Bíblia na escola: o “Conhece-te a ti mesmo” e a grade curricular – Por Paulo Ghiraldelli
Platão falou na Atlântida.
Podemos investigar se ela existiu, mas não temos de saber isso ou crer nisso
para ler Platão. Para além de uma formação em filosofia, lemos Platão como um
dos livros básicos da cultura ocidental.
Não precisamos acreditar que os deuses
interviram na Guerra de Tróia, como Homero colocou na Ilíada. Nem há de se crer
na própria ocorrência da Guerra de Tróia. Para além de formação em filosofia ou
história, lemos Homero como um dos livros básicos da cultura grega, que é
fundamental para entendermos o Ocidente.
Por essas leituras sabemos da nossa
formação, inclusive da nossa cultura soterrada na parte mais remota de nossos
cérebros, responsável por nossa mentalidade. Todavia, nossa cultura não é só
grega. Nem mesmo só greco-romana. Ele é também judaico-cristã.
Não precisamos acreditar que o
cajado de Moisés, por ordem de Deus, virou uma serpente. Tomamos o encontro de
Moisés com Deus como um momento em que leis são postas para um povo que queria
deixar de ser nômade, que queria realmente se estabelecer como nação e não só
um conjunto de tribos.
Assim fazendo, compreendemos como que a cultura
greco-romana se fundiu com a cultura judaica e deu a base mais completa de
nossa cultura ocidental, também banhada pelo cristianismo. Desse modo, ler a Bíblia
faz parte de nosso engrandecimento cultural. É um grande texto poético, que
pertence não só ao campo religioso e não está aí só para crentes lerem (não
raro de modo literal e, portanto, errado), mas fundamentalmente para estudiosos
de história, antropologia e sociologia. Para todos que querem ter cultura
geral.
A Bíblia tem de estar na escola.
O ideal é que fosse lida por historiadores e filósofos. Mas se for lida por
professores dogmáticos, desses parecidos com pastores incultos, ainda assim o
livro é válido. Os alunos mais inteligentes logo perceberão, por obra do
professor de português, que o gênero literário da Bíblia não é o da física ou
química, não é ciência, e tem a ver com o universo de sentido, não com o
sistema de verdade.
Assim, antes a Bíblia e não o
criacionismo cabe perfeitamente na escola. Alguém pode dizer então: cabe o
Alcorão? Cabe, mas com peso diferente. Não aprendemos a história do Oriente com
o peso da do Ocidente. Nosso modo de estudar tem a ver com o “conhece-te a ti
mesmo”, o preceito délfico utilizado por Sócrates. Damos importância curricular
ao nosso patrimônio cultural mais que o dos outros. Por isso, por exemplo,
temos mais horas de aulas de português que de inglês, embora jamais possamos
dispensar as aulas de inglês. Por isso ter tirado o grego e o latim da escola
foi um erro.
Outros dizem que a Bíblia é só
religião e que será ensinada por dogmáticos. Ora, tudo que aprendemos é
dogmático. A relativização dos conteúdos e sua crítica é mais tardia, e nem
sempre vem.
Não temos que esperar ter professores perfeitos para ter a Bíblia
na escola, do mesmo modo que não esperamos professores perfeitos para fazer a
volta da filosofia e da sociologia no ensino médio. Aliás, do modo que pagamos
os professores, não temos professores bons na quantidade que deveríamos ter em
escola nenhuma. Mas a grade curricular não deve ser empobrecida por não
estarmos pagando bons salários.
Temos de melhorar o salário, não empobrecer a
grade curricular. A Bíblia na escola é bem-vinda. Vai ajudar demais nossos
alunos nos estudos, e talvez até reative debates éticos. A Bíblia é coisa séria
demais para deixar só na mão de pastores, fora do ambiente escolar.
Paulo Ghiraldelli, 57, filósofo,
autor de Sócrates: pensador e educador (Cortez, 2015).
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br
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