Ed. Unesp, 2011. (lojacarosamigos.com.br).
“Os Príncipes do Destino” - Na
cultura africana, cada ser humano está sob a proteção de um dos 16 príncipes,
seu padrinho do destino. No Brasil, os pais e mães-de-santo do candomblé são os
sucessores dos príncipes. Ed. Cosac Naify, 2011.
“O Livro das Religiões” - O autor
de “O Mundo de Sofia” mergulha neste livro no universo complexo e contraditório
das religiões e descreve, com simplicidade, as características e a base de cada
fé. Ed. Cia das Letras, 2005. (submarino.com.br).
“Os Orixás Sob o Céu do Brasil” -
O livro conta como pessoas vindas de diferentes regiões da África chegaram ao
Brasil e se uniram pelo culto aos orixás, explicando a origem do candomblé e
mostrando a riqueza de suas lendas. Ed. Biruta.
“A História dos Judeus” - Com uma
narrativa gráfica, o livro conduz os leitores a uma jornada de 4.000 anos de
histórias, eventos e personagens que moldaram o povo judeu e sua cultura. Ed.
Via Lettera, 2009. (livrariadafolha.com.br).
Fonte: http://www.otempo.com.br
Comentários