Meta do ateísmo militante é libertar o homem do sobrenatural - Por Francisco Marshall
Richard Dawkins hoje reina entre os ateístas, por sua defesa
vigorosa do pensamento científico e pela crítica humanista aos enganos da
religião.
O pensador inglês tem a seu favor o lastro de milênios de pensamento
crítico e o vigor de argumentos necessários para a civilização. A meta é a
emancipação do humano diante do que ele mesmo criou, uma rede de representações
do mundo sobrenatural, onde habitariam deuses e de onde comandariam a vida na
Terra e no além. Emancipado, o indivíduo moderno pode chamar de ficção cultural
o que bilhões de pessoas chamam de Senhor, e pode fundar sociedades sobre
valores de liberdade, de tolerância e de consistência moral e jurídica.
Minoritários, os ateus parecem
exóticos, e a crença em divindades, natural. Isto obriga os ateus a manter um
arsenal de argumentos, certa vigília e, eventualmente, atitude de combate, o
que aborrece crentes e produz nova safra de desentendimentos. Sem a galhardia
dos céticos, agnósticos e ateus, porém, pouco saberíamos do universo, do corpo
humano e das soluções jurídicas e tecnológicas que enchem de conforto a vida
moderna. A discussão entre razão e fé não pode ser arquivada; será atual por
muitos séculos.
Instituída há 5 mil anos, junto
com o Estado e antes de alfabeto, biblioteca, museu, universidade, telescópio e
internet (!), a religião é o antigo antiquado intrometido na modernidade.
Todavia, alguns antigos já percebiam o problema, e o disseram com inteligência
que parece moderna, falando nosso idioma. Ei-los.
Escrito na tumba do faraó Intef II, no Egito de 4.084 anos atrás, o “canto de um harpista” revela inteligência cética onde imperava poderosa teologia. “Ninguém volta (...) para dizer o que precisam (...)”, diz a canção: tudo o que se fala do além (base da cultura egípcia) é invenção dos que aqui estão, em estado de ignorância. “Por isso alegra teu coração, esquece que serás um espírito, segue teu desejo por mais que vivas, põe mirra em tua cabeça, veste linho fino”, canta o(a) harpista, antecipando em 2 mil anos o famoso carpe diem (colhe o dia) do poeta latino Horácio. Nada sabemos, vivamos do melhor modo possível.
A segunda geração de filósofos gregos questionou a natureza e a função das divindades. Xenófanes de Colofão: “Se os cavalos tivessem mãos e pudessem grafar, fariam seus deuses com a imagem de cavalos”; para não restar dúvidas, arremata: “os egípcios pintam seus deuses baixos e negros, os trácios os fazem altos e ruivos.”
Escrito na tumba do faraó Intef II, no Egito de 4.084 anos atrás, o “canto de um harpista” revela inteligência cética onde imperava poderosa teologia. “Ninguém volta (...) para dizer o que precisam (...)”, diz a canção: tudo o que se fala do além (base da cultura egípcia) é invenção dos que aqui estão, em estado de ignorância. “Por isso alegra teu coração, esquece que serás um espírito, segue teu desejo por mais que vivas, põe mirra em tua cabeça, veste linho fino”, canta o(a) harpista, antecipando em 2 mil anos o famoso carpe diem (colhe o dia) do poeta latino Horácio. Nada sabemos, vivamos do melhor modo possível.
A segunda geração de filósofos gregos questionou a natureza e a função das divindades. Xenófanes de Colofão: “Se os cavalos tivessem mãos e pudessem grafar, fariam seus deuses com a imagem de cavalos”; para não restar dúvidas, arremata: “os egípcios pintam seus deuses baixos e negros, os trácios os fazem altos e ruivos.”
A religião, depreende-se, é produto cultural, relativo, criado
pelo homem com auxílio de imagens, que dão forma à crença e a comunicam. Muitos
se perguntam onde caberiam todas as divindades imaginadas ao longo dos séculos.
E afinal, qual dos mitos é o verdadeiro?
O meu, o teu, o do mais forte, o mais
belo, o mais filosófico, o mais moral, o mais oriental, o que sacia ansiedades,
o que entorta braço, o que me aproxima da cura ou da pessoa amada?
Todos
ficção, o que não os deleta, muito pelo contrário, redime os mitos e os faz
matéria preciosa para a compreensão dos símbolos que formam a cultura. Logo, a
imaginação é grau maior do mito e das religiões; antes de Dawkins já estavam
aqueles gregos e Freud, Frazer, Lévi-Strauss e Mircea Eliade para ler este
código cultural. Todos herdeiros de Heráclito: “Que são os deuses? Homens
imortais. Que são os homens? Deuses mortais.” O humano promete mais, e pode a
cada dia superar-se.
Sobre o território para o
pensamento emancipado, brilharam os sofistas, na Atenas do século 5º a.C.
Mestre de Péricles, Anaxágoras de Clazômenas foi acusado de ateísmo, ao propor
que a Lua não era Selene, irmã do Sol e da Aurora, mas um corpo celeste
resultante da colisão de um astro contra a superfície da Terra, de onde
desprendeu-se uma parte, lapidada pelo tempo, ora em órbita (exatamente o que
hoje se pensa sobre a formação da Lua).
Eis a ciência crescendo em um mundo em
que os deuses podiam tornar-se obsoletos. Atomistas como Epicuro e Lucrécio
Caro, e cínicos clássicos como Diógenes, completaram a cena antiga do
pensamento emancipado.
Novidades, doravante, somente na
era moderna, com a sagacidade de Giordano Bruno, desafiando a cosmologia
opressora, com a ironia de Voltaire, um Xenófanes com muito estilo e prosa, ou
com a lucidez de Immanuel Kant, em cuja obra se funda a dimensão política e
ética do homem contemporâneo.
Bem lido, Kant responde à pergunta do cardeal
Martini a Umberto Eco, no célebre debate: em que creem os que não creem?
Naquilo que podem determinar pelo pensamento e optar por critério ético de
universalidade, sem medo de castigo infernal ou carência de tutela divina.
Faltava pouco para Nietzsche reler e inverter Lutero, e declarar a morte de
deus.
O cadáver, todavia, é imenso, e
nele ainda se refestelam exploradores de toda ordem, dos mais polidos aos mais
afoitos, que ora aceleram a máquina religião com força máxima, e enriquecem com os votos e dízimos de milhões de iludidos.
Em cenário de crise e no vazio de
uma educação pública decente, os crentes e sua ofensiva política e social são
hoje um dos principais desafios do Brasil e do mundo, prontos para reverter o
frágil edifício da civilização. Eis porque todos os artistas e filósofos, do
harpista egípcio a Dawkins e cada um de nós, hoje precisam assumir sua
modernidade e defendê-la como se fosse a muralha de uma cidade chamada
liberdade.
Fonte: http://www.paulopes.com.br
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